Guimarães Jazz 2017
Talvez que o adjectivo que melhor se aplique à programação do mais importante festival de Jazz nacional, o Guimarães Jazz, seja a diversidade, sem que a sua personalidade enquanto festival de Jazz – construída ao longo de vinte e seis anos - tenha sido beliscada. Capaz de trazer a Portugal algum do mais interessante e actual Jazz que se pratica internacionalmente, com uma marca bastante americana, o Guimarães Jazz 2017 confirmou o elevado nível a que acostumou o seu público, apesar de uma ou outra proposta mais questionável ou menos conseguida.
Pelo Guimarães Jazz passaram, na primeira semana, Nels Cline à frente da Orquestra de Guimarães, o Andrew Cirylle Quartet «The Declaration of Musical Independence», a All Star Orchestra, o irreverente Mostly Other People do The Killing na sua versão septeto, o trio suíço VEIN com Rick Margitza, a Big Band e Ensemble de Cordas ESMAE dirigidos por Jeff Lederer e Mary LaRose, resultante das workshops com estudantes do curso de Jazz da ESMAE, e o Projeto Guimarães Jazz/ Porta-Jazz #4.
Tive oportunidade de destacar o concerto da All Star Orchestra plays Jazz: «The Story - An exciting musical trip through 100 years of Jazz recording» (com Vincent Herring, Jon Faddis, Jeremy Pelt, Eric Alexander, James Carter ou Wycliffe Gordon), que comemorava a edição do primeiro disco de Jazz editado, da Original Dixieland Jass Band, 1917), e o Mostly Other People do The Killing, que nesta sua composição alargada recuperava (pelo menos em disco, no que lhe conheço) o espírito do Jazz de New Orleans, e gostaria de ter assistido ao projecto multidisciplinar Guimarães Jazz/ Porta-Jazz #4, que tem obtido resultados desiguais, mas sempre interessantes, nas versões anteriores.
Jan Garbarek Group feat. Trilok Gurtu
A segunda semana iniciou-se com o quarteto de Jan Garbarek com Trilok Gurtu.
Infelizmente esta não é a melhor proposta de Garbarek, um músico bastante popular pela sonoridade - perigosamente, diria eu – melodiosa, que conseguiu ao longo dos anos sobreviver a si mesmo introduzindo elementos estranhos à sua música que lhe acrescentaram interesse. Não foi o caso deste quarteto, e Garbarek parece ter desde há algum tempo ter esgotado a inspiração, que vive exclusivamente do virtuosismo dos seus membros, esvaziado de novidade, novas composições ou algum sangue novo, enfim.
Penoso: duas horas em que a música foi substituída por espectáculo, com longos solos e poucas ideias num verdadeiro exercício de vacuidade. Yuri Daniel parece querer superar Jaco Pastorius em velocidade, Bruninghaus salta de referência em referência, de Art Tatum para o free, de Lennie Tristano para o boogie woogie no mesmo solo, Gurtu, que é um excelente percussionista mas um baterista mediano, acrescentou um pedal de bombo duplo (ao jeito dos baterista de metal) e não sabe que fazer aos pratos de choque, revela-se nas tablas, ainda que nem sempre de forma oportuna, e não resiste a exercícios de puro espectáculo em acessórios coloridos mas gratuitos. Jan Garbarek, enfim, mais meloso que nunca no saxofone tenor e vulgar no soprano, em solos intermináveis, e apenas um solo interessante (a revelar que poderia), já no último tema.
Allison Miller |
E a banda regressa para um encore: mais e mais excesso, menos e menos ideias, mais e mais espectáculo, menos e menos música. Despiciendo, enfim.
Allison Miller’s Boom Tic Boom
A música, enfim, e o Jazz, chegou no dia seguinte pelas mãos do grupo de Allison Miller, uma jovem baterista que se tem vindo a fazer notar. E quanta diferença!
Enérgica, muito veloz, jovial, humorada e criativa, numa bateria de onde afasta polirritmias ou quaisquer veleidades, Miller afirma-se inequivocamente a líder, também nas composições onde conta histórias que aqui e ali esclarece, como no lamento a um amigo desaparecido ou o tema dedicado à América de Trump, mas sempre revelando paisagens, emoções.
Ela estimula a banda, numa música que claramente recupera a alegria do Jazz de New Orleans, secundada por um grupo de músicos de excepção, onde pontuam a cornet rude de Kirk Knufke, o dinâmico Ben Goldberg nos clarinetes ou o insuspeitado piano de Myra Melford, que conhecemos como a pianista de Anthony Braxton, e que aqui se revelou capaz de tocar qualquer coisa, eficiente na execução das propostas de Miller.
