Guimarães Jazz 2012
Em ano de Guimarães Capital da Cultura o Guimarães Jazz apresentou uma programação ambiciosa que não cortou com a linha que vem prosseguindo, combinando os grandes nomes da cena internacional com projectos originais; uma programação que envolve a cidade e inúmeros jovens músicos que participam nas workshops, dirigidas este ano pelo saxofonista e compositor, de origem Sri Lanka/portuguesa australiana, Jacam Manricks.
O festival inaugurou também um novo espaço de concertos em Guimarães, na Black Box da Plataforma das Artes e da Criatividade (no espaço do Antigo Mercado de Guimarães, e onde funciona também o Centro Internacional das Artes José de Guimarães); uma sala com características mais «elitistas».
Herbie Hancock
Herbie Hancock é um dos pianistas mais influentes do Jazz, eleito de Miles Davis, autor e líder de projectos e grupos de entre os mais relevantes dos últimos cinquenta anos. Um percurso irregular, marcado por uma atracção pela música pop e por uma actividade intensa que atravessou géneros e formas artísticas e que, sobre tudo o que se possa dizer, contribuiu para a popularização do Jazz. Esta «irreverência» dividiu opiniões, ao mesmo tempo que guindou o seu nome para a categoria de estrela: os Grammys sucederam-se.
Se o convite para o Guimarães fazia, pela estatura de Herbie Hancock, e pelo lugar que ocupa na História do Jazz, todo o sentido, o espectáculo de abertura do Guimarães Jazz 2012 continha em si tanto de risco quanto de ganho antecipado. Mas a sua apresentação num concerto a solo levantava algumas interrogações.
Sala completamente esgotada.
A abertura em grand piano revelou o melhor de Herbie Hancock. Hancock atacou o clássico de Wayne Shorter, Footprints, entrecortando-o de fragmentos de melodias populares, ora suave ora apocalíptico, como só ele. Seguiu-se uma melodia arrastada, onde Hancock foi introduzindo lentamente electrónicas e ritmos, depois vieram os violinos e a música mudou para uma melopeia que me sugeriu o Tubular Bells.
Maiden Voyage, um dos mais célebres temas de Hancock, não faltou, alternado entre o piano e o melotron, um blues e, como não podia faltar, o funky, onde alternou o melhor com o mais xaroposo, a música alternou com o espectáculo. Com alguma justiça, poderemos dizer que o concerto ilustrou bastante bem a personalidade multifacetada de Herbie Hancock, que remataria a noite – no encore – de pé, com um desses teclados infernais, ao som do Headhunters. O público delirou.
Bill Frisell
Bill Frisell tem trabalhado sobre imagem, seja sobre filmes, animações ou fotografia, de que têm resultado trabalhos notáveis. De referir estarão a verdadeira obra prima apresentada no Guimarães Jazz de 1995, Go West, sobre filmes mudos de Buster Keaton; música sobre cartoons de Jim Woodring; e o premiado Disfarmer, retratos da América profunda sobre o vasto espólio de imagens do fotógrafo amador Michael Disfarmer.
De regresso a Guimarães, Frisell propôs uma colaboração com o cineasta experimental Bill Morrison, autor de um filme, The Great Flood, sobre a grande cheia do Mississippi de 1927.
Bill Morrison trabalhou sobre imagens e filmes da época para montar o documentário sobre que Frisell compôs, e que foi exibido em simultâneo.
O resultado foi verdadeiramente magnífico sobre qualquer perspectiva. Morrison fugiu a uma descrição linear da catástrofe, procurando em cada cena ou capítulo apresentar perspectivas diferentes e privilegiando uma visão social e humana que escapa em grande medida aos historiadores. Com objectividade e sem lamechice, e com algum humor, Morrison retrata não apenas a catástrofe física mas também as diferentes classes sociais, a dimensão política e a forma diferente como a tragédia os atingiu, e como os actores lidaram com a situação. Morrison joga magistralmente com o material que possui e o que pode ser sugerido, socorrendo-se por vezes de imagens exteriores para a contextualização temporal, ou usando imagens deterioradas, num resultado final, como disse, magnífico.
O que Bill Frisell fez foi interpretar as imagens com a guitarra (e a banda), «colorindo», oferecendo-lhe uma outra dimensão. A sonoridade country, por vezes blues ou rock, constrói o pano de fundo ideal para as imagens (ou são as imagens que ilustram a música?) que se desenrolam, não deixando grande espaço para a improvisação, é certo; o que é ainda assim compreensível, dada a natureza do projecto. Mas a música surge sempre pertinente, moldando(-se) as imagens, com o quarteto a transfigurar-se quando a bateria se transforma em vibrafone e o baixo desaparece para dar lugar a uma segunda guitarra.
