Funchal Jazz 2018
Começa a ser rotina dizer-se do Funchal Jazz como um dos melhores festivais de Jazz nacionais, e estamos a falar de um patamar limitado de festivais com programação internacional. Trazer em apenas três dias Jason Moran, Vijay Iyer, Dave Holland, Joshua Redman com Billy Hart e Jazzmeia Horn, para além de Ricardo Toscano em representação nacional, pode até ser considerado uma overdose de notáveis. Notáveis, não os nomes queridos da indústria mas, de facto, e apesar da dimensão e das características do festival, dirigido para um público alargado, a crème de la crème do Jazz internacional e nacional.
Ricardo Toscano Quarteto
O festival arrancou com o quarteto de Ricardo Toscano, um grupo que pratica um Jazz irredutível, assumidamente inspirado na música de um dos mais importantes músicos de Jazz de todos os tempos: John Coltrane. Dizer-se que até há apenas dez anos atrás isto não era possível é já uma vulgaridade, e essa verdade revela-se cada dia que vemos tocar o quarteto de Toscano, significativamente até na forma entusiasmada como eles tocam Coltrane, ou como procuram aprender, cada um deles, as formas superlativas de Trane, McCoy Tyner, Jimmy Garrison ou Elvin Jones. O calor, a paixão que colocam, o arrebatamento que comunicam, é único. Claro que há outros grandes músicos em Portugal, mas este quarteto de jovens (vale a pena referir os nomes: Ricardo Toscano, Romeu Tristão, João Pedro Coelho e João Pereira) é único na forma como percorre um caminho (do Jazz clássico) que o Jazz em Portugal deveria ter percorrido há décadas, e o facto de o não ter percorrido é um dos motivos das suas limitações e do seu atraso. Mas é também porque ele existe que outros jovens músicos podem tocar agora outras coisas e é uma esperança do futuro que o Jazz nacional pode ser. E que agora se começa a afirmar.
Não é por certo consensual, mas eu não me aborreço de ouvir John Coltrane, como não me aborreço de ouvir um quarteto de jovens de vinte anos a tocar Coltrane de forma tão entusiasmada. Para mim Coltrane é insuperável e eterno. Diria que há uma tendência (compreensível mas) pouco acertada de fazer discos de originais (e muitas vezes claramente prematuros), por parte dos jovens músicos. O quarteto de Toscano tem contrariado até agora esta tendência, recuperando velhos standards e interpretando-os de forma eloquente; é verdade, coltraneana.
Deambulei um pouco sobre o tema para dizer que foi com alguma apreensão que soube que o quarteto de Toscano ia apresentar no concerto de abertura do Funchal Jazz 2018 alguns originais. Os meus receios foram, felizmente, injustificados. Ricardo Toscano tinha escrito já este ano algumas composições novas e brindou o público do Funchal com a novidade. E se mesmo que elas possuíam alguma ingenuidade, e a indelével marca de Coltrane, o quarteto soube fazer um concerto sólido, como só eles sabem: a mesma agilidade, a mesma loquacidade, a mesma emoção. E enfim, o último tema era um clássico de Coltrane: «The Promise», escrito pelo saxofonista para o quarteto em 1964.
Jazzmeia Horn
Prosseguindo a fórmula de colocar no primeiro dia um Jazz mais acessível ou tradicional, o segundo concerto coube à cantora Jazzmeia Horn, uma jovem estrela em ascensão, que em poucos anos se fez guindar para a ribalta, arrebatando os aplausos do público e da crítica.
Jazzmeia Horn não possui ainda a personalidade dos grandes ícones vocais, mas ela faz-se notar por um profundo conhecimento da tradição, uma técnica imaculada e uma amplitude vocal invulgar. Sem dificuldade Jazzmeia logrou obter os aplausos do público em quase duas horas de música. Traços da alegria de Ella Fitzgerald e da técnica de Sarah Vaughan, de soul, funky e gospel, num discurso fluente e animado, suportada por um quarteto de sólidos jovens músicos que souberam a todo o momento acompanhá-la, revelando-se da mesma forma altiloquentes improvisadores.
