Guimarães Jazz 2014
Com a proventa idade de vinte e três anos, o Guimarães Jazz consagrou-se como o mais importante festival de Jazz nacional; não apenas por desistência dos concorrentes directos, mas mais do que isso por mérito próprio, suportado por uma programação imbatível, uma organização irrepreensível e generosa e uma dimensão sem igual em Portugal, ao nível dos melhores festivais de Jazz em qualquer parte do globo. A edição 2014 contou com dez concertos e jam sessions diárias. E quanto à programação, dizer que em apenas duas semanas Guimarães pôde assistir aos concertos de David Murray, James Carter, Theo Bleckmann, Uri Caine, Lee Konitz e Joshua Redman, é dizer muito sobre a ambição do programa, que não se ficou por aqui.
Entre as actividades paralelas há a referir este ano, para além dos concertos dos jovens músicos, espalhados pela cidade, o lançamento do disco «Zero», de João Guimarães (resultante da colaboração Guimarães Jazz/ Tone of a Pitch 2013), as Oficinas Jazz, e ainda, excepcionalmente, duas sessões do ciclo Histórias de Jazz em Portugal, de Manuel Jorge Veloso e António Curvelo, que tiveram como músicos pivot André Fernandes e João Paulo Esteves da Silva, e ainda André Santos, Jeffery Davis, Joel Silva, Bruno Pedroso, Júlio Resende e Paulo Curado.
Assisti apenas à primeira semana do festival.
David Murray Infinity Quartet
Ouvindo David Murray não pude deixar de me lembrar de um outro velho saxofonista, Archie Shepp, com quem encontro algumas similitudes na carreira. Com um início associado à vanguarda, Murray é hoje um músico bastante menos radical, incorporando elementos que foi buscar aos grandes saxofonistas da «época de ouro» do Jazz, com uma sonoridade bastante mais acessível ao grande público, e mesmo com algumas investidas menos consensuais na música negra popular. Mas a verdade é que Murray nunca deixou de olhar o passado, mesmo nas suas propostas mais ousadas, nos saxofone solo ou no World Saxophone Quartet, e uma observação mais de perto encontrará referências explícitas a Charlie Parker, Sidney Bechet ou muitos outras. E, se recordarmos, o mesmo aconteceu com Archie Shepp.
Se atentarmos à música que o Infinity Quartet que levou a Guimarães, pudemos observar que esta evolução não se tratou de um retrocesso, mas da assimilação da História do Jazz, e em particular do saxofone Jazz, no seu som, que persiste voluptuoso. E o Infinity é uma associação de músicos superlativos, apesar das suas origens e percursos: Uma secção rítmica magnífica que sobreviveria por si só, a servir um saxofone impetuoso; conflituosa – que se alimenta das diferenças e das personalidades: um piano mais melodioso versus uma bateria e um contrabaixo angulosos – capazes de funcionar como uma unidade que se reconfigura a todo o momento, no suporte ao saxofone, prolongando-o, alimentando-o. E um saxofone que nunca perde de vista os companheiros; uma banda que funciona como uma unidade. Perfeita.
Contrariando o esperado – até pelo sucesso que o disco obteve - Murray apenas tocou um tema do disco de Be My Monster Love (2013)- «Sorrow Song»-, optando por recuperar antigas composições ou invocando outros autores como Thelonious Monk ou o «experimentalista» Lawrence Butch Morris. E foi ironicamente com um dançante «Spooning» de Buch Morris que Murray arrancou. E por essa altura já tinha a plateia do Guimarães Jazz aos seus pés.
James Carter Organ Trio
James Carter é um virtuoso absoluto. Dizer que – à semelhança de David Murray – Carter possui toda a história do saxofone nos dedos é ainda assim dizer pouco; mas o virtuosismo que exibe com despudor trai-o com frequência, como observámos por diversas vezes no passado, em prejuízo da música.
Curiosamente o grupo que Carter trouxe a Guimarães soube impôr alguma contenção no excesso que lhe conhecemos, em grande medida devido à sonoridade particular do Hammond B3. O órgão, que associamos à música negra popular, ao soul e ao gospel, imprime um fundo que, se evidencia a velocidade alucinante do saxofone, parece também puxá-lo para trás. E por sobre isto, a bateria, no meio do conflito, dócil e cantante a sublinhar o B3, explosiva a servir a exuberância do saxofone.