Épico por vezes, ora minimalista ora orquestral, alegre ou melancólico, cru ou humorado, opondo-se às imagens (puxando o público para dentro do filme) ou nelas se dissolvendo; envolvendo o auditório.
Magnífico!
Dave Douglas & Joe Lovano Quintet
Dave Douglas e Joe Lovano são dois nomes maiores do Jazz contemporâneo, músicos de personalidades distintas e bem vincadas. Dadas as suas origens – Douglas é um músico modernista, mas ecléctico, um hiperactivo cuja actividade se desdobra em projectos de índole bem diversa; enquanto Lovano navega em águas mais mainstream - o concerto era aguardado com alguma expectativa.
A colaboração dos dois músicos surgiu na sequência do convite que lhes foi endereçado para dirigir o San Francisco Jazz Colective, e é, em grande medida, uma homenagem à música de Wayne Shorter, que foi repetidamente evocado no concerto.
A estética «quinteto de Miles», que catapultou Shorter para o reconhecimento mundial, foi de certa forma o modelo do grupo, numa versão actualizada, que se recupera por vezes Charlie Parker ou Coleman Hawkins no som cheio de Lovano (mais que John Coltrane, ao contrário da maioria dos saxofonistas da sua época), de igual forma recorre a Miles, que Douglas confessamente admira, não descurando os grandes trompetistas bop e uma modernidade acutilante que é bastante sua.
Música bem ancorada na tradição, um quinteto empático com largo espaço para os improvisadores, com Jordi Rossi, que substituia Joey Baron, bem integrado, e a jovem Linda Oh a brilhar.
Música acessível e espectacular, obrigou-os a regressar para dois encores, onde os solos se sucederam para gáudio do público.
Big Band e Ensemble de Cordas da ESMAE
Quando Charlie Parker se propôs em 1950 conciliar o Jazz com a música clássica, que resultou no histórico Charlie Parker With Strings, não poucos clamaram de sacrilégio. Creio que a História perdoou Bird, não tanto pelos resultados, limitados, mas pela ousadia. E, pecado original consumado, inúmeros músicos voltariam, ao longo das décadas seguintes, a abordar «o problema».
O que Jacam Mandricks se propôs em Guimarães foi exactamente conciliar os dois universos: clássica e Jazz; big band de Jazz e ensemble de cordas; utilizando, para o efeito, os músicos residentes na workshop que o Guimarães promove anualmente no decorrer do festival, e ainda um ensemble de cordas saído da ESMAE.
Se a música para big band, pela disciplina a que obriga (pelo menos na concepção clássica da big band, já que o free-jazz, e não só, propôs outros modelos), tende a coartar a liberdade dos músicos, a colaboração com um grupo de músicos clássicos, no caso um ensemble de cordas, implica riscos acrescidos.
O resultado final, conquanto interessante, nem sempre resolveu os problemas: o todo revelou-se com frequência pouco dinâmico, incapaz de se soltar. A matriz clássica prevaleceu, mesmo se a linguagem era reconhecivelmente Jazz. Os bons arranjos para a orquestra eram com frequência contrariados pelo peso das cordas, e os solos surgiram com frequência artificiais.
Razões do pouco tempo de trabalho ou da ambição do projecto, que não conseguiu superar as dificuldades que fazem parte da natureza «inconciliável» do Jazz e da música clássica, e que afinal já tinham sido apontados na experiência de Charlie Parker.
Lucian Ban Enesco Re-Imagined
De fusão entre música clássica se tratou também, no concerto de encerramento da primeira semana do Guimarães Jazz, estreando o novo espaço de concertos na Black Box da Plataforma das Artes e da Criatividade.
O ambicioso projecto de Lucian Ban propunha-se homenagear o compositor romeno George Enescu, cruzando as «formas composicionais da música clássica, o folclore romeno e outros idiomas sonoros originários de latitudes não europeias», reorquestradas para um grupo de Jazz, onde se encontravam, além do pianista Lucian Ban, músicos de origens e percursos bem distintos: Mat Maneri, Tony Malaby, Ralph Alessi, Mark Helias, Gerald Cleaver, Badal Roy e Albrecht Maurer (secção rítmica, mais viola, violino, saxofone, trompete e percussões/ tablas/ voz).
