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Jazz no Parque - Serralves

2011

Com vinte anos de idade, o Jazz no Parque em Serralves granjeou já um lugar entre os mais importantes festivais de Jazz nacionais. Por ele têm passado alguns dos mais estimulantes projectos da cena Jazz internacional, mas também nacional, já que o formato do festival conta desde a primeira hora com a participação nacional.
Em ano de celebração, o cartaz do festival teve um programa especialmente apelativo e foi acrescido de um quarto concerto. Charles Lloyd New Quartet, Mário Laginha, Dave Douglas Tea For Three e Chris Lightcap Bigmouth DeLuxe foram os quatro espectáculos agendados: um verdadeiro luxo.
Charles Lloyd New Quartet
Um concerto de Charles Lloyd é sempre um evento extraordinário e eu tive a felicidade de o ter visto tocar uma boa dezena de vezes em várias formações. No espaço idílico de Serralves o velho guerreiro voltou a surpreender pela beleza e calor da sua música.
A suportar o saxofone emocionante de Lloyd esteve o New Quartet que o acompanha desde 2006. Grupo superlativo, com destaque para a estrela Jason Moran que substituiu Geri Allen, o pianista tem-se revelado uma peça preciosa no desenho da arquitectura da música de Lloyd, complementando as linhas melódicas do saxofone, em solos inspirados ou na direcção da secção rítmica. Curiosamente, em Serralves, o trio rítmico esteve até relativamente discreto, relegando quase todo o protagonismo para o líder. A dupla Eric Harland/ Reuben Rogers funciona como um só indivíduo, enriquecida pelas linhas do piano, na construção do edifício que suporta o saxofone de Lloyd.
Lloyd não trouxe a Serralves nenhum novo disco, tendo o alinhamento percorrido grande parte da vida do artista, entre New Anthem, Monks Mood, Sweet Georgia Bright ou Rabo de Nube, com que terminou o concerto. Mas a ele se sucederia um inédito encore de trinta minutos: «Ele apenas sentiu que tinha que dizer aquilo, que o público soubesse mais da sua música, que o público merecia.», respondeu Jason Moran à minha interrogação. Mas foi óbvio que o prolongado encore tinha sido uma surpresa, também para a banda.
Concerto sereno e belíssimo.
Mário Laginha
O segundo concerto resultou de uma encomenda do festival a Mário Laginha. O pianista apresentou sete peças expressamente escritas para a ocasião, e convidou dois músicos que com ele tocaram neste mesmo festival há dez anos atrás num atribulado concerto deslocado para o Auditório de Serralves devido ao mau tempo: o saxofonista Julian Arguelles e o percussionista Helge Norbakken. Os dois músicos colaboraram com Laginha em diversos projectos ao longo dos anos, e a amizade que os une revela-se também na cumplicidade das formas que cultivam: não faltaram à chamada.
Mário Laginha é provavelmente o nosso mais versátil e profícuo pianista, notável como trabalha sobre todo o tipo de materiais – entre a música popular (as músicas populares, folclóricas, étnicas, das mais variadas origens) e a clássica, com relevo para Bach (mais que uma paixão, uma autoridade) ou, mais recentemente, Chopin. E naturalmente o Jazz, que conheceu com Keith Jarrett.
O que Laginha trouxe a Serralves foi no entanto material inédito onde inevitavelmente encontrámos essas influências dispersas, mas de forma intrincada e subtil. Sete peças construídas – e tocadas – de forma quase febril, mas que creio a merecerem posterior atenção. Sete peças construídas para os seus dedos, surgindo os espaços destinados ao saxofone e percussão amiúde com algo de artificial, e que apenas não teve maior relevância devido ao brilhantismo dos dois acompanhantes e ao conhecimento empático da música de Laginha, e apesar do reduzido tempo que tiveram para ensaiar.
Arguelles e Norbakken revelaram-se eficazes na execução de uma suite de sete composições que quase desconheciam, mas de acordo com uma plástica que lhes era obviamente familiar. Arguelles possui um som poderoso e vibrante e aquele sexto sentido dos grandes músicos de Jazz que lhe permite antecipar o que os companheiros vão tocar, e esteve particularmente brilhante nos curtos duetos com Laginha, que nos fez ansiar por um disco dos dois. Helge Norbakken é um bom percussionista, cuja parafernália oferece ao piano de Laginha um colorido que o complementa bem. O óbice do seu instrumento é … não ser uma bateria; quero dizer, a ausência dos pedais substituídos por um tcheco-tcheco monótono, cuja limitação se foi acentuando ao longo do concerto, e que constituiu verdadeiramente a sua pecha.
Laginha possui uma escrita luminosa, que é muito pessoal e profundamente tocada pela sua forma de tocar, o seu virtuosismo, mas também algumas figuras de estilo que são a marca mais visível da sua personalidade musical e que o tornam reconhecível como nenhum outro pianista nacional.
Claramente a música que Laginha trouxe a Serralves estava fresca ao ponto de não possuir ainda nome. E assim foi tocada, com o que de arriscado a música «em construção» possui, de possibilidade de erro, mas também de alegria e aventura.
Este concerto foi gravado para posterior edição comemorativa dos vinte anos do Jazz no Parque.
Dave Douglas Tea for Three
Desde o primeiro momento que o concerto de Dave Douglas programado para o Jazz no Parque gerava grandes expectativas. A música de Dave Douglas possui sempre um elevadíssimo grau de exigência que se reflecte nos grupos e projectos que dirige ou em que participa. Não era aqui - no nível dos músicos convocados, todos eles nomes consagrados com excepção para a contrabaixista - que residia a expectativa, mas no – igual - instrumento dos três solistas: o trompete.
A secção rítmica - um luxo absoluto -, contou com Uri Caine no piano, num registo Jazz exemplar, longe longe das irreverentes recriações de Bach ou Mozart que o tornaram famoso, bastante próximo do bop até, por vezes, ora lírico ora percussivo, sempre inspirado. Uri Caine revelou-se modelar na ponte entre a direcção da secção rítmica e a distribuição para os sopros. Na bateria, Clarence Penn esteve relativamente discreto mas irrepreensível (embora fosse talvez de esperar uma bateria mais intrusiva) e Linda Oh (que substituía James Genus no contrabaixo) foi a revelação da noite, seguríssima num repertório que não era o seu, firme como uma âncora nas marcações e exuberante nos solos.
De exuberância podemos falar nas prestações dos três trompetes, mas espantosa foi a constatação de como três instrumentos iguais podem soar tão diferente (e nem sequer alguém utilizou a subtileza da troca do trompete pelo fluegel) e apenas foi feita uma ocasional utilização de surdinas.
Não sendo vulgares, existem vários exemplos modelares de agrupamentos de saxofones na história do Jazz, entre os Four Brothers de Jimmy Giuffre de 1947 (na orquestra de Woody Herman, três tenores e um barítono) e o World Saxophone Quartet dos anos 70 (toda a gama de palhetas). Serão raros os trios de trompete. O que ressaltou daquela frente de palco foi a evidência de como o Jazz é a mais personalizada das formas musicais: mais do que três trompetes, estiveram em palco três indivíduos, três personalidades musicais. Douglas possui um ataque e um controle de som formidáveis, muito complexo e moderno; curiosamente é o mais jovem dos três, Avishai Cohen, o representante mais clássico dos três no tratamento do trompete, muito Clifford Jordan, muito rápido e fluente; enquanto que o veterano Enrico Rava se apresentou igual a si próprio, lírico e espacial. Que o resultado se possa revelar tão equilibrado resulta, não apenas do elevado nível destes músicos, mas principalmente do génio ímpar do Jazz contemporâneo que é Dave Douglas, patenteado nos temas, arranjos e direcção musical.
Música estimulante, a retirar dos músicos o que eles possuem de mais íntimo e criativo. Música exigente, sem concessões, e ao mesmo tempo humorada. E apesar de tudo, eu creio que este grupo ainda tem muito para dar. Aguarda-se com expectativa a edição de um disco.


