Cascais Jazz
2009
O regresso do Cascais Jazz não foi pacífico, tendo sido perturbado desde mesmo antes do seu início por vários incidentes.
1. O CRÍTICO
Logo no primeiro dia, um artigo do crítico do jornal Público,
Rodrigo Amado, anunciava o festival como «O regresso estéril do
Cascais Jazz». Pelo inédito de um crítico desancar num
festival em antecipação, o texto merece alguma reflexão.
Começando por descrever exaustivamente o Cascais Jazz original como
irrepetível, Rodrigo Amado acusa Duarte Mendonça (o promotor
do actual Cascais Jazz que trabalhou com Villas-Boas durante largos anos) de
ignorância e desrespeito «por tudo aquilo que fazia do Cascais
Jazz um evento especial», apontando a debilidade da programação, «um
amontoado de propostas que em nada evocam a grandeza do projecto inicial»,
discordante da qualidade, consistência e criatividade da programação
de Villas-Boas: «Numa programação débil, em que
se destaca a excelência de dois músicos nacionais, André Fernandes
e Zé Eduardo … agrupam-se um projecto incaracterístico
de Lee Konitz, uma cantora de segunda categoria, o quarteto de Ingrid Jensen
e um quinteto em torno de Phil Woods, agora com 79 anos, que não irá dar
se não uma pálida ideia do explosivo concerto que protagonizou
em 1971».
À
primeira vista o texto de Rodrigo Amado parece surgir com uma crítica
ao jeito de Baudelaire numa contenda entre o velho Jazz e o Jazz do futuro,
de que ele seria o paladino. Mas realmente nem tudo soa bem. Mesmo que algumas
das críticas de Rodrigo Amado sejam de considerar – e eu também
estou de acordo que o Cascais Jazz foi realmente pouco ambicioso e excessivamente
conservador -, a forma leviana como as colocou em antecipação,
o uso de dois pesos e duas medidas para avaliar músicos e concertos
e o facto de não ter posto os pés no festival são reveladores
das suas intenções, para além de que, como veremos, acaba
por ser injusto para com os músicos e o festival.
Ao apontar a esterilidade do novo Cascais Jazz, o crítico começa
por questionar a pertinência de um festival que se propõe tão
só celebrar o passado, exigindo que ele seja inovador. Mas não
apenas um festival, como «o» festival – o original Cascais
Jazz -, que acusa de desrespeitar.
É
verdade que não estava entre os objectivos de Duarte Mendonça
fazer um festival inovador e criativo, mas tão-somente o de celebrar
o Jazz de que é apaixonado, e que é o Jazz clássico. Criticá-lo
de outro ponto de vista, quer dizer, sem admitir a possibilidade de se construir
um festival apenas para fruição do público que ama o Jazz
clássico, é só admitir um tipo de concerto e um tipo de
festival.
Sem querer estender-me, a suposta esterilidade do Cascais Jazz pressupõe
a fertilidade de um outro Jazz, que é afinal o seu (o que ele toca):
o único Jazz com que a usualmente inócua prosa do crítico
se entusiasma, mas a verdade é que – e isto é a minha opinião
- muita da suposta vanguarda que o RA aplaude é bastante mais estéril
do que a música de Phil Woods. Mas até como músico RA
devia ter ido ao festival. Porque se aprende mais com 30 minutos de Phill Woods
que muitas horas a ouvir a auto-proclamada «vanguarda». Olhando
a programação, ele torce o nariz à idade avançada
de Phil Woods e reprova o «projecto incaracterístico» de
Lee Konitz – um dos grandes inovadores da História de Jazz!!!
- ou o menor nível da cantora Dena DeRose. Mas claro que quando no passado
outros – os seus amigos - trouxeram a Portugal um Ornette em fim de carreira
auto-celebratório, um Bill Dixon já incapaz de tocar, ou músicos
de «segunda e terceira categoria», nunca se ouviu a voz de RA.
Mas falar do Minsarah de Florian Weber como «um projecto incaracterístico» é ignorância
ou má fé, e mesmo que Amado não morra de amores pela «cantora
de segunda categoria» Dena DeRose, seria talvez boa ideia ter ido ao
festival confirmar as suas projecções. O que não aconteceu!!!!
O Cascais Jazz é irrepetível e será realmente de alguma
presunção do promotor querer fazer reviver um festival que foi
um marco para o Jazz nacional, mas também social e político.
