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Funchal Jazz 2015

André Fernandes Wonder Wheel

André Fernandes não terá dado pelo espectáculo fantástico do nascer da Lua – enorme! – à sua esquerda, por cima das Desertas, quando iniciou o concerto. Era ainda dia (o Funchal tem o mesmo fuso horário do continente, mas está bastante mais a oeste) quando a poderosa Wonder Wheel começou a rodar, mas pouco a pouco as luzes laranja da encosta acendiam-se por detrás do palco como um presépio enquanto o céu se apagava na primeira noite do Funchal Jazz 2015.

André Fernandes apresentava o último trabalho, de 2014 (Wonder Wheel), à frente de uma máquina muito bem oleada. Ele que é um guitarrista inspirado esteve particularmente bem, alternando nos solos com Oscar Graça no piano, um jovem que domina bastante bem a linguagem Jazz. Tinha alguma curiosidade em ver como se comportava o pianista, dado que a última vez que tinha visto a bandatocar ela tinha Mário Laginha nas teclas (que também gravou no disco). Oscar Graça superou – aos meus olhos e ouvidos - com distinção a comparação, com um estilo menos exuberante, é certo, mas igualmente fluente e assertivo. Falando de exuberância, Alexandre Frazão será porventura o mais espectacular dos bateristas nacionais (um brasileiro há muito radicado em Portugal), e não deixou os créditos por mãos alheias, revelando na escolha das baquetas e na forma percussiva colorida um pouco das suas origens. Outro estrangeiro, também há muito a viver em Portugal, o argentino Demian Cabaud, tornou-se – por mérito próprio - no mais requisitado dos contrabaixistas; porto seguro de qualquer secção rítmica e solista portentoso. O único senão da banda de André Fernandes é a voz – ainda que bonita – de Inês Sousa, que se me afigura abusar dos raiáraiá muito portugueses (e parece que na moda entre as cantoras de Jazz). Mas a sua voz atrasa sistematicamente a banda. Esteve bem em «Lilac Wine», mas não deixou de se revelar quase sempre irrelevante na máquina Wonder Wheel.

Saldo positivo, um bom concerto na abertura do Funchal Jazz 2015.

Joe Lovano Quarteto

O segundo concerto da noite tinha como atracção o monstro do saxofone Joe Lovano. Possuidor de um som de saxofone caloroso, o estilo de Lovano remete para os saxofonistas da golden age do Jazz pré-Coltrane, mas há muito que ele construiu um som distintivo, «romântico», diríamos, com traços que revelam as suas origens longínquas italianas (Lovano tem até um disco dedicado à música popular italiana).

O momento alto do concerto foi uma suite dedicada a Ornette Coleman (falecido em Junho) aglutinando três temas, entre os quais dois originais de Ornette – «Sleep Talk» e «Lawyers» -, onde a marca do estilo anguloso do pai do free ganhou uma nova roupagem no saxofone quente de Lovano. Ternura, densidade, calor, o sopro de Lovano envolveu a plateia num manto de dramatismo, que o obrigou a retornar ao palco para um belíssimo «Full Moon» em jeito de balada.

A bateria de Joey Baron foi o contraponto de Joe Lovano, injectando uma energia insuspeitada no som do quarteto, obrigando-o sempre a ir mais longe, mais força e mais velocidade, tudo arrastando como uma torrente. Ele que é reconhecido como um baterista sensível e cirúrgico, revelou aqui a verdadeira fera que o impele. Mais jovens, Lawrence Fields e Linda Oh completavam a banda; fluente e oportuno o pianista, exuberante a contrabaixista, o quarteto soou sempre como uma unidade, sem escolhos, magnífico.

Miguel Zenón Identities Are Changeable

O segundo dia iniciou-se com um verdadeiro ponta de lança do moderno Jazz, o saxofonista porto-riquenho Miguel Zenón, à frente do seu quarteto de eleição com Luis Perdomo no piano, Hans Glawischnig no contrabaixo e o também porto-riquenho Henry Cole na bateria.

