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Jazz em Agosto

2011

Não é fácil escrever sobre o Jazz em Agosto. Não porque a música que Rui Neves programa seja mais ou menos «difícil», mas pela inconveniência que podem significar as palavras menos agradáveis ou contestantes. A crítica de Jazz que é feita ao festival, que possui atrás de si o peso da prestigiada Fundação Calouste Gulbenkian, com um papel incontornável em prol da cultura e da arte, é quase sempre reverente. Ora o festival assume-se polémico e inovador:
«O Jazz em Agosto continua a apresentar, em 2011, o outro lado do jazz com formações e músicos incontornáveis, numa programação que demonstra a capacidade de mudança e inovação do jazz contemporâneo»,
e mais à frente, anunciando alterações na sua fórmula:
«Para além dos concertos no Anfiteatro ao ar Livre, este ano o Jazz em Agosto estende a sua programação, ao longo da semana, a um espaço recente na cidade, o Teatro do Bairro (Bairro Alto). Retomando o espírito do clube de jazz, num ambiente mais informal, serão apresentados nestes teatros concertos arrojados e experimentais de pequenas formações de jazz.»
Enfim, não é fácil, também, questionar o trabalho de músicos que fazem da arte a sua profissão, e tão-pouco o trabalho do programador.
Ora o Jazz em Agosto merece, e o público amante do Jazz merece, exigem, pela modernidade e autoridade de que o festival se reivindica, uma crítica atenta e isenta que não se compadeça com reverências ou esquecimentos.
Assisti a todos os concertos do Jazz em Agosto 2011, com excepção para as sessões de: «música mixada, transformando temas de jazz com sonoridades funk e imagens em tempo real», que decorreram no final dos concertos no Teatro do Bairro a que me dispensei de assistir e sobre que me escusarei de falar.
Do meu ponto de vista, o Jazz em Agosto 2011 contou, desde que me recordo, com alguns dos melhores, a par de alguns dos piores, concertos, que justificam dois textos diferentes.

O Jazz, a vanguarda de hoje e de ontem

Cecil Taylor
Cecil Taylor foi o músico escolhido para abrir o Jazz em Agosto 2011. Ícone do free-jazz mais libertário dos anos 60 e 70, Cecil Taylor tornou-se uma lenda viva.
Verdadeiro asceta da música, o tempo acentuou a solidão que se adivinhava nesses primórdios, ao mesmo tempo que combinava a música com outras formas de expressão artística como a poesia ou o teatro. Mais do que um músico, Cecil Taylor tornou-se um artista.
O espectáculo de Taylor no Jazz em Agosto revelou um pianista algo mais contido e cerebral que o profeta do caos por que se tornou lendário; bastante mais do que qualquer das suas anteriores – raras – apresentações em Portugal, e creio que assisti a todas: Espinho 77 (5/5), Gulbenkian 88 (3,5/5) e CCB 2004 (2/5). Harmonicamente engenhoso (e até por vezes bluesy, num regresso às origens), ele foi capaz de surpreender, revelando um pouco do porquê da influência que é reivindicada por inúmeros dos mais interessantes pianistas da actualidade.
Infelizmente o concerto foi penalizado por uma prolongada e espúria representação poética. A longa e encenada declamação, recuperando palavras e postura política que Ferlinghetti ou Amiri Baraka (fora de tempo) não desdenhariam, confirmou a teatralidade (dispensável) que qualquer performance de Cecil Taylor sempre contém.


Ingrid Laubrock Anti-House
O segundo concerto do Jazz em Agosto levantou a fasquia mais alto: Ingrid Laubrock é já hoje um dos nomes mais seguros do Jazz de vanguarda. Acresce que o Anti-House que levou ao palco da Gulbenkian é constituído por cinco músicos acima de qualquer suspeita, todos eles executantes de primeira água, curiosamente todos eles também autores e líderes por mérito próprio. 
Tinha em mente ainda o projecto da saxofonista com Kris Davis e o baterista Tyshawn Sorey, gravado para a Clean Feed, Paradoxical Frog (4,5/5), e o concerto confirmou em palco todas as virtudes que lhe tinha observado no disco. Música exigente, rigorosa, radical, onde a escrita e a improvisação se confundem exemplarmente. Temos vindo a assistir à cada vez mais estreita relação de alguns músicos de Jazz com a música erudita, e este terá sido disso um exemplo acabado (como o viria a ser o concerto de John Hollenbeck), mesmo se Laubrock faz questão de se esclarecer dentro do universo Jazz. Escrita angulosa, recurso a figuras excêntricas que denunciam as influências de Lee Konitz como de David Liebman, ou Thelonious Monk, arranjos subtis que fazem deslocar o centro de gravidade de um para outro instrumentista, combinações de instrumentos singulares, uma base rítmica aparentemente extravagante (com o versátil Tom Rainey em exposição), mas inteligentíssima. As qualidades de Laubrock revelam-se também como líder e como arranjadora, na escolha criteriosa dos elementos do grupo, e na atribuição dos papéis a cada momento.