Triângulo de lados instáveis, debatendo-se entre a contradição de expôr o líder ou de lhe conter o exibicionismo, o Organ Trio logrou, ainda assim, revelar-se assertivo nos propósitos e realizar um bom concerto.
Adrián Oropeza Trio
Sem denotar quaisquer especiais qualidades, nas qualidades técnicas dos membros, ou na – vulgaridade da - música produzida, o concerto do Adrián Oropeza Trio revelou-se um incompreensível erro de casting.
Theo Bleckmann
O texto de apresentação de Theo Bleckmann no programa diria bastante do que iríamos assistir no Guimarães Jazz: «A sua obra mostra-nos, acima de tudo, um músico que encara o jazz como porta de entrada para um cosmos artístico no qual os diferentes estilos musicais confluem para compor um idioma expressivo universal».
Não se tratava portanto de um concerto de Jazz clássico, mas de um concerto onde o Jazz funcionava como uma «porta de entrada»; e diríamos que Bleckmann se ofereceu a si mesmo uma generosa amplitude no tratamento da música da cantora pop Kate Bush. E, esclarecidos os pressupostos musicais, tratava-se de alargar também os limites da crítica que embateriam necessariamente na heterodoxia dos compositores («Hello Earth! The Music of Kate Bush» foi composto por Theo Bleckmann e John Hollenbeck).
Música predominantemente escrita – a improvisação foi residual –, Bleckmann socorreu-se de materiais mais próprios de uma certa pop-rock «erudita» herdada do rock progressivo e do jazz-rock – os Pink Floyd com quem Bush colaborou e que lhe ofereceram muito da aura de cantora culta que granjeou no início dos anos 70, ou os Soft Machine-, mas também das estruturas minimalistas de Steve Reich, as onomatopeias circulares de Meredith Monk – influência declarada -, ainda o dramatismo das vocalizações de Peter Hammill, e aqui – «William»- e ali – «Bertie» - o punk e o metal, o psicadelismo e a electricidade. O Jazz assomou mais explícito, através do saxofone, no medley «Hello Earth/ Never Forever», mas claramente a ortodoxia nunca fez parte das preocupações da escrita.
Enfim, não se retire que do cosmos estético onde Theo Bleckmann navega nasce uma confusão de formas: as referências que lhe divisamos surgem sempre necessárias num projecto consistente, e o cantor nunca perde de vista a obra, o universo, de Kate Bush; mas diria sem exagero que «Hello Earth! The Music of Kate Bush» valorizou a obra da cantora pop, oferecendo-lhe até uma seriedade que ela não possui.
Concerto inclassificável, que pôs à prova as qualidades vocais e artísticas de Theo Bleckmann – que joga com a contradição de cantar uma cantora pop através de uma música que a ultrapassa, contradição que transporta também para a postura em palco-, resultando num espectáculo belíssimo.
Big Band e Ensemble de Cordas da ESMAE + Reut Regev, Taylor Ho Bynum, com Adam Lane e Igal Foni
Resultante da residência anual promovida e desde sempre acarinhada pelo Guimarães Jazz, o concerto de 2014 levou ao palco a Big Band mais o Ensemble de Cordas da ESMAE, dirigidos pelo quarteto que este ano alimentou as jam sessions diárias, Reut Regev, Taylor Ho Bynum, Adam Lane e Igal Foni.
Ambicioso projecto de fusão/ combinação de universos clássica-improvisação-Jazz, denunciado à partida pelas formações (a Big Band possui alguma formação Jazz, enquanto o Ensemble de Cordas trabalha na área clássica) e pelas direcções, revelou-se desigual nos resultados, até pela diversidade de propostas e dos autores; sendo verdade também que hora e meia de concerto com jovens estudantes não deixou compreender até que ponto as diferentes propostas terão resultado conseguidas.
O mais conseguido dos temas terá sido «Elephant Steps» com que o concerto iniciou, tema de Reut Regev e Igal Foni dirigido pela trombonista, revelando um notável esforço de interpenetração de formas que - mesmo se colocavam a nu a contradição entre as cordas que ainda que aprisionadas na pauta pareciam voltear como as asas de um pássaro, e os sopros que as desafiavam e mordiam - resultou num elegante exercício musical.