Chris Lightcap Bigmouth DeLuxe

Dave Douglas Tea For Three
(equilíbrio instável em Serralves)

Para o quarto concerto – excepcional – do festival, reservou o programador António Curvelo um dos projectos mais interessantes do ano passado, editado em disco pela Clean Feed, o Chris Lightcap Bigmouth DeLuxe. Infelizmente nem toda a banda original estava disponível e o resultado não podia deixar de ser afectado, mesmo se o concerto não desmereceu. Faltou Craig Taborn, substituído por Gary Versace, e Chris Cheek, por Andrew Bishop, e faltou ainda Andrew D'Angelo que toca no CD em três temas.
Como anteriormente tínhamos notado, o disco, inteiramente gravado e misturado em New York pelo autor, começa por se impor pelo nível das composições, que combinam de forma invulgar exuberância rítmica e um intrincado arranjo para saxofones e teclas, o que esteve patente em todo o concerto, mesmo se a ausência e substituições referidas trouxessem a nu alguma repetição de soluções.
Curiosamente, e à semelhança do concerto anterior, também nesta tarde se apresentaram em palco dois instrumentos iguais – dois saxofones tenor -, mas também eles revelaram de forma exemplar de como no Jazz é o músico e não o instrumento que faz a música. E inevitavelmente também as duas substituições haveriam de tocar o resultado final. Chris Cheek é uma das vozes mais singulares do saxofone contemporâneo e o desafio que se colocou a Bishop era algo injusto. Competente e vigoroso, ele revelou-se até bastante convincente na interpretação do reportório, mas ele não possui o carisma de Cheek. O mesmo aconteceu com Versace, um teclista muito menos anguloso que Craig Taborn (que no disco alterna o wurlitzer com o piano acústico). E haveria ainda de se notar a ausência do saxofone alto do vulcânico Andrew D'Angelo que toca em mais de um terço do tempo do disco.
Apesar da já referida monotonia ocasional de algumas soluções, foi muito interessante observar como funcionaram ao vivo as combinações tímbricas dos saxofones ou dos saxofones – teclas, ora se complementando, ora competindo entre si, com o impulsivo Tony Malaby particularmente bem; enquanto o contrabaixo se permitiu um protagonismo que o disco não revela, intrometendo-se nos solos ou impelindo a secção rítmica.
Um excelente final para o Jazz no Parque 2011.

JazzLogical esteve no Jazz no Parque a convite da Fundação Serralves.

Dom 10-Jul
Porto
Serralves
18.00
Jazz no Parque
Charles Lloyd New Quartet

Charles Lloyd (s), Jason Moran (p), Reuben Rogers (ctb), Eric Harland (bat)

Sáb 16-Jul
18.00
Mário Laginha e convidados

Mário Laginha (p), Julian Arguelles (s), Helge Norbakken (per)

Sáb 23-Jul
18.00
Dave Douglas «Tea for 3»

Dave Douglas (t), Enrico Rava (t), Avishai Cohen (t), Uri Caine (p, tec), Clarence Penn (bat), Linda Oh (ctb)

Sáb 30-Jul
18.00
Chris Lightcap's Bigmouth

Chris Lightcap (ctb), Tony Malaby (st, ss), Andrew Bishop (st), Gary Versace (p), Gerald Cleaver (bat)