Wadada Leo Smith
O concerto de Wadada Leo Smith foi uma desilusão. Claramente inspirado no Jazz eléctrico de Bitches Brew, Leo Smith revelou-se um fraco sucedâneo. Longo e despropositado.


Peter Brotzmann
O concerto de Peter Brotzmann não surpreendeu quem o tem visto tocar ao longo dos últimos … 40 anos… Igual a si mesmo, Brotzmann é um modelo de coerência. Figura de proa do free-jazz europeu, é dono de um discurso que se baseia em grande medida em energia. Quem o tem seguido sabe que as diferenças fundamentais nos seus projectos residem nas formações, já que o seu discurso é basicamente semelhante. Ele pode ser mais ou menos violento, de acordo com o número de elementos da banda ou o radicalismo dos solistas, introduzindo um ou outro elemento «étnico», de acordo com as personalidades dos convidados. 
Composições ténues, improvisação descomedida e violência, numa performance elíptica.


John Hollenbeck
O concerto de encerramento do Jazz em Agosto, o Large Ensemble de John Hollenbeck foi o segundo grande momento do festival. Verdadeiro laboratório sonoro, o Large Ensemble (o Jazz em Agosto já trouxe também o outro grande projecto de Hollenbeck, em 2006, o The Claudia Quintet) confirma o que atrás escrevi, no texto sobre o Anti-House de Laubrock, quanto à aproximação do Jazz à música erudita. E com o Anti-House, fez os dois únicos dois concertos possíveis de ser enquadrados numa concepção de vanguarda.
Nunca como antes em Hollenbeck, como neste Large Ensemble que se apresentou na Gulbenkian, foi tão evidente o primado da escrita e, pode dizer-se, em detrimento do Jazz e da improvisação que lhe é devida. Discípulo de Gil Evans e de Bob Brookmeyer na manipulação das massas sonoras e na concepção espacial do som (e diferente de Elington no classicismo das formas), a música de Hollenbeck prima por uma complexidade e exuberância harmónica e rítmica nunca antes vista (anote-se no entanto a significativa persistência dos mesmos músicos na formação da banda, revelando a forma como ele escreve para estes músicos, bem de acordo com a forma de Ellington).
Hollenbeck veio à Gulbenkian apresentar o último trabalho para a grande formação, Eternal Interlude. Ao vivo ele confirmou toda a modernidade, rigor, robustez, beleza formal e luxúria que lhe conhecíamos do disco.


Punk-Jazz

Em Abril de 1993 os Painkiller deram um concerto no Armazém 22, ali para os lados de Xabregas. Do que me recordo, os Painkiller eram constituídos por John Zorn no saxofone, Bill Laswell no baixo e um baterista que vinha de um grupo de heavy metal, os Napalm Death, de que nunca soube o nome. Não avancei mais de dez metros para além da porta: o som era um verdadeiro pavor, estupidamente alto, reverberações por todo o lado, cheio de distorções e feedbacks. Não que isso tivesse alguma importância para a assistência, maioritariamente constituída por punks.
Os Painkiller formaram-se em 1991 e prolongaram-se até 1994. A ideia era combinar, sem se fundir, duas formas aparentemente antagónicas. Não sendo a ideia propriamente original - desde pelo menos os anos 70 que músicos de rock tocam com músicos de Jazz -, havia ainda assim algo de curioso na forma como o grupo preservava o essencial das duas formas, o free-jazz e o heavy-metal, numa estética «noise». O projecto possuía alguma singularidade plástica, mas pouco tinha de musical (e nada que não estivéssemos habituados em Zorn ou Laswell). A própria escolha – criteriosa – do local, um velho armazém portuário desprovido de qualquer acústica, denunciava a natureza do projecto, mais próxima do conceito de instalação plástica. Efémero, entre a pop art, a arte bruta e as construções de areia, o interesse do projecto nascia e esgotava-se no próprio momento.
Enfim, ao fim de algum tempo considerei a minha curiosidade satisfeita e pus-me a andar.

Os três concertos do Teatro do Bairro e o The Ex Guitars meet Nilssen-Love/ Vandermark Duo no Anfiteatro ao Ar Livre constituíram variações extemporâneas sobre o modelo de Zorn e Laswell.