Um outro tema - «Questions for Transfiguration»-, com a orquestra que, começando segmentada em três, se reconfigurava (transfigurava?) através de diferentes associações instrumentais, em «improvisações livres» dirigidas por três condutores, colocou mais questões que resolveu; e, enfim, o tema final – «Ashcan Rantings»-, com o todo dirigido por Adam Lane, e muito ao seu jeito, num ritmado funky, obteve o maior aplauso da noite.
Susana Santos Silva Impermanence
Programado para a PAC/ Black Box, reservado a concertos mais alternativos, o palco revelou-se o ideal para o projecto, com muito de experimentalista, multidisciplinar, de Susana Santos Silva, e que resultava de uma residência com Torbjorn Zetterberg, contrabaixista com quem a trompetista tem tocado recentemente e gravado; ainda João Pedro Brandão, Hugo Raro e Marcos Cavaleiro do Porta-Jazz e a artista de media Maile Colbert; assinalando o início da colaboração entre o Guimarães Jazz e a Associação Porta-Jazz.
Uma das trompetistas mais dotadas no meios nacionais, com presença regular na Orquestra Jazz de Matosinhos, Susana Santos Silva tem investido desde há algum tempo em áreas onde o Jazz é com por vezes uma referência esquiva, ora introduzindo elementos recuperados da música erudita ou do free-jazz, ora aproximando-se do que se vem designando de «música improvisada» ou «improvisação livre» e que genericamente engloba música de vagas estruturas rítmicas ou onde a composição é reduzida ou formas dissonantes ou abstractas. A minha definição é simplista, mas a própria denominação assim o autoriza. Os resultados são também diferentes, até pelo carácter experimentalista de muita da música.
Sem constituir propriamente uma novidade (o espectáculo multidisciplinar combinando música e projecção video), a colaboração com Maile Colbert perseguia esse carácter experimentalista, mas a ideia resultou a meu ver falhada. As imagens – texturas indefinidas em movimento, paisagens desfocadas, superfícies que se reconfiguravam, fluidos que borbulhavam – teriam como intenção introduzir um outro plano dimensional-sensorial que completaria a percepção da música.
Mas as imagens não acrescentaram nada ao concerto, resultando mesmo num alheamento da música (numa distracção para o receptor). Alternando momentos de «improvisação livre» com composições de forte componente escrita, a abstracção foi a dominante do concerto, com combinações tímbricas invulgares sucedendo-se a solos do trompete ou do contrabaixo, recusando sempre a facilidade nas estruturas rítmicas, onde aqui e ali pareceu assomar um tímido hard-bop, logo contrariado em sequências «ilógicas».
Concerto bastante experimental, pouco acessível ao grande público, a seriedade da proposta musical esteve sempre patente no concerto de Susana Santos Silva.
Jam sessions
De entre as «actividades paralelas» do Guimarães Jazz, as jam sessions diárias que ocorrem no final dos concertos principais, são incontestavelmente os acontecimentos mais relevantes, proporcionando improváveis confrontos entre músicos consagrados de diferentes origens e jovens músicos ansiosos por exibir os seus dotes. Os «animadores» das jam sessions são sempre o grupo que realiza o primeiro concerto da segunda semana, mas todos os músicos que tocam no festival são convidados a participar.
Na única noite em que desci ao Convívio (a emblemática sala das jam sessions, situada no centro histórico da cidade, que desde há alguns anos alterna com o Café Concerto do Vila Flor), o quarteto residente proporcionou-me vislumbrar um pouco do que haveria de acontecer na quarta-feira seguinte (concerto a que já não assisti). Contrariando as minhas expectativas, Reut Regev revelou-se uma trombonista impetuosa, mas clássica – lembrando-me até um pouco a clarinetista Anat Cohen –, enquanto Taylor Ho Bynum me pareceu desconfortável na interpretação dos clássicos, ao contrário de Adam Lane que esteve incansável e Igal Foni, eficiente e assertivo no estímulo dos jovens estudantes.
Um momento algo recambolesco aconteceu quando James Carter e o organista Gerard Gibbs chegaram. Curiosamente, enquanto Carter foi tirando pacientemente o tenor do estojo esperando o final do tema, Gibbs literalmente empurrou o jovem pianista que tocava, apropriando-se do banco. Um pouco depois James Carter juntava-se aos sopros, entabulando um animado diálogo com o jovem estudante Hristo Goleminov que suava, procurando responder ao monstro do saxofone que o desafiava com bonomia.