Mas por isso mesmo também não é justa a crítica
que toma como argumento «levávamos um verdadeiro farnel – em
alguns dos dias, as sessões prolongavam-se por mais de seis horas – e
almofadas para atenuar o desconforto das bancadas de cimento». Amante
de Jazz é masoquista, mas não me parece que algum espectador
estivesse hoje para aturar intervalos de mais de uma hora para mudar de palco
ou bancadas de cimento, e não, ninguém hoje leva as criancinhas
e sandochas de marmelada para os concertos. O tempo realmente não volta
para trás e uma das razões porque não é possível
repetir a grandiosidade do Cascais Jazz dos primórdios, é porque
se vive um momento social diferente. Se não é possível
fazer um acontecimento social Cascais Jazz ao nível do que foi nos anos
70 (e disso o programador não tem culpa), o crítico tem o dever
de levar esse facto em conta, ou nenhum festival mais poderia ser feito.
Chegados aqui, já percebemos que o texto de Rodrigo Amado apenas com
boa vontade pode ser considerado uma crítica de vanguarda a um festival
conservador, pelo menos não com o mínimo de seriedade e isenção
que sempre é exigível à crítica, mas bastante mais
uma forma de manifesto anti-Duarte Mendonça: depois desta crítica
ele tornou-se um herói para os «vanguardistas», como o «único
tipo que teve a coragem de pôr o Duarte Mendonça na ordem».
A crítica de Jazz do Público não é confiável, já que deixou de ser independente e isenta, mas este
texto de Rodrigo Amado é realmente lamentável.
Sendo músico (de free-jazz) e ouvinte conhecedor, Rodrigo Amado é um
crítico irregular, afectado pela gestão
da imagem própria
e das relações e interesses pessoais.
Dizia-se à boca cheia no Cascais Jazz: a partir de agora quem não
ensebar convenientemente o crítico, arrisca-se à lista negra. Justiça
ou maldade, quem não quer
ser lobo não lhe veste a pele.
2. O ATRASO E OS
HOMENS DA RÁDIO E DA TELEVISÃO
Programado para começar às 21.30 de sexta-feira, o festival principiou
com uma cerimónia não publicitada que consistia na projecção
de um documentário evocativo do original Cascais Jazz e várias
intervenções. No documentário - uma montagem de filmes
e imagens evocativas dos primeiros Cascais Jazz - era dado destaque a Luís
Villas-Boas, à continuidade de Duarte Mendonça ao lado do «Villas» e
aos músicos que iriam tocar nesse dia e seguintes e que tinham passado
por Cascais. Seguiram-se os convidados – «homens da rádio
e da televisão» que tinham feito a cobertura épica desses
primórdios.
As intervenções, umas mais outras menos bem-humoradas e inspiradas
prolongavam-se, e seriam passados talvez trinta minutos quando alguém
do público se manifestou contra o atraso do concerto de Lee Konitz.
Mas o concerto ainda tardou: as nossas estrelas da rádio e da TV continuaram
a revelar alguns episódios rocambolescos da sua participação
nos Cascais Jazz por longos minutos até que teria passado talvez uma
hora quando Lee Konitz entrou em cena.
Curiosamente todas essas estrelas convidadas, sem excepção, foram
saindo muito pouco discretamente no final das intervenções e
ao fim de quinze minutos de concerto já não estava lá nenhum.
Afazeres inadiáveis ou a ausência de holofotes; a verdade é que
estranhamente – cadê o amor pelo Jazz? - nenhum dos jornalistas
convidados ficou para o concerto.
Mas no que respeita ao atraso do concerto, eu tenho de concordar com o público.
Penso que toda e qualquer alteração à programação,
deliberada ou involuntária, nos cabeças de cartaz ou nas formações,
qualquer atraso ou alteração no horário; enfim, qualquer
tipo mesmo de alteração, deve ser comunicada pelo menos no início
do espectáculo, se não puder ser antes. O que nem sempre acontece.
Qualquer alteração na programação deve ser comunicada
ao público, e mesmo salvaguardando o direito de o público ser
ressarcido pela alteração.
3. O PÚBLICO E AS SUAS RAZÕES
O público esteve quase ausente nos dois primeiros dias do festival.
As razões prender-se-ão talvez com a) o mau tempo, b) o menos
apelativo cartaz, c). o preço dos bilhetes, d) a sala incaracterística
ou e) a excessiva oferta de espectáculos - bem diferente do que eram
os tempos no início dos anos 70 -, ou ainda a conjugação
destes factores.