Vale a pena reafirmar a liderança da jovem Allison Miller: não apenas ela foi capaz de dirigir com asserto um grupo de consagrados monstros do Jazz, como lhes soube oferecer composições frescas e engenhosas, que os inspiraram. O resto foi o grande Jazz, que mais uma vez abençoou o Guimarães Jazz.
Jeff Lederer/ Joe Fiedler Quartet feat. Mary LaRose
O grupo que dirigiu as workshops e alimentou as jam sessions aos longo das duas semanas do festival tocou no sábado à tarde no Pequeno Auditório do Vila Flor.
Com um grupo constituído por bons músicos, embora claramente reunido para a ocasião, o Jeff Lederer/ Joe Fiedler Quartet feat. Mary LaRose fez um concerto agradável, mesmo se pelo nível dos músicos me soube a pouco. Elegi o disco de Lederer do ano passado – o Brooklyn Blowhards - um dos melhores do ano, e confesso que, mesmo não sendo o seu grupo, eu esperava mais. O repertório do concerto foi basicamente constituído por clássicos, embora menos populares, e apenas um original, do que me apercebi.
Lederer e Fiedler foram sempre eficazes e inspirados nos solos, em temas onde não houve novidade nos arranjos, e Mary LaRose demonstrou que sabe fazer scat, embora também nada tenha acrescentado ao grupo. Elegância e humor para o histórico George Schuller e juventude e asserto para Nick Dunston.
Um bom concerto, apesar das minhas observações.
Darcy James Argue’s Secret Society «Real Enemies»
O concerto da Darcy James Argue’s Secret Society, que encerrou a XXXX edição do Guimarães Jazz, foi constituído basicamente pela reprodução ao vivo do excelente Real Enemies, de 2016.
Darcy James Argue |
A música de Darcy James Argue consagra o primado da escrita no Jazz, na herança de Duke Ellington - Gil Evans - Bob Brookmeyer, e não será surpresa pois que ele tenha sido aluno de Brookmeyer. Questionável da mesma forma, como já o fora a música de Ellington ao seu tempo (ou Evans ou Brookmeyer), enquanto Jazz, ao relegar amiúde a improvisação para espaços cada vez mais contraídos - mas essa é outra conversa.
Real Enemies é um todo, e não um conjunto de canções dispersas, e fala de teorias da conspiração e dos «real enemies» da sociedade de informação. A própria figura do director infunde dramatismo em composições que possuem muito de teatral, quase todas precedidas de uma gravação em jeito de introdução.
Mas a teatralidade nunca é excessiva ou inadequada; ela é subtil e oportuna e nunca se substitui à música, também ele dramática – que não exclui um subtil humor, e rigorosamente composta para servir a história com eficiência.
Com grandes solistas, para além de Dave Pietro e Rob Wilkerson, e outros que não consegui identificar, a Secret Society é um colectivo perfeito, moldado por um rigor absoluto, mas é também o instrumento de Darcy James Argue, um dos grandes compositores e directores da actualidade; de uma genuína contemporaneidade, liminarmente ignorado pelos grandes promotores culturais nacionais.
Acontecimento verdadeiramente extraordinário; obrigado Guimarães Jazz.
Nota: Real Enemies de Darcy James Argue foi votado pela crítica nacional (reunida por JazzLogical) como o segundo melhor disco do ano passado.
Jam sessions
A crónica do Guimarães Jazz não ficaria completa sem falar das jam sessions, que na segunda semana do festival decorreram no Convívio, e para onde acorreram, todas as noites, músicos e público, em reuniões e encontros inesperados. Dirigidas por um atento e generoso Jeff Lederer, por lá passaram músicos das bandas de Allison Miller e da orquestra de Darcy James Argue (Myra Melford, Kirk Knuffke, Ben Goldberg …), para além de jovens estudantes, numa oportunidade única para os jovens, e enorme gozo para o público.
E assim decorreu o mais importante festival de Jazz nacional.