Luís Lopes Humanization Quartet
O Luís Lopes Humanization Quartet era formado por ele mesmo na guitarra, Rodrigo Amado no saxofone tenor e os dois González filhos, ambos músicos de hard-rock. Como músicos de rock, eles até estariam acima da média, mas o modelo era fraco. Basicamente ele baseava-se em energia e, como foi observável, era tudo o que a plateia necessitava. Rodrigo Amado também não se afastou do modelo e soprou tão furiosamente quanto lhe foi possível: torrentes de notas onde esteve ausente qualquer preocupação de construção harmónica. Discurso igualmente minimalista foi o de Luís Lopes: um efeito, outro efeito, outro efeito, com tanto de casual quanto de incontrolado. Mas este era o projecto e tanto os músicos quanto o público rejubilavam. O som estava tão alto que impedia alguma lucidez de pensamento, e até o director da Jazz.pt – Rui Eduardo Paes - que, como se sabe, tem um estômago forte para estas coisas, se queixou.
No final do concerto era visível a satisfação dos músicos e do público. Não, não aplaudi.


Little Women
Do som se queixou também Gonçalo Falcão, o outro crítico enviado pela Jazz.pt ao concerto dos Little Women. O som conseguia realmente estar ainda mais alto que no dia anterior, e as ideias musicais eram inexistentes. Grupo formado por dois saxofones, uma guitarra eléctrica e uma bateria, claramente este não era também um projecto musical. Variante do espectáculo do dia anterior, os Little Women ensaiaram uma amostra de ritual tribal que desembocou no puro noise que se prolongou por duas longas horas.
Também não aplaudi (também não havia nada para aplaudir).


Fire!
Os Fire!, um trio dirigido pelo saxofonista sueco Mats Gustafsson, completou o ciclo de concertos do Jazz em Agosto no Teatro do Bairro. Discípulo de Peter Brotzmann, Gustafsson primou pela energia e desbragamento do mestre, num projecto que tinha como denominador o noise. O modelo continha alguns ingredientes originais: um pouco de electrónica, um baixo eléctrico e aqui e ali um apontamento exógeno que nunca passou do pretensioso e que não chegaram para lhe elevar o interesse.
Também não aplaudi.


The Ex Guitars + Ken Vandermark/ Paal Nilssen-Love
A formação esclarecia a proximidade ao modelo Painkiller: dois músicos de Jazz e dois guitarristas punk. Creio que não devo alongar-me muito sobre o que aconteceu no palco do Anfiteatro ao Ar Livre, mas algumas palavras devem ser ditas para justificar a minha classificação. Ken Vandermark, que parece esgotado de ideias, e Paal Nilssen-Love, limitaram-se a tocar, num discurso denso e minimalista, assente em energia e violência, enquanto os dois guitarristas retiravam ruídos das guitarras. Claramente, o interesse do espectáculo nunca esteve no resultado musical possível (?), mas na provocação propiciada pelas guitarras em concorrência com uma débil estrutura construída pelo saxofone e bateria. Mas claramente também, nenhum dos músicos estava a ouvir os outros e tão-pouco se tratava de um projecto musical. O clímax do concerto foi atingido quando os dois Ex começaram – literalmente - a arranhar as guitarras no chão, produzindo efeitos que não podiam controlar, nem o pretendiam. Não sei se se recordam da máxima do movimento punk: «se sabes sacar duas notas na guitarra, forma uma banda!», e os Ex Guitars pareceram querer fazer juz ao princípio. O que não é  compreensível é o que é que lá estavam a fazer músicos do calibre de Vandermak e Nilssen-Love, e o que é que isso tem a ver com o Jazz. O crítico da Jazz.pt, Gonçalo Falcão, situa bem o nível do concerto:
«O interesse do concerto centrou-se no diálogo bicéfalo. Por um lado, as guitarras com uma ligação única, fruto não só de 30 anos de música em conjunto como também de uma abordagem muito própria, uma sodomização criativa do instrumento, em que as cordas estão sempre em situações extremas, torcidas, arrastadas pelo chão, batidas, traficadas. »
Ignoro qual a tendência sexual das guitarras, mas não creio que alguém lhes tenha perguntado se queriam ser sodomizadas. Pelo meu lado, prudentemente, fui-me embora ao fim de meia hora de concerto.