Vale a pena reflectir também sobre estes elementos, e dispenso-me de
falar de a) o tempo e da e) excessiva oferta de espectáculos.
b) O cartaz
Um cartaz para um Cascais Jazz será sempre um problema, e eu não
sei realmente se uma diferente programação levaria o público
ao festival. Eu não tenho nenhuma observação aos nomes
convocados, mas creio que, com excepção de Phil Woods, como se
viria a confirmar, o cartaz não era atractivo. E repito que não
tenho nenhuma observação a qualquer dos outros nomes, mas até Lee
Konitz tem passado com alguma regularidade pelos palcos nacionais, tornando-o
menos apelativo.
Eu creio que era possível e desejável outro cartaz, mais
ambicioso, começando
mesmo pelo figurino, com dois concertos por noite, duas e meia a três
horas de concerto com um nome sonante por noite e algum arrojo nos nomes, quero
dizer, Jazz mais moderno e jovem. E claro que estou de acordo com a excessiva
replicação do Estoril Jazz. Creio que o produtor deveria ter ousado mais.
Não tenhamos no entanto ilusões: o Cascais Jazz é irrepetível.
O festival era um acontecimento musical, e o Jazz atravessava ele próprio
um momento de grande euforia. Mas mais do que isso o Cascais Jazz era um acontecimento
social e político. E onde estão as figuras vivas que possuam
a estatura de Miles, Ornette, Dizzy, Monk ou Dester Gordon? Dave Douglas e
Dave Holland, têm vindo com regularidade a Portugal, Keith Jarrett esteve
cá há três anos e Phil Woods e Lee Konitz estiveram este
Dezembro em Cascais. Apenas Sonny Rollins tarda em regressar, mas também
ele faz em Setembro próximo 80 anos de idade…
A opção do programador foi privilegiar os músicos lendários
que passaram na década de 70 por Cascais. E se é verdade que
a música de Phil Woods é intemporal, muito do que estes músicos
lendários fazem hoje é mais emocional que musical…
Faltou arrojo.
c) Os bilhetes
O preço dos bilhetes afasta o público, é claro. Trinta
euros por concerto não é barato, mas o Jazz é um vício
caro. Os bilhetes do Cascais Jazz (como os do Estoril Jazz) são mais
caros que o normal nos festivais de Jazz nacionais, ainda que mais baratos
que os do Cool Jazz Fest e a generalidade dos concertos pop.
Posto isto os bilhetes eram realmente caros, e ainda que tenham sido criadas
no ano passado assinaturas para todo o festival que baixam o preço para
metade, eu creio que melhor faria o produtor em baixá-los,
e criando formas de incentivos e descontos para jovens, reformados e estudantes
de música. As assinaturas, apesar de interessantes, obrigam os interessados
a assistir a todos os concertos e, como se constata, não funciona. Creio que
o produtor deverá repensar esta questão.
Mas esta é uma área
melindrosa, em que por norma não falo, e afinal não sou eu que
faço
as contas. Digamos que o Jazz é realmente um vício caro.
d) A sala
Programado para a mesma sala do Estoril Jazz, o Cascais Jazz padeceu dos mesmos
males de uma sala incaracterística sem personalidade e de acústica
amorfa. É verdade que o Dramático (onde acontecia o Cascais original)
era o mais surdo possível e tinha uma personalidade elefantina, mas
os tempos são outros e o grau de exigência do público é outro.
Duarte Mendonça argumenta que não há salas disponíveis
no concelho, o que até será verdade. Mas vocacionada para encontros
de burocratas e empresários, o Centro de Congressos é um edifício
frio onde (ao que dizem) apenas o estacionamento é positivo (quem é que
se preocupava com o estacionamento em 71?) e até o bar mixuruca afugenta
os clientes! Enfim, um aplauso merecido para o improvisado auditório
exterior onde se puderam recordar as actuações de alguns concertos
históricos do Cascais Jazz.
4. A MÚSICA
Bom, mas afinal o que é que correu bem no regresso do Cascais Jazz?
Ah, mas foi mesmo a música!
Lee Konitz ()
Lee Konitz é um dos grandes inovadores da História do Jazz (e
do saxofone) vivos, com Ornette e Sonny Rollins, e qualquer concerto dele é necessariamente
um acontecimento. Representante do território mais cerebral do período
do Jazz clássico, Konitz sempre foi menos emocionante que os seus pares,
mas muito mais subtil e luxuoso. Lee Konitz começou a tocar ainda nos
anos 40, tendo-se notabilizado por «não soar à Charlie
Parker». Nos anos 50 foi um dos apóstolos do Cool Jazz com Miles
Davis, mas a sua obra e influência estende-se até aos dias de
hoje. Compositor e instrumentista erudito num período em que o free
jazz germinava, Konitz parecia remar contra a maré; mesmo se a sua música
era realmente avançada para a época. Várias gerações
passadas, a música de Konitz permanece moderna!