Leonel Santos
(Leonel Santos esteve no Guimarães Jazz a convite do festival)
(Fotos por Paulo Pacheco)
Qua 8 | Guimarães | CCVF- GA | 21.30 | Nels Cline «Lovers» + Orquestra de Guimarães |
Nels Cline (g), Michael Leonhart (t, dir), Alex Cline (bat), Devin Hoff (ctb, b-el) + Orquestra de Guimarães: Álvaro Pereira (v), Carina Albuquerque (celo), Luís Alves (ob), Pedro Martinho (fag), Domingos Castro (cl), Paulo Martins (clb), Ângelo Fernandes (t), Tiago Rebelo (t), David Silva (trb), Vítor Castro (vib), Ingrid Sotolarova (celesta), Catarina Rebelo (har), Eurico Costa (g) |
Qui 9 | Guimarães | CCVF- GA | 21.30 | All Star Orchestra plays Jazz – «The Story - An exciting musical trip through 100 years of Jazz recording» |
Vincent Herring (sa, ss, f, cl, dir), Jon Faddis (t), Jeremy Pelt (t), Eric Alexander (st), James Carter (st, sb, f, cl), Wycliffe Gordon (trb, shells), Mike LeDonne (p), Kenny Davis (ctb, b-el), Carl Allen (bat), Nicolas Bearde (voz, narração) |
Guimarães | CCVF / Café Concerto | 24.00 | jam sessions | Jeff Lederer (s, cl), Joe Fiedler (trb), Mary LaRose (voz), George Schuller (bat), Nick Dunston (ctb) | |
Sex 10 | Guimarães | CCVF- GA | 21.30 | The Andrew Cyrille Quartet «The Declaration of Musical Independence» |
Andrew Cyrille (bat), Richard Teitelbaum (sint, p), Ben Street (ctb), Ben Monder (g) |
Guimarães | CCVF / Café Concerto | 24.00 | jam sessions | Jeff Lederer (s, cl), Joe Fiedler (trb), Mary LaRose (voz), George Schuller (bat), Nick Dunston (ctb) | |
Sáb 11 | Guimarães | CCVF- PA | 18.30 | VEIN feat. Rick Margitza |
Michael Arbenz (p), Thomas Lähns (ctb), Florian Arbenz (bat), Rick Margitza (st) |
Guimarães | CCVF- GA | 21.30 | Mostly Other People Do The Killing «Loafer’s Hollow» | Moppa Elliott (ctb), Steven Bernstein (slide t), Dave Taylor (trb, trbb), Jon Irabagon (st, ss), Ron Stabinsky (p, sint), Brandon Seabrook (g, bj, elec), Kevin Shea (bat) | |
Guimarães | CCVF / Café Concerto | 24.00 | jam sessions | Jeff Lederer (s, cl), Joe Fiedler (trb), Mary LaRose (voz), George Schuller (bat), Nick Dunston (ctb) | |
Dom 12 | Guimarães | CCVF- GA | 17.00 | Big Band e Ensemble de Cordas ESMAE | Jeff Lederer (dir), Mary LaRose (dir) |
Guimarães | PAC / Black Box | 21.30 | Projeto Guimarães Jazz/ Porta-Jazz #4 |
Nuno Trocado (g), Tom Ward (s, f, clb), Sérgio Tavares (ctb), Acácio Salero (bat), Jorge Louraço Figueira (dramaturgia), Catarina Lacerda (interpretação) | |
Qui 16 | Guimarães | CCVF- GA | 21.30 | Jan Garbarek Group feat. Trilok Gurtu |
Jan Garbarek (s), Trilok Gurtu (bat, per), Rainer Brüninghaus (tec, p), Yuri Daniel (ctb) |
Guimarães | Convívio | 24.00 | jam sessions | Jeff Lederer (s, cl), Joe Fiedler (trb), Mary LaRose (voz), George Schuller (bat), Nick Dunston (ctb) | |
Sex 17 | Guimarães | CCVF- GA | 21.30 | Allison Miller’s Boom Tic Boom | Allison Miller (bat), Myra Melford (p), Haggai Cohen (ctb), Charles Burnham (v), Kirk Knuffke (t), Ben Goldberg (cl) |
Guimarães | Convívio | 24.00 | jam sessions | Jeff Lederer (s, cl), Joe Fiedler (trb), Mary LaRose (voz), George Schuller (bat), Nick Dunston (ctb) | |
Sáb 18 | Guimarães | CCVF- PA | 18.30 | Jeff Lederer/ Joe Fiedler Quartet feat. Mary LaRose |
Jeff Lederer (s, cl), Joe Fiedler (trb), Mary LaRose (voz), George Schuller (bat), Nick Dunston (ctb) |
Guimarães | CCVF- GA | 21.30 | Darcy James Argue’s Secret Society «Real Enemies» | Darcy James Argue (dir), Dave Pietro (f, ftim, falto, ss, sa), Rob Wilkerson (f, cl, sa, ss), Peter Hess (cl, ss), Lucas Pino (cl, clb, st), Carl Maraghi (cl, clb, sb), Jonathan Powell (t), Sam Hoyt (t), Matt Holman (t), Nadje Noordhuis (t), David Smith (t), Mike Fahie (trb), Ryan Keberle (trb), Darius Christian Jones (trb), Jennifer Wharton (trb), Sebastian Noelle (g), Adam Birnbaum (p), Matt Clohesy (ctb), Jared Schonig (bat) |
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Guimarães | Convívio | 24.00 | jam sessions | Jeff Lederer (s, cl), Joe Fiedler (trb), Mary LaRose (voz), George Schuller (bat), Nick Dunston (ctb) |