Um momento revelador da generosidade de do maior saxofonista do planeta e da má educação de Gibbs.
E a música continuou animada.
Ter 4 | Guimarães | Centro Cultural Vila Flor | 21.30 | Histórias de Jazz em Portugal | Combo da Ac. Val. de Carvalho (Porto) toca André Fernandes | Marco Paiva (sa), Francisco Matos (p), Mário Correia (g), Carlos Cruz (b-el), Diogo Monteiro (bat) |
Qua 5 | Guimarães | Centro Cultural Vila Flor | 21.30 | Histórias de Jazz em Portugal | André Fernandes «carta branca» |
André Fernandes (g), José Pedro Coelho (st, ss), João Pedro Brandão (sa, f), Nelson Cascais (ctb), Iago Fernández (bat) |
Qui 6 | Guimarães | Centro Cultural Vila Flor | 22.00 | David Murray Infinity Quartet | David Murray (s), Orrin Evans (p), Jaribu Shahid (ctb), Nasheet Waits (bat) | |
Sex 7 | Guimarães | Centro Cultural Vila Flor | 22.00 | James Carter Organ Trio | James Carter (s), Gerard Gibbs (hamb3), Elmar Frey (bat) | |
Sáb 8 | Guimarães | Pac / Black Box | 17.00 | Adrián Oropeza Trio | Adrián Oporeza (bat), Gustavo Mezo (p), Jean Bardy (ctb) | |
Guimarães | Centro Cultural Vila Flor | 22.00 | Theo Bleckmann: Hello Earth! The Music Of Kate Bush | Theo Bleckmann (voz), Henry Hey (p, tec, voz), Caleb Burhans (v, g, voz), Skúli Sverrisson (b, voz), Ben Wittman (bat) | ||
Dom 9 | Guimarães | Centro Cultural Vila Flor | 17.00 | Big Band, Ensemble de Cordas e Coro da ESMAE | Reut Regev (dir), Taylor Ho Bynun (dir) | |
Guimarães | Pac / Black Box | 22.00 | Projeto Guimarães Jazz / Porta Jazz | Susana Santos Silva (t), João Pedro Brandão (s), Hugo Raro (p), Torbjorn Zetterberg (ctb), Marcos Cavaleiro (bat), Maile Colbert (vídeo, som) | ||
Seg 10 | Guimarães | Centro Cultural Vila Flor | 21.30 | Histórias de Jazz em Portugal | Combo do CM da Jobra (Albergaria-a-Velha) toca João Paulo Esteves da Silva | Hugo Barbosa (s), Marco Santos (p), Miguel Cordeiro (g), André Hortelão (ctb), Rafael Alcaide (bat) |
Ter 11 | Guimarães | Centro Cultural Vila Flor | 21.30 | Histórias de Jazz em Portugal | João Paulo Esteves da Silva «carta branca» |
João Paulo Esteves da Silva (p), Afonso Pais (g) |
Qua 12 | Guimarães | Centro Cultural Vila Flor | 22.00 | Reut Regev, Taylor Ho Bynum, Adam Lane, Igal Foni | Reut Regev (trb), Taylor Ho Bynum (corneta), Adam Lane (ctb), Igal Foni (bat) | |
Qui 13 | Guimarães | Centro Cultural Vila Flor | 22.00 | Uri Caine Trio | Uri Caine (p), Mark Helias (ctb), Clarence Penn (bat) | |
Sex 14 | Guimarães | Centro Cultural Vila Flor | 22.00 | Lee Konitz Quartet | Lee Konitz (s), Florian Weber (p), Jeremy Stratton (ctb), Georges Schuller (bat) | |
Sáb 15 | Guimarães | Centro Cultural Vila Flor | 22.00 | Trondheim Jazz Orchestra, Eirik Hegdal & Joshua Redman | Eirik Hegdal (s), Joshua Redman (s), Stein Villanger (trom), Erik Johannessen (trb), Evind Lonning (t), Trine Knutsen (f), Stig Aarskog (cl), Nils Olav Johansen (g), Ole Morten Vagan (ctb), Tor Haugerud (bat), Ola Kvernberg (v), Oyvind Hegen (celo), Marianne Lie (celo) |