O concerto confirmou a erudição que a formação antecipava, não apenas por uma leitura «jazzística» da música de Enesco, mas pela escrita exigente de Lucian Ban, que não se atém a formas, e onde o classicismo do compositor, pontuado de referências folclóricas, se prolongam numa interpretação contemporânea, esquivando-se à utilização convencional da secção rítmica (mesmo se é a secção rítmica que aproxima a «revisitação de Enesco do Jazz), mas tãopouco cedendo à tendência mais abstracta das cordas que a presença de Mat Maneri poderia sugerir.
Os andamentos lentos predomiram, numa música ainda assim colorida e rica em movimento, que combinou com um jazz free (o saxofone empolgado e algo excessivo de Tony Malaby) , com as paisagens orientais (via Badal Roy) e a evocação do virtuosismo do violino de Enesco (Albrecht Maurer), numa obra de dimensão orquestral com uma forte componente escrita e o, diria, «romantismo melancólico» de Enesco que se evidencia também nas interpretações ao piano de Lucian Ban.
O Guimarães Jazz continuaria por mais uma semana, mas este escriba já tinha, infelizmente, partido.
JazzLogical esteve em Guimarães a convite do Guimarães Jazz
Qui 8 | Centro Cultural Vila Flor | 22.00 | Herbie Hancock | Herbie Hancock (p) |
Sex 9 | Centro Cultural Vila Flor | 22.00 | Bill Frisell | Bill Frisell (g), Ron Miles (t), Tony Sherr (ctb), Kenny Wollensen (bat) |
Sáb 10 | Centro Cultural Vila Flor | 22.00 | Dave Douglas & Joe Lovano Quintet | Dave Douglas (t), Joe Lovano (s), Lawrence Fields (p), Linda Oh (ctb), Jorge Rossi (bat) |
Dom 11 | Centro Cultural Vila Flor | 17.00 | Big Band e Ensemble de Cordas da ESMAE | Jacam Manricks (dir) |
Plataforma das Artes e da Criatividade | 22.00 | Lucian Ban Enesco Re-Imagined | Mat Maneri (viola), Tony Malaby (ss, st), Ralph Alessi (t), Lucian Ban (p), Mark Helias (ctb), Gerald Cleaver (bat), Badal Roy (tab, voz, per), Albrecht Maurer (v) | |
Qua 14 | Centro Cultural Vila Flor | 22.00 | Jacam Manricks Band | Jacam Manricks (s), Randy Ingram (p), Raoul Bjorkenheim (g), Gianluca Renzi (ctb), Ross Pederson (bat) |
Qui 15 | Centro Cultural Vila Flor | 22.00 | Orquestra Jazz de Matosinhos toca João Paulo Esteves da Silva | João Paulo Esteves da Silva (p) |
Sex 16 | Centro Cultural Vila Flor | 22.00 | The Jazz Passengers |
Roy Nathanson (s), Curtis Fowlkes (trb), Bill Ware (vib), Sam Bardfeld (v), Brad Jones (ctb), E.J. Rodriguez (bat) |
Sáb 17 | Centro Cultural Vila Flor | 22.00 | WDR Big Band Cologne plays Randy Brecker | Michael Abene (dir), Johansa Hõrlen (s), Karolina Strassmayer (s), Olivier Peters (s), Paul Heller (s), Jens Neufang (s), Wim Both (t), Rob Bruynen (t), Andy Haderer (t), Breuls Ruud (t), John Marshall (t), Ludwig Nuss (trb), Marshall Gilkes (trb), Andy Hunter (trb), Mattis Cederberg (trb), Frank Chastenier (p), Paul Shigihara (g), John Goldsby (b), Hans Dekker (bat) + Randy Brecker (t), Tony Lakatos (st) |
2012 (antevisão)
Esta semana começa o Guimarães Jazz.
Em ano de Guimarães Capital da Cultura, o Guimarães Jazz promete oferecer ao público um festival ao elevado nível do que nos acostumou de há muito.
O festival começa para o público na próxima quinta 8, mas para os jovens envolvidos nas workshops ele já terá começado há alguns dias.
O Guimarães arranca com Herbie Hancock, um músico que é simultaneamente um dos pianistas mais influentes de sempre, e um irreverente, reconhecido pela transgressão e pelo seu eterno namoro com a pop music. Hancock vem a Guimarães tocar a solo mas o nome do projecto «plugged in» faz adivinhar o uso de parafernália menos convencional. A confirmar (a temer?) em Guimarães.
O segundo dia traz a Guimarães Bill Frisell, um músico que já aí esteve há mais de dez anos. Guitarrista verdadeiramente original, a sua música tem sido definida com frequência como muito «visual»; o que parece ser confirmado pelas seus trabalhos inspirados em fotografia, o cinema mudo ou animações. O projecto que Frisell traz a Guimarães resulta da colaboração com Bill Morrison, música criada para o filme «The Great Flood, concebido a partir das imagens recuperadas da catastrófica cheia do Mississippi de 1927.