Foi o concerto mais comercial, diríamos, que aqui e ali a traiu, por exemplo nalguns tiques de vedeta, quando ensaiou a colaboração do público ou nas letras demasiado «paz e amor» (como faz também Gregory Porter), acabando por alongar excessivamente o concerto.
Uma cantora que tem ainda muito para dar, e que foi um prazer ouvir, mesmo apesar das minhas observações.
Vijay Iyer Sextet
O Sexteto de Vijay Iyer abriu o segundo dia do festival. Prémio para o melhor disco do ano e o músico do ano pela generalidade da crítica internacional e nacional, Vijay Iyer constituiu o maior risco para um festival com estas características, pela música exigente e, diria fria, que apresentou.
Talvez que nunca antes como neste disco que apresentou no Funchal, «Far From Over» (mas não apenas), Vijay Iyer se desvendou, na cerebralidade da sua música. Diferente da música que compõe para o trio, e que expõe o piano na sua eloquência (enérgico mas nunca fogoso ou melódico), o sexteto de «Far From Over» não é um «trio mais três», mas um genuíno sexteto, mesmo se, pelas personalidades em causa, incaracterístico. Combinando composição e improvisação de forma intestina, até não ser possível discernir onde começa e acaba o quê, em complexas harmonias e figuras que têm em conta aquelas personalidades, e que estranhamente combinam o trompete rude de Graham Haynes, dois saxofones que se contrariam na génese, caloroso, mesmo lírico em Shim e frio e calculista de Lehman, uma secção rítmica, Crump – Dutton, avassaladora, e um piano que distribui tarefas e que se remete para uma falsa discrição no todo, mas que nunca desatende e que se insinua na autoridade.
Ao piano Iyer é o oposto do pianista exibicionista, sacrificando o virtuosismo pelo rigor e, como referi, a cerebralidade que o define.
Risco calculado, o público do Funchal merecia aquela música e a seriedade e força que ela possui obteve o retorno em igualmente merecidos aplausos.
Billy Hart Quartet c/ Joshua Redman
Num festival que primou pela diversidade, o concerto que se seguiu levou ao palco um veterano e um jovem expoente do que se vulgarizou denominar de pós-bop e, para ser completo e porque eles não foram irrelevantes, um baixista exemplar, e um pianista que se comportou como uma verdadeira wild card. Estamos a falar do Billy Hart Quartet c/
Joshua Redman.
Confesso que houve algo que me distraiu no concerto e que me impediu de apreciar a música do todo, ofuscado que fui pelos címbalos de Billy Hart. Raramente eu assisti a uma lição de pratos como no concerto de Billy Hart. Talvez que por não ser propriamente novo, Billy Hart tenha transferido o vigor que possuía na juventude pela arte dos pratos, e não me recordo de um exercício tão veemente como o de Hart neste concerto, com excepção para, talvez, o saudoso Max Roach.
Elegância, sensibilidade, magia, arte: insuperável nos pratos, Billy Hart privilegiou-os até ao paroxismo, desta forma modelando a música do quarteto. Como disse, a minha atenção esteve quase sempre dirigida para um Billy Hart que parecia pairar sobre a música, e se Ben Street (que com ele toca há muito) teve uma prestação quase sempre invisível (daquela forma que se não estivesse lá a música resultaria coxa), o vigoroso Joshua Redman me pareceu penalizado. Penalizado, digo eu, que o conheço como um saxofonista robusto, mesmo se sensível; e os pratos de Billy Hart haveriam de trazer para a frente a sua faceta mais lírica. Resta falar de Ethan Iverson. Conhece-se Iverson como o pianista dos The Bad Plus (para os que não sabem, Iverson saiu do trio no ano passado, tendo sido substituído por Orrin Evans), embora ele já possuísse uma carreira anterior. Pianista singular, de forte personalidade, muito anguloso, revelou-se logo no primeiro tema como um dos mais dignos herdeiros de Thelonious Monk, no discurso crespo, nos contrapontos, nas arestas cruas, na interrogação dos tempos. E por outro lado um músico atento que teve um papel fulcral, mesmo se não evidente, na conexão do quarteto, como um trinco.