Konitz apresentou-se em Cascais à frente de um grupo com quem tem gravado
e tocado, o Minsarah, liderado pelo pianista Florian Weber. Numa sala sem acústica,
a opção unplugged de Konitz nem sempre pareceu a mais feliz e
o saxofonista teve de mandar calar alguns espectadores (e jornalistas) mais
irrequietos. Impressionista, frio, abstracto, o sofisticado Lee Konitz fez
um concerto verdadeiramente brilhante, mesmo se o saxofone pareceu revelar
por vezes algumas rugas. A Minsarah esteve sempre perfeita no contraponto à refinada
música de Konitz; muito em especial o subtil e inteligente pianista.
Convidado especial, André Fernandes nunca chegou a levantar voo, mesmo
se teve uma prestação correcta.
Zé Eduardo Unit + Jack Walrath ()
O sábado iniciou-se com o Unit de Zé Eduardo com Jack Walrath.
Recorde-se que Zé Eduardo tocou no Cascais Jazz em 1979 e Walrath em
1975, integrado no grupo de Charlie Mingus, e ambos têm um disco gravado,
Bad Guys, para a Clean Feed. Estimulado pelo trompetista, Zé Eduardo
fez um grande concerto, revelando toda a sua classe como grande músico
de Jazz que é. O repertório foi clássico, algo diferente
do que tem vindo a tocar, e a empatia que estabeleceu com Walrath estendeu-se
sem dificuldade à parca assistência. O swing irredutível
de Zé Eduardo aliou-se ao intenso sentido de blues, por vezes rude,
de Walrath, para fazer o melhor concerto do segundo dia do Cascais Jazz.
Dena DeRose ()
Seguiu-se Dena DeRose, uma cantora e pianista que já veio a Portugal
em 2006. Concerto sem história, mas também sem mancha, completou
uma tarde ainda assim agradável onde, como há três anos
atrás, o baterista Matt Wilson esteve em evidência.
Ingrid Jensen ()
Infeliz esteva a excepcional tecnicista Ingrid Jensen no concerto da segunda
noite do festival. Perturbada por qualquer problema técnico que o público
não logrou compreender, Jensen fez o pior concerto de quantos já lhe
vimos em Portugal. A trompetista tocou vários temas compostos ao longo
da viagem de lua-de-mel no Alasca, mas a bonomia da apresentação
das composições não foi acompanhada pela música.
Phil Woods Cascais Jazz Legends ()
Para o último dia do festival estava reservada a surpresa do público
que encheu a sala, levado pelo nome do histórico Phil Woods (78 anos!),
que tocou à frente de um grupo encomendado para a ocasião, os
Cascais Jazz Legends; nada menos que Cedar Walton, Jimmy Cobb, Rufus Reid e
Lew Soloff.
Sem surpresas, a linguagem comum do Jazz e a veterania dos cinco músicos,
ofereceram ao público uma noite inesquecível. A ternura andou
de mãos dadas com o swing e a sinceridade, que tocaram a audiência.
Jazz escorreito, generoso e competente, fez esquecer as imperfeições
e as rugas. Um conjunto de clássicos como Willow Weep For Me ou I’ll
Remember April, completaram o regresso do Cascais Jazz da melhor forma.
Sex 4-Dez | Estoril
|
Centro de Congressos
do Estoril
|
21.30
|
Lee Konitz and
Minsarah + André Fernandes
|
Lee Konitz (sa), Florian Weber (p), Jeff Denson (ctb), Ziv Ravitz (bat) + André Fernandes (g) |
Sáb 5-Dez | 16.00
|
Zé Eduardo
Unit
|
Zé Eduardo (ctb), Jesus Santandreu (st), Bruno Pedroso (bat) + Jack Walrath (t) | ||
16.30
|
Dena DeRose
Magic Trio
|
Dena DeRose (voz), Martin Wind (ctb), Matt Wilson (bat) | |||
21.30
|
Ingrid Jensen
Quarteto
|
Ingrid Jensen (t, flis), Geoff Keezer (p), Matt Clohesy (ctb), Jon Wikan (bat) | |||
Dom
6-Dez
|
18.00
|
Cascais Jazz
Legends
|
Phil Woods (sa), Lew Soloff (t), Cedar Walton (p), Rufus Reid (ctb), Jimmy Cobb (bat) |
Programador:
Duarte Mendonça