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Jazz em Agosto

2022

 

“We don't see things as they are, we see them as we are.”
Anaïs Nin

Conceber a programação de uma sala, seja de concertos, exposições, espectáculos ou um festival, não é tarefa fácil; ademais quando se pretende fugir à oferta que dos promotores; construindo a partir de um conceito, uma ideia ou um tema. A empreitada é (pode ser) interessante, e legítima, e legitimável, ao procurar oferecer coerência ao todo que se pretende exibir.

Mas neste processo, é muito comum um erro que decorre dos gostos, das amizades ou das convicções do programador, que sobreleva uma ou outra característica do produto a exibir, ou mesmo distorce a realidade em função dessas convicções: “Não vemos as coisas como são: vemos as coisas como somos.”

Vem a prolusão a propósito do texto que o Jazz em Agosto publicou na justificação da programação do festival para 2022, mesmo se eu – quase (“quase”, porque as associações não deverão ser determinadas pela visão jornalística sensacionalista ou as nossas convicções. Por exemplo, não apenas o punk nasceu no final dos anos 70, mas também os Duran Duran: a realidade é mais complexa.) – assinaria por baixo o primeiro parágrafo do texto da apresentação.

E o disparate começa logo depois. Não me vou dar ao trabalho de escalpelizar o texto, mas confundir o Jazz de Chicago com a AACM ou New York a John Zorn é no mínimo redutor – e não estou a retirar importância a um ou outro, em torno dos quais se contruiu muita da música interessante que se fez nos últimos setenta anos, e mesmo se, de certa forma, estes movimentos e esses músicos autorizaram novas experiências e novos caminhos; mas apenas estou a dizer que o Jazz (e a música) dessas cidades é muito mais do que isso.

E se a transposição do Jazz dos anos 60 – 70 para a actualidade é abusiva, quando se chega a Lisboa o disparate é total. Escrever: «Pela mão de Carlos “Zíngaro”, João Lencastre, Pedro Carneiro e Rodrigo Pinheiro encostaremos o ouvido ao som da Lisboa de hoje», é simplesmente parvo. É ignorar a efervescente e diversa cena musical lisboeta, em especial no que ao Jazz respeita. É ignorar, não apenas os veteranos que desde há mais de trinta anos fazem a cena Jazz nacional, mas também os jovens músicos que saíram ou passaram pela escola do Hot Club ou das outras escolas do país e cidades, os músicos que confluíram em Lisboa. É, no mínimo, obtuso.

Os músicos que o Jazz em Agosto traz a Lisboa estão longe de representar a cena de Chicago, de New York ou de Lisboa (e, se ainda não fui claro, dificilmente seria possível encontrar músicos capazes de representar estas três cidades, tal a diversidade de projectos, correntes e formas que as percorrem), tornando claro que o que Rui Neves fez foi apenas inverter o processo de construção do programa, adaptando – forçando - a realidade aos seus gostos pessoais e às suas concepções do que deveria ser o Jazz contemporâneo ou a vanguarda: «neste trânsito entre alguns dos lugares onde o jazz vive com uma pulsação mais intensa e criativa»: a criatividade, é ele que decide.

Rui Neves é o director artístico do Jazz em Agosto, e ele não precisa da minha autorização para a ele trazer os músicos de que gosta, mas se pretende dar substância teórica à sua programação convém que não deforme a realidade, sob pena de estar a lograr o público.

Fiel a si mesmo, o Jazz em Agosto 2022 prima pela irregularidade. Vou limitar-me a sugerir os concertos que considero mais interessantes, com relevo para o Borderlands Trio.

Do ponto de vista estritamente musical, na modernidade e na concepção, o produto mais interessante do festival acontecerá com o Borderlands Trio, de Kris Davis, Stephan Crump e Eric McPherson (sábado 6, Anfiteatro ao Ar Livre). Compositora e pianista, Kris Davis possui uma sólida formação clássica (“György Ligeti é o mais importante músico do século XX”), tendo-se aproximado do Jazz numa forma feliz onde confluem Geri Allen, Cecil Taylor, Paul Bley e Andrew Hill. O irreverente Stephan Crump é um baixista que alguém definiu como possuidor de um «punch gutural», e que nunca se remete ao papel de mero sideman. Eric McPherson é um monstro da bateria, um músico completo, capaz de tocar literalmente tudo.

Outro dos concertos interessantes poderá ser o John Zorn New Masada Quartet (dom 7, AAL). O quarteto surgiu depois de um encontro ocasional de Zorn com o trio de Julian Lage com Jorge Roeder e Kenny Wollesen em 2018. O Masada é uma formação de geometria variável, para onde contribuíram, ao longo dos últimos quarenta anos, entre inúmeros outros, Dave Douglas e Bill Frisell, parta além de Zorn. Confesso que considero John Zorn melhor compositor que instrumentista, preso numa estética ayleriana de que não logra escapar, mas o mesmo não direi do trio de Lage – Roeder – Wollensen, três músicos de excepção. Diria que se Zorn se não exceder o público da Gulbenkian poderá assistir a um bom concerto.

O Damon Locks Black Monument Ensemble será provavelmente outro dos grandes momentos do festival. Com um espectáculo que se inspira no Sun Ra dos últimos anos (um Sun Ra smooth) e no jazz africanista dos Art Ensemble of Chicago, e cruzando ainda elementos do gospel e do hip hop, numa afirmação politizada; o grupo do músico e artista visual Damon Locks deverá fazer o mais colorido espectáculo do Jazz em Agosto.  1 de Agosto, AAL.

Politizado será o Jazz dos Irreversible Entanglements, um grupo onde pontua a cantora Moor Mother, uma clara invocação moderna da forma spoken word (até na poesia) de Amiri Baraka, numa música que ritmicamente se funda no hip hop e a que não será alheio o free jazz dos AACM, de que, com Damon Block será o mais directo representante no Jazz em Agosto. 30 de Julho, AAL.

Músico muito activo desde os anos 90 como líder dos projectos Chicago Underground e o São Paulo Underground, Rob Mazurek tocou neste mesmo palco com Pharoah Sanders há dez anos. Diria que a música actual de Mazurek procura encontrar alguma dessa espiritualidade (de Sanders), com resultados diferentes. A Exploding Star Orchestra de Rob Mazurek está recheada de notáveis - como Nicole Mitchell, Jaimie Branch, Angelica Sanchez ou Chad Taylor. Dom 31, AAL.

Unlimited Dreams, de 2021, é o mais interessante dos trabalhos João Lencastre’s Communion, para onde Lencastre ofereceu um ambicioso trabalho de composição e orquestração, e para que convidou a nata do Jazz nacional, executantes e improvisadores. A confirmar como se comportam ao vivo.   

 

Jazz em Agosto
Fundação Calouste Gulbenkian
Director: Rui Neves

 

 

 

 

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