Com um repertório retirado do CD de 2014, Identities Are Changeable, iniciou o concerto com «My Home» em tempo rápido, a prenunciar o concerto explosivo que se seguiria. É difícil destacar alguém no quarteto que, como acontece com frequência no Jazz, é bem mais que uma simples soma das partes. Se o jovem Henry Cole se revelou incansável na bateria, impelindo a banda para além dos seus limites, Glawischnig foi a âncora e a bússula. Se Perdomo se confirmou como um pianista notável, esfusiante no lirismo, generoso no colorido, sumarento na paleta de referências, impulsivo no drive, e diríamos que a bastar-se enquanto líder do trio na ausência (nas raras ausências) do saxofonista, Zenón esteve sempre ao nível do melhor que lhe temos visto, confirmando porque é neste momento um dos dois ou três mais considerados saxofonistas na crítica nternacional. Verdadeiro repositório da tradição, Zenón não é um saxofonista acomodado, engenhoso na construção das harmonias, uma sonoridade singular que apenas de forma subtil revela as suas origens latino-americanas, que radica, como disse, na mais dura tradição Jazz, notável até na velocidade e criatividade parkerianas

O quarteto de Miguel Zenón valeu enfim, e como atrás sugeri, pelo som do grupo, pela homogeneidade, pela empatia absoluta, mas também pela criatividade esfusiante, pela alegria de tocar (Jazz), pelo ímpeto, pela riqueza no detalhe, pela generosidade e pela entrega. Insuperável Zenón! 

Kurt Elling Passion World

A segunda noite do festival traria ainda o concerto mais aguardado do Funchal Jazz, o Kurt Elling Passion World.

Com um grupo renovado, onde pontuava o pianista Gary Versace que estamos habituado a ouvir tocar noutras latitudes mais avant-garde, Kurt Elling trouxe ao Funchal um repertório mais popular ou menos jazzy, de acordo com as perspectivas (copo meio cheio ou meio vazio).

Apresentado nalguns meios como o grande sucessor de Frank Sinatra, creio que ele poderá ter desiludido algum público. E com razão, porque se Sinatra marcou uma época como um dos grandes cantores populares da América, Kurt Elling é um genuíno cantor de Jazz; a mais importante voz da actualidade. E por detrás da encenação algo hollywoodesca que o Passion World pode sugerir, Elling é um cantor verdadeiramente arrebatador, genial no manuseio das palavras e da voz. Tenho escrito com alguma frequência sobre Kurt Elling e não desejaria repetir-me. Discípulo de Mark Murphy, eu diria que Kurt Elling superou o mestre na forma como utiliza todos os recursos vocais possíveis, no que só terá algum termo de comparação com Bobby McFerrin, ainda assim um cantor mais físico e mais negro (e mais pop). Mas na forma como maneja as palavras e o tempo, na forma como reconstrói as frases, como insufla emoção nas palavras, como lhes altera o sentido, como se abandona aos poemas, sem outros artifícios que o corpo e a voz, e apenas ocasionalmente a manipulação do microfone, ele revela-se absolutamente genial.

Que na imagem – como se veste, como se move, como comunica - e que no repertório: «Nature Boy», «When Somebody Loves You», «Rosa Morena», «La Vie En Rose», «Loch Tay Boat Song» e um quase blues «I’m Satisfied»; este tenha sido porventura o mais «acessível» que já lhe assisti; que, enfim, Kurt Elling se apresente como um crooner, não deixa de ser uma (aparente) contradição. Mas Kurt Elling é um falso crooner, o que – na simulação, no conflito que gera em palco (e já por diversas vezes eu escrevi que em palco ele se transfigura e que nenhum disco lhe faz justiça, mas a verdade só vem à tona ao vivo nos verdadeiros músicos de Jazz) – não deixa de provocar um desconforto no público. Curioso é que esse mesmo desconforto impeça a observação e adesão dos críticos mais «modernaços», à espera de um cantor de alpercatas e t-shirt fashion a interpretar poetas eruditos aos gritos, incapazes de ver para além da superfície, de ler o detalhe. Mas quando os instrumentos param e Kurt Elling se lança a capella, quando as palavras se lhe afogam na garganta, quando todo o universo o abandona, alguma coisa deveria alertar os especialistas do festival da canção... 