Mas, uma vez mais, perdoem-me se a minha atenção se dirigiu para Billy Hart, absolutamente magnífico Billy Hart; um prazer para os sentidos.
Holland/ Potter/ Hussain
Se me perguntarem qual foi o mais importante contrabaixista dos últimos cinquenta anos, eu não hesitarei na resposta: Dave Holland. E foi Dave Holland que abriu o último dia do Funchal Jazz. Dave Holland já não precisa de provar nada, ele é um monstro absoluto do instrumento e terá sido por esse motivo que se permitiu divertir-se associando-se num trio atípico, com Chris Potter, um saxofonista da geração seguinte que com ele tem partilhado os palcos, e Zakir Hussain, um percussionista indiano que por diversas vezes se associou a músicos de Jazz e de fusão, e entre os mais populares o guitarrista John McLaughlin, também ele um apaixonado pela música indiana.
Ao que li o trio nasceu de um encontro ocasional de há meia dúzia de anos em que ao grupo de Hussain se juntaram em palco o contrabaixista e o saxofonista. Resumido à forma de trio, sem instrumento harmónico, o grupo sobreleva cada um dos instrumentos no limiar do exibicionismo, que apenas o virtuosismo absoluto dos três instrumentistas autorizou resolver. O timbre particular das tablas de Hussain trouxe para o palco um perfume oriental que de certa forma define a música da associação; um caminho que já foi percorrido com sucesso por outros músicos, e que o saxofone soprano de Chris Potter acompanha e acentua. Chris Potter, que se dividiu entre o tenor e o soprano, foi de certa forma o fiel da balança que conduziu a música para o Jazz (no tenor, mais assertivo quando revelou a herança de Michael Brecker, menos na de Garbarek) ou explorou a ambiência oriental proposta por Hussain (no soprano). Ele é um saxofonista portentoso e, com Hussain repartiu o grosso dos solos.
Zakir Hussain é um músico extraordinário, espectacular na arte suprema das percussões indianas. Há muito mais do que os nossos ouvidos «ocidentais» podem ouvir nos sons que as tablas produzem. São precisos muito anos para conseguir retirar das tablas os microtons particulares da música indiana, o que ainda assim está reservado a alguns eleitos. Os dedos (porque as tablas são tocadas com os dedos) de Hussain são verdadeiramente vertiginosos, mais do que os olhos podem ver (mesmo se projectados no grande ecran do fundo do palco do Funchal Jazz), e vertiginosa é a sua música. Virtuoso entre os virtuosos, ele foi capaz de se aproximar do Jazz quando foi necessário, ou espraiar-se pelas complexas harmonias indianas.
E por detrás de tudo estava sempre a figura paternal de Dave Holland, a bonomia personificada do mestre, o único contrabaixista que consegue fazer um contrabaixo soar como um saxofone, que o consegue fazer falar. A sua velocidade de execução permite-lhe acompanhar Hussain sem retirar o sorriso dos lábios, o seu génio harmónico tanto nos ofereceu discos eternos como nos enternece com uma balada.
Concerto muito bonito, alegre, todo o prazer da música por três virtuosos.
Jason Moran & The Bandwagon
Chegado ao último concerto do Funchal Jazz corro o risco de me repetir na atribuição de epítetos superlativos para falar do trio Jason Moran & The Bandwagon. E sobre Moran eu tenho escrito por inúmeras vezes, até porque ele tem tido presença assídua nos palcos nacionais, em diferentes projectos e contextos.
Dizer que Jason Moran é um dos mais importantes músicos de Jazz da actualidade é uma vulgaridade. Pianista total, ele confirmou-se como o mais inteligente herdeiro das formas percussivas (stride) do piano Jazz, com um estilo que associa fluência, criatividade e a mesma alegria e o prazer do Jazz que é também o de Holland, com a largueza de horizontes que lhe permite escavar o património primordial de Fats Waller, explorar o futuro com Mary Halvorson ou tocar o Jazz exigente e impetuoso do trio que apresentou no Funchal. Com a facilidade e a autoridade (e a tal alegria) de quem é capaz de tocar tudo e que escolheu o Jazz como expressão.