Nenhum destes quatro concertos tinha qualquer coisa que fosse a ver com modernidade, contemporaneidade, vanguarda, e menos ainda com Jazz ou música. As suas características principais terão sido mesmo provocação e pretensiosismo vanguardista. Nenhum destes músicos demonstrou qualquer «capacidade de mudança e inovação do jazz contemporâneo» ou arrojo plástico, mas apenas diferentes formas de snobeira aborrecida e barulhenta.
Há quatro anos Peter Brotzmann deu uma entrevista ao jornalista do Expresso Rui Tentúgal. Consciente do facto de a sua música não ter tido qualquer evolução ao longo de quarenta anos, Brotzmann afirmava: «Eu sou um clássico». Mas músicos que se inspiram em Brotzmann e que nada acrescentam a Brotzmann, continuam a insistir que pertencem à vanguarda. Os Painkiller existiram num período curto, há vinte anos, e esgotaram-se esteticamente num período ainda mais curto. Uma descendência extemporânea autoproclama-se de «músicos avançados», «vanguardistas», «modernos», «contemporâneos», «novo Jazz», sei lá que mais.
Nenhuma vanguarda artística persistiu ao longo do século XX durante vinte anos enquanto tal (vanguarda). Na era da internet e da globalização, músicos e pretensos críticos insistem numa vanguarda que teria permanecido enquanto tal, incólume, durante meio século. Ridículo!
Ninguém nega a ninguém o direito de tocar o que quiser e gostar: bebop, dixieland, swing, como free-jazz ou punk. Do ponto de vista da História, subsistem já muito poucas diferenças, e todos eles podem oferecer aos músicos e ao público imenso prazer. Mas a vanguarda não está claramente em nenhum destes géneros. A auto-afirmação arrogante do free-jazz ou do punk-jazz como vanguarda, hoje, corresponde a não mais que uma grosseira mistificação.  
Se vanguarda ela existe, ela passou pelo Anfiteatro ao Ar Livre, sim, pelas mãos de Ingrid Laubrock e John Hollenbeck; claramente dois dos melhores concertos do ano. 


Mais informação em http://www.musica.gulbenkian.pt/pdf/2011_jazz_em_agosto_press_kit_pt.pdf.


Sex 5-Ago
Lisboa
Fundação Gulbenkian - Anfiteatro ao Ar Livre
21.30
Cecil Taylor
Cecil Taylor (p)
Sáb 6-Ago
Lisboa
Fundação Gulbenkian - Anfiteatro ao Ar Livre
21.30
Ingrid Laubrock Anti-House
Ingrid Laubrock (st, ss), Mary Halvorson (g-el), John Hébert (ctb), Tom Rainey (bat), Kris Davis (p)
Dom 7-Ago
Lisboa
Fundação Gulbenkian - Anfiteatro ao Ar Livre
21.30
Wadada Leo Smith Organic
Wadada Leo Smith (t, flis), Angelica Sanchez (p), Brandon Ross (g-el), Lamar Smith (g-el), Michael Gregory (g-el), Okkyung Lee (celo), John Lindberg (b), Skuli Sverrison (b-el), Pheeroan akLaff (bat), Jesse Gilbert (VJ)
Ter 9-Ago
Lisboa
Teatro do Bairro
22.00
Luís Lopes Humanization Quartet
Luís Lopes (guitarra eléctrica) / Rodrigo Amado (sax tenor, barítono) / Aaron Gonzáles (contrabaixo) / Stefan Gonzáles (bateria)
23.30
DJ Johhny + VJ PTV - jazz mixes
 
Qua 10-Ago
Lisboa
Teatro do Bairro
22.00
Little Women
Travis Laplante (st), Darius Jones (sa), Andrew Smiley (g-el), Jason Nazary (bat)
23.30
DJ Johhny + VJ PTV - jazz mixes
 
Qui 11-Ago
Lisboa
Teatro do Bairro
22.00
Fire!
Mats Gustafsson (st, sb, p-el Fender, elec), Johan Berthling (ctb, b-el), Andreas Werlin (bat)
23.30
DJ Johhny + VJ PTV - jazz mixes
 
Sex 12-Ago
Lisboa
Fundação Gulbenkian - Anfiteatro ao Ar Livre
21.30
Brotzman/ Kondo/ Pupillo/ Nilssen-Love «Hairy Bones»
Peter Brötzmann (sax tenor, clarinete, tarogato) / Toshinoro Kondo (trompete, electrónica) / Maximo Pupillo (baixo eléctrico) / Paal Nilssen-Love (bateria)
Sáb 13-Ago
Lisboa
Fundação Gulbenkian - Anfiteatro ao Ar Livre
21.30

The Ex Guitars meet Nilssen-Love/ Vandermark Duo

Terrie Ex (g-el), Andy Moor (g-el), Paal Nilssen-Love (bat), Ken Vandermark (st)
Dom 14-Ago
Lisboa
Fundação Gulbenkian - Anfiteatro ao Ar Livre
21.30
John Hollenbeck Large Ensemble
Ben Kono (f, sa, ss), Jeremy Viner (cl), Tony Malaby (st, ss), Dan Willis (st, ss, oboé), Bohdan Hilash (sb, clb), Rob Hudson (trb), Mike Christianson (trb), Jacob Garchik (trb), Alan Ferber (trbb), Jon Owens (t), Tony Kadleck (t), Dave Ballou (t), Laurie Frink (t), Kermit Driscoll (b-el), John Hollenbeck (bat), Matt Mitchell (p), Matt Moran (vib), Theo Bleckmann (voz), J.C.Sanford (condutor)