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Jazz em Agosto

2023

 

Com o Jazz em Agosto encerra-se a época dos grandes festivais de Jazz de verão.
Há festivais para todos os gostos e de música e de Jazz também. Há festivais de Jazz locais, nacionais e internacionais, festivais genéricos e os que obedecem a um conceito. O Jazz em Agosto cai nesta última classificação. O Jazz em Agosto é um festival que se pretende moderno – e de vanguarda, num primeiro momento -, mas a palavra vanguarda caiu, em parte porque se tornava absurdo falar de vanguarda em músicos que perseguiam as mesmas formas ao longo de seis décadas, mas também porque as novidades deixaram de o ser na época em que a comunicação se faz em milissegundos. Mas a modernidade é, também ela, um conceito escorregadio, se pensarmos que a música yéyé é, para muitos, música moderna.

Diria que o Jazz em Agosto 2023 é o exemplo acabado de uma certa modernidade, patente no facto de nenhum dos concertos possuir referências anteriores ao aos anos 60/70, como se o Jazz tivesse nascido aí. Geograficamente também, as preferências evidentes vão para o Jazz europeu nórdico e a fusão, e os EUA quase se resumem a Chicago, a pátria da AACM (provavelmente o movimento que mais consistentemente teorizou o free jazz nos anos 60 do século passado). Diria, perdoem-me a ironia, que tudo é permitido no Jazz em Agosto se não cheirar a Jazz. (Mas também, se Bob Dylan, Iggy Pop e Lionel Ritchie actuam no festival de Montreux, porque é que o Jazz em Agosto não pode ter um chilloutzinho?)

Passem os prolegómenos e, enfim, estas coisas interessam apenas ao público do Jazz (como eu), e não preocupa nada o público da Gulbenkian que não está nada interessado em polémicas estronças. Nem devem interessar aos músicos, que são eles que criam e criam o que querem; e assim deve ser: a música em primeiro lugar; e interessa pois saber o que nos propõe o Jazz em Agosto 2023.

E importante será relevar, em primeiro lugar, a importante componente feminina da programação do Jazz em Agosto deste ano, que se consubstancia no facto de nove dos quinze concertos do Jazz em Agosto 2023 serem dirigidos por mulheres (e não consigo discernir o sexo nos indizíveis e imperscrutáveis nomes dos músicos nórdicos), e dois deles serão, não tenho dúvidas, os momentos altos do festival! E dentre eles, os concertos mais importantes serão o Amarillys de Mary Halvorson e o Myra Melford’s Fire and Water, 5 e 4 de Agosto, respectivamente.

Mary Halvorson’s Amaryllis
Amarillys é metade da obra publicada no ano passado * pela guitarrista e compositora Mary Halvorson; ela que é uma guitarrista singular - e diria que realmente moderna e vanguardista, e também como compositora. Halvorson possui toda a história do Jazz (e da guitarra) nos dedos, mas também os seus horizontes musicais estão longe de se quedar no Jazz, e ela tem sabido introduzir, com acerto, elementos da pop, do rock, da música clássica e erudita, na sua música. Sem mais delongas, uma última nota para a fabulosa banda que ela leva ao Anfiteatro ao Ar Livre da Gulbenkian, e o meu destaque vai para o insuperável trompete de Adam O’Farrill, a versatilidade e segurança da bateria de Tomas Fujiwara, e o proficiente trombone de Jacob Garchik, um músico e compositor praticamente desconhecido entre nós. Sobre as artes da guitarra de Halvorson, direi apenas que ela joga aos dados com os deuses, em cada momento, como os seus dedos constroem harmonias sobre o caos que ela mesma encenou.
* Belladona é o nome do outro disco. Amaryllis e belladonna são plantas associadas a práticas da bruxaria medieval e o feminismo e a antropologia teriam muito a discorrer sobre o assunto.

Myra Melford’s Fire and Water
Norte-americana, com estudos musicais clássicos entre Bach e Béla Bartók, Myra Melford aproximou-se do Jazz nos anos 80 de forma atípica, tendo tido como professores Gary Peacock, Henry Threadgill, e também Don Pullen e Jaki Byard (!), e tomando como referências a música (de vanguarda) de Cecil Taylor, Ornette Coleman ou Anthony Braxton. Solidamente enformada, Melford soube, longo dos últimos quarenta anos, revelar-se uma das mais consistentes pianistas e compositoras do Jazz contemporâneo – e diria que (apesar das minhas observações iniciais), se há vanguarda no Jazz actual, Melford tem-se mantido à frente.
O grupo que Melford leva ao Jazz em Agosto é um quinteto de mulheres, que são personalidades (musicais) relevantes na música contemporânea – e essa característica (a personalidade) contamina, enforma, a música de Fire and Water – o disco que a pianista leva à Gulbenkian. E não poderia ser de outra forma – afinal estamos a falar de nomes como Mary Halvorson, Ingrid Laubrock ou Tomeka Reid.
[Aqui, no entanto, reside a minha interrogação: a marcada personalidade das actrizes (e a escolha decorrerá da escolha de um grupo exclusivamente feminino – o que não é uma opção musical) pode desequilibrar o todo; mas o concerto o dirá.]