Neste trio em particular, com mais de quinze anos de existência, Jason Moran toca um Jazz moderno, sem concessões, anguloso nas formas próprias, o trio ele mesmo muito personalizado, não um somatório, a associação fortuita de três músicos, mas o resultado exponenciado de três personalidades instrumentais fortíssimas. Quem assistiu ao recente concerto no CCB onde Tarus Mateen, o baixista do trio, ficou retido numa tempestade de neve, pôde observar como o concerto foi uma coisa diferente, onde não foi o baixo que faltou, mas foi simplesmente outra coisa: Moran e Waits, piano e bateria, concerto extraordinário, mas outra coisa.
Uma vez mais os epítetos superlativos: Tarus Mateen e Nasheet Waits são dois singulares, de recursos formais inesgotáveis, e a The Bandwagon seria outra coisa com outros músicos. A sua singularidade, que se expõe na forma como o trio funciona como uma entidade, uma, diria, santíssima trindade no seu mistério, onde cada um é ele e é ao mesmo tempo indivisível e uno no seio da The Bandwagon.
Humorado, rigoroso, impetuoso, fortíssimo, Jason Moran & The Bandwagon num grande concerto.
Jam sessions
Esta segunda série de concertos do Funchal Jazz com programação de Paulo Barbosa contempla desde a primeira hora jam sessions diárias no Scat, um clube com uma situação privilegiada onde, como é normal nas jams, tudo pode acontecer. O grupo de serviço deste ano foi um quinteto composto pelos quatro membros do grupo de Toscano acrescidos do guitarrista André Santos, que sem problemas se integrou. Nada de mais, diria: André é, como o quarteto, uma orelha (no jargão Jazz uma orelha é um músico que sabe ouvir, o que até pode ser considerado uma redundância porque um músico de Jazz tem de ser, por definição, uma orelha. Se o não for ele será um leitor, um funcionário, ou outra coisa qualquer, mas não um músico de Jazz. Mas, como na vida e em tudo, há umas orelhas melhores que outras). Repertório de clássicos, muito humor, bons músicos, muita cerveja, boa disposição; as jams do Scat são já um clássico do Funchal Jazz.
Produção irrepreensível, muito público (dois mil assistentes por espectáculo), excelente música, tudo a correr sobre rolamentos. Foi assim o Funchal Jazz.
Leonel Santos
(JazzLogical esteve no Funchal Jazz a convite da organização)
(Todas as fotos por Renato Nunes)
Qui 12 | Funchal | Parque de Santa Catarina | 21.30 | Ricardo Toscano Quarteto | Ricardo Toscano (sa), João Pedro Coelho (p), Romeu Tristão (ctb), João Pereira (bat) |
Jazzmeia Horn | Jazzmeia Horn (voz), Marcus Miller (sa) Victor Gould (p), Gerald Portal (ctb), Henry Conerway III (bat) | ||||
Sex 13 | Funchal | Parque de Santa Catarina | 21.30 | Vijay Iyer Quintet | Graham Haynes (t), Steve Lehman (sa), Mark Shim (st), Vijay Iyer (p, f-r), Stephan Crump (ctb), Jeremy Dutton (bat) |
Billy Hart Quartet c/ Joshua Redman |
Joshua Redman (st), Ethan Iverson (p), Ben Street (ctb), Billy Hart (bat) | ||||
Scat | 24.00 | André Santos/ Ricardo Toscano Quinteto | André Santos (g), Ricardo Toscano (sa), João Pedro Coelho (p), Romeu Tristão (ctb), João Pereira (bat) | ||
Sáb 14 | Funchal | Parque de Santa Catarina | 21.30 | Holland/ Hussain/ Potter | Chris Potter (st, ss), Dave Holland (ctb), Zakir Hussain (tabla) |
Jason Moran & The Bandwagon | Jason Moran (p), Tarus Mateen (b), Nasheet Waits (bat) | ||||
Scat | 24.00 | André Santos/ Ricardo Toscano Quinteto | André Santos (g), Ricardo Toscano (sa), João Pedro Coelho (p), Romeu Tristão (ctb), João Pereira (bat) |
Programador/ Director Artístico PAULO BARBOSA
Iniciativa CÂMARA MUNICIPAL DO FUNCHAL