Perante um repertório clássico, até mesmo o pianista convocado, o excelente Gary Versace, se moldou a uma forma mais convencional, mas esteve excelente – no piano e no órgão -, sóbrio mas sempre inspirado, com intervenções soberbas, à vontade onde o não suspeitaríamos. Mas toda a banda esteve a um nível bastante acima da média, alternando entre a contenção submetida à voz, ou explodindo em solos denunciando a sua condição de genuínos músicos de Jazz.        

Christian McBride Trio

O terceiro dia do festival iniciou-se com o concerto do trio de Christian McBride, um gigante do contrabaixo. Logo após os primeiros acordes, tornou-se óbvio que estávamos perante três músicos superlativos. Não obstante a juventude do pianista e do baterista, a música foi sempre de um elevado nível num repertório clássico, entre Oscar Peterson - com Christian Sands a emular com generosidade o virtuosismo do pianista -, um divertido «Who’s Making Love» de Johnnie Taylor, um apelativo «Raise Four» de Thelonious Monk e uma mão cheia de originais de McBride ou Sands, retirados de Out Here de 2013: a fabulosa escola do Jazz americano veio ao Funchal mostrar o seu melhor. E Christian McBride nos comandos, numa música sem outros artifícios que os do seu virtuosismo, demonstrou porque é um dos mais requisitados contrabaixistas da actualidade.

 
 
 

Sem peias, a verdade do Jazz clássico, provocando com facilidade a adesão do público.

Terence Blanchard E-Colective

Enfim, o último dos concertos do festival realizados no belíssimo Parque de Santa Catarina esteve a cargo do Terence Blanchard E-Colective.

Claramente descendentes do Jazz-pop milesiano do período Marcus Miller (denotado até pelo som marcado do baixo eléctrico), os E-Colective dirigem-se para um público mais jovem. Poderosa, a dupla baixo-bateria impelia o grupo para a frente numa eficaz torrente sonora que os restantes intrumentos exploravam.  Acertiva no funky poderoso, a máquina E-Colective produzia uma música com algo de hipnótico, onde apenas as electrónicas - alternadas entre o pianista e Blanchard - foram sempre dispensáveis, cortando com frequência o discurso. Aliás Fabian Almazan, mostrou-se sempre melhor no piano que nas restantes teclas, ficando-nos o desejo de o ver tocar noutro contexto (pelo menos mais acústico). E o mesmo para o guitarrista que sempre bem integrado se revelava capaz de outros voos.

Poderoso no trompete, Terence Blanchard demonstrava porque é considerado um dos melhores trompetistas da sua geração. Na despedida os músicos foram saindo à vez ficando apenas o baixo a bateria, como se o ritmo tomasse conta da noite.


É necessário referir que ao longo do festival as noites se prolongavam no espaço do Scat (Music Club Restaurant) - magnífico local, um bar de porta aberta em frente ao mar - onde se realizaram as jam sessions alimentadas pelo Quarteto de Ricardo Toscano, com a presença de músicos madeirenses e de alguns músicos das bandas que passavam pelo palco principal. Alguns músicos dos grupos de Christian McBride, Terence Blanchard e todo o grupo de Miguel Zenón participaram nas jams.

Não assisti à totalidade das jam sessions (até porque por vezes se prolongaram até às seis da manhã e eu já não tenho idade para essas coisas), mas numa das noites, na sexta-feira, todo o quarteto de Zenón se deslocou ao Scat para tocar com Charles Altura (o guitarrista de Terence Blanchard) e Ricardo Toscano, numa meia hora inesquecível! Grande Zenón! Grande Toscano! Grandes músicos, grande noite!

Enfim, à margem do festival, quero dizer dos grandes concertos, foram programados vários eventos, entre concertos e exposições. Já falei das jam sessions que obtiveram um grande sucesso, pela música, mas o Funchal Jazz programou outros concertos: a abrir, uma semana antes, anunciando o festival, o concerto do Madeira Jazz Collective e ao longo dos dias da semana, no Largo do Teatro, alguns combos saídos da Curso de Jazz do CEPAM, dando a conhecer um pouco do que os jovens aprendizes da Escola andam a fazer. Ainda no Teatro, duas exposições: uma exposição de desenhos de Fagundes Vasconcelos e uma outra do fotógrafo «oficial» do festival, «Listen in colour» de Renato Nunes.