O sábado da primeira semana do Guimarães Jazz reúne em palco dois monstros do Jazz contemporâneo, Dave Douglas e Joe Lovano. Dada a personalidade e o passado destes dois músicos, este é, com certeza concerto obrigatório. Referência para a secção rítmica de luxo, com Lawrence Fields no piano, a jovem Linda Oh no contrabaixo e o veterano Joey Baron na bateria.
E a primeira semana do Guimarães Jazz completa-se com dois concertos, no Domingo, 11. O concerto da tarde resulta das workshops dirigidas por Jacam Mandricks, saxofonista e compositor que trabalhou com os alunos da ESMAE ao longo da semana anterior. Mandricks dirigirá a big band e também um ensamble de cordas, igualmente saído da ESMAE, num trabalho que se adivinha com tanto de rigoroso e exigente quanto de controverso.
Enesco Re-Imagined, concerto que será apresentado no mais recente espaço cultural da cidade – a Plataforma das Artes e da Criatividade –, resulta da colaboração do pianista Lucian Ban com o contrabaixista John Hebert, para uma homenagem ao compositor romeno George Enescu, desaparecido em 1955. Música clássica e Jazz, a combinação impossível, inevitavelmente controversa, foi o que Ban e Hebert se propuseram realizar com, a meu ver, um excelente resultado. A concretização do audacioso projecto terá como protagonistas Mat Maneri, Tony Malaby, Ralph Alessi, Lucian Ban, Mark Helias, Gerald Cleaver, Badal Roy e Albrecht Maurer, e deverá constituir outro dos grandes momentos do festival.
Paralelamente aos concertos «nobres» do festival, decorrerão, como já é hábito, no Convívio, a partir da meia-noite, as jam sessions este ano animadas por Jacam Manricks, Randy Ingram, Raoul Bjorkenheim, Gianluca Renzi, Ross Pederson.
Da próxima semana do Guimarães Jazz (Jacam Manricks Band, OJM toca João Paulo Esteves da Silva – TOAP, The Jazz Passengers Re-united e WDR Big Band Cologne plays Randy Brecker), voltaremos a falar.
5 Novembro 2012
A segunda semana do Guimarães Jazz tem início na quarta-feira 14 com o grupo de Jacam Mandricks, que é responsável este ano pelas workshops e pelas jam sessions, que prosseguem, estas últimas, até ao fim do festival, agora no Café Concerto do Vila Flor.
Na quinta o concerto resulta de uma encomenda ao pianista João Paulo, e será apresentado pela Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM). João Paulo é um músico que dispensa apresentações, ele que é um dos mais empolgantes pianistas (e líder e compositor) nacionais, e a OJM é também ela a mais séria das nossas grandes formações nacionais, com um prestígio que está bem para além das nossas fronteiras. Este projecto inicia uma nova forma de colaboração entre o Guimarães Jazz e a editora TOAP.
Os Jazz Passengers que farão a noite de sexta são um grupo que fazem da transgressão e do humor a própria linguagem. Fundados em 1987 por Roy Nathanson e Curtis Fowlkes, os Passengers deixaram um lastro de irreverência que gerou controvérsia desde a primeira hora. Entre o bebop e Frank Zappa, entre o free-jazz e a pop, tudo pode acontecer num concerto dos Jazz Passengers. Nos últimos anos o grupo tem tocado apenas ocasionalmente e é por isso uma rara oportunidade para o público nacional de assistir a um concerto dos Jazz Passengers.
E como é hábito, o Guimarães Jazz reserva para o último dia uma grande orquestra. A escolhida deste ano é a WDR Big Band Cologne, que tocará música do grande Randy Brecker. O trompetista será um dos solistas principais, a par do saxofonista Tony Lakatos e a orquestra é dirigida por Michael Abene.
A par dos concertos principais que decorrerão na sala nobre do Centro Cultural Vila Flor, as noites do festival completam-se, como referi, no Café Concerto até haver gente.
Enfim, se me é permitido, eu completava as minhas sugestões para os forasteiros ( e eventualmente também para os vimaranenses distraídos), com uma visita obrigatória ao novíssimo espaço cultural de Guimarães, a Plataforma das Artes e Criatividade (já se si belíssimo), e ao Museu, onde pode visitar a Coleção José de Guimarães, notável pelas máscaras, e não só.
12 Novembro 2012