Eve Risser’s Red Desert Orchestra; Natural Information Society + Evan Parker
A música do grupo da francesa Eve Risser, que abre o festival a 27 de Julho, e do chicagoan Joshua Abrams (Natural Information Society), a 29, inspira-se na possibilidade africanista que o free jazz dos anos 60 autorizou, protagonizada por Pharoah Sanders, Art Ensemble of Chicago, ou mesmo Ornette Coleman. Eve Risser encontrou inspiração na música do Mali para a sua Red Desert Orchestra de treze membros, e Abrams viajou até Marrocos. A Natural Information Society é um quinteto atípico de guimbri (um baixo rústico de três cordas), que é o centro da música, com harmónio, bateria e dois sopros, entre os quais o soprano de Evan Parker.
Música de grande colorido rítmico, deverão fazer dois dos concertos mais aplaudidos deste Jazz em Agosto.

Trance Map +
Evan Parker é um músico assíduo no Jazz em Agosto. Especialista no saxofone soprano, ele não é um músico de Jazz, assumindo-se como um explorador na área da música electro-acústica. O grupo que traz à Gulbenkian - Trance Map + - é um sexteto onde pontua outro virtuoso, o trompetista Peter Evans, e Matt Wright no «processamento de som». 28 de Julho.

João Lencastre Safe In Your Own World; The Attic
João Lencastre e Rodrigo Amado são também músicos recorrentes na programação do Jazz em Agosto. O baterista João Lencastre apresenta Safe In Your Own World, um quarteto com Leo Genovese no piano, Drew Gress no contrabaixo e Pedro Branco na guitarra elétrica: música que privilegia a improvisação, e que tem em Genovese e Gress a infabilidade da segurança. A 31 de Julho. Por outro lado a «improvisação livre» é o paradigma de Rodrigo Amado, um saxofonista experimentado nesta área (em que não encontro virtudes – qualquer número, não importa o seu valor, multiplicado por zero, resulta invariavelmente em zero), e ele vem acumulando louvores naquela área e tem um público de culto. Apresenta o terceiro álbum do trio The Attic a 1 de Agosto.

Zoh Amba Trio
Caucionada pelo guru John Zorn, a norte-americana Zoh Amba toma como referência a música e espiritualidade de Albert Ayler. Claro que nos anos sessenta a música de Ayler tinha a substância da revolta negra e da luta pelos direitos civis, mas a radicalidade das suas formas deixou deslumbramento e descendência. O contrabaixo de Luke Stewart poderá acrescentar valor ao concerto. A 2 de Agosto.

Ghosted; Hedvig Mollestad’s Ekhidna; Gard Nilssen’s Supersonic Orchestra
Groove e circularidade são epítetos comuns para música ambiente, e o trio sueco-australiano Ghosted arrisca perigosamente nesta área. Quinta 3. Da Escandinávia vêm também os Ekhidna da guitarrista Hedvig Mollestad que pratica uma música contaminada pelo rock e a electricidade: guitarra, trompete, dois teclados e duas baterias (30 de Julho); e a Supersonic Orchestra de Gard Nilssen que encerra o festival em registo épico: uma banda de onze sopros, três contrabaixos e três baterias que privilegia o ritmo e o volume do som. A 6 de Agosto.

Susana Santos Silva; Julia Reidy; Marta Warelis; Camille Émaille
Para os fins de tarde dos sábados e domingos dos dois fins de semana do festival (no Auditório 2), Rui Neves, o director, programou quatro concertos solo: Susana Santos Silva em trompete, electrónica e vídeo, Julia Reidy em guitarra eléctrica e electrónica, Marta Warelis em piano e Camille Émaille em percussão. Os concertos solo são sempre um risco, propensos que são ao pecado do exibicionismo, e muitos músicos são apenas habilidosos do seu instrumento e a sua música acaba ali, no espectacular dessa exposição de habilidade eventualidade exótica. A minha aposta vai para a Susana Santos Silva, que já foi capaz de demonstrar a pertinência das suas propostas solitárias.

Festival de «Jazz contemporâneo», com uma forte componente feminina, o Jazz em Agosto 2023 prima, uma vez mais, pela irregularidade. A irregularidade da programação decorre dos critérios, que são «modernidade» (e também «mulheres»), e não estritamente musicais (e dir-me-ão que o mesmo sucede quando os critérios são «Jazz» e não «música», mas vou deixar essa conversa para outro dia); e a programação do Jazz em Agosto tem vacilado entre o estimulante, a rotina (mesmo que camuflada de moderna ou exótica) e o excêntrico. Mas não tenho dúvidas de que os concertos das mulheres Mary Halvorson e Myra Melford pertencem à categoria da vanguarda - estimulante e irredutivelmente contemporâneo –, mas, quanto aos outros, o melhor será mesmo ir assistir; sendo que, mesmo sem vanguarda, modernidade, ou sequer novidade, Eve Risser, a Natural Information Society e a Gard Nilssen’s Supersonic Orchestra farão bons espectáculos.

Falta Jazz nesta programação. Moderno, contemporâneo, whatever, e há demasiado folclore e objectos ao lado. Mas há pelo menos dois grandes concertos em perspectiva – os suspeitos do costume (as suspeitas, no caso), e só por isso valeria a pena.

Nota: O Jazz em Agosto continua sem me incluir na lista de jornalistas e críticos creditados, tendo-me mesmo retirado há muito, também, da sua mailing list.
Compreendo.
Obrigado.

Leonel Santos

 

 

 

Jazz em Agosto
Fundação Calouste Gulbenkian
Director: Rui Neves

 

 

 

 

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