Uma palavra de elogio ao Paulo Barbosa (que assumiu a direcção artística desde o ano passado) para a programação, sólida e diversificada. E ganhadora. E se Paulo Barbosa soube trazer ao Funchal alguns dos melhores músicos de Jazz da actualidade, ficámos a saber que está nos seus projectos abrir o festival a alguns jovens músicos e projectos menos «acessíveis» de entre o fervilhante cadinho do Jazz contemporâneo. Assim seja!

O Funchal Jazz tem a dimensão, a organização e o público de um verdadeiro festival pop. Seis mil pessoas em três dias é notável, mas o espaço adequa-se e a direcção não se poupou a meios: a projecção em fundo do concerto, o som, excelente, a luz, a informação, os pequenos detalhes do transporte, também as jam sessions e uma programação de luxo; uma verdadeira máquina concebida para elevar o Funchal Jazz à plataforma cimeira dos melhores festivais de Jazz nacionais.

Leonel Santos

 

 

Leonel Santos esteve no Funchal a convite do Funchal Jazz

Sáb 27 Jul Funchal SCAT Funchal Jazz Club 23.00 Madeira Jazz Collective «Concerto de apresentação do festival» Alexandre Andrade (t), Nelson Sousa (st), Pedro Pinto (trb), Filipe Vieira de Freitas (g), Jorge Borges (p), Ricardo Dias (ctb), Jorge Maggiore (bat)
           
Seg 29 Jul Funchal Teatro Municipal Baltazar Dias 18.00 4 Combos +
Orquestra de Jazz do Curso de Jazz do CEPAM
 
Ter 30 Jul Funchal Teatro Municipal Baltazar Dias 18.00 4 Combos +
Orquestra de Jazz do Curso de Jazz do CEPAM
 
Qua 1 Jul Funchal Teatro Municipal Baltazar Dias 18.00 4 Combos +
Orquestra de Jazz do Curso de Jazz do CEPAM
 
Qui 2 Jul Funchal Parque de Santa Catarina 21.30 André Fernandes
«Wonder Wheel»
Inês Sousa (voz), André Fernandes (g), Óscar Graça (p), Demian Cabaud (ctb), Alexandre Frazão (bat)
Joe Lovano Quartet Joe Lovano (st, ss), Lawrence Fields (p), Linda Oh (ctb), Joey Baron (bat)
Funchal SCAT Funchal Jazz Club 24.00 jam session
Ricardo Toscano Quarteto
Ricardo Toscano (sa), João Pedro Coelho (p), Romeu Tristão (ctb), João Pereira (bat)
Funchal Teatro Municipal Baltazar Dias 18.00 4 Combos +
Orquestra de Jazz do Curso de Jazz do CEPAM
 
Sex 3 Jul Funchal Parque de Santa Catarina 21.30 Miguel Zenón Quartet Miguel Zenón (sa), Luis Perdomo (p), Hans Glawischnig (ctb), Henry Cole (bat)
Kurt Elling Passion World Kurt Elling (voz), John McLean (g), Gary Versace (p), Clark Sommers (ctb), Christian Euman (bat)
Funchal SCAT Funchal Jazz Club 24.00 jam session
Ricardo Toscano Quarteto
Ricardo Toscano (sa), João Pedro Coelho (p), Romeu Tristão (ctb), João Pereira (bat)
Funchal Teatro Municipal Baltazar Dias 18.00 4 Combos +
Orquestra de Jazz do Curso de Jazz do CEPAM
 
Sáb 4 Jul Funchal Parque de Santa Catarina 21.30 Christian McBride Trio Christian Sands (p), Christian McBride (ctb), Ulysses Owens, Jr. (bat)
The Terence Blanchard
E-Collective
Terence Blanchard (t), Charles Altura (g), Fabian Almazan (p, tec), Donald Ramsey (b-el), Chris Bailey (bat)
Funchal SCAT Funchal Jazz Club 24.00 jam session
Ricardo Toscano Quarteto
Ricardo Toscano (sa), João Pedro Coelho (p), Romeu Tristão (ctb), João Pereira (bat)
           

Programador/ Director Artístico PAULO BARBOSA
Iniciativa CÂMARA MUNICIPAL DO FUNCHAL