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Jazz no Parque - Serralves

 

 

2013

Contrariando um modelo largamente experimentado ao longo dos vinte e dois anos da sua existência, a programação de três concertos nacionais e a ausência de grupos estrangeiros para o Jazz no Parque 2013, veio lançar algumas interrogações na imprensa sobre o eventual menor orçamento do festival.

O desmentido do director dos últimos doze anos, António Curvelo, veio esclarecer a escolha: uma programação inteiramente nacional justifica-se pela «vitalidade do jazz que actualmente se faz em Portugal» e «Pessoalmente, julgo que nunca vivemos um período tão rico e pujante em termos de músicos, num excitante e promissor cruzamento de "veteranos" e "jovens leões"».

A programação de 2013 celebrou pois a maturidade do Jazz português (mesmo se a mostra seria inevitavelmente redutora: «muitos outros nomes poderiam subir a este mesmo palco sem quebra de qualidade e interesse.»), representados por três nomes maiores da cena nacional: Nelson Cascais, Zé Menezes e Carlos Bica; ou de outra forma, um projecto evocativo da música do grande Charles Mingus pelo quinteto de Nelson Cascais, a erudição e irreverência de Erik Satie pela mão de José Menezes (100 Umbrellas), e o trio internacional de Carlos Bica, o Azul, uma abordagem singular da música pop.

Apenas assisti ao último concerto, Carlos Bica & Azul.

Carlos Bica & Azul
Tenho escrito inúmeras vezes sobre o grupo do Bica, um trio que ganhou, por mérito próprio, projecção internacional. E torna-se difícil não me repetir.
Ainda assim, este trio não cessa de me surpreender. Constituído por três músicos fabulosos, Bica, Jim Black e Frank Mobus, o Carlos Bica & Azul é um modelo de coesão e consistência num território singular onde a música pop se cruza com o Jazz, a técnica – bem para além da vulgaridade – não esconde as emoções e o engenho, as personalidades se confrontam, se dissolvem e se revelam.
O concerto percorreu o repertório do trio, entre Things About («Say A Wish», «Elle M'a Dit (Fait Ce Que Tu Veut Mais Fais-Le Bien)», «Horses», «Canção vazia», «Vale»), Believer («Believer», «Alguém Olhará por Ti»), Twist («Pastilha elástica»), um original não gravado, «Joly Jumper», entre outros que não reconheci.
Diferentemente do último concerto a que tinha assistido há um ano (Festa do Jazz do São Luiz, Abril de 2012), este foi um concerto bastante mais melancólico, diria também poético, muito bonito; uma faceta menos reconhecida nas composições de Bica e que nem sempre se manifesta. Ao contrário desse outro espectáculo, onde Jim Black esteve em evidência, em Serralves foi Mobus quem quase sempre tomou as rédeas (o Jazz é mesmo assim: uma música sempre em movimento, em construção, onde as personalidades, as emoções e a disposição, o quotidiano, contam), revelando com mais acuidade os contornos das composições. A guitarra de Frank Mobus – veludo e ácido – protagonizou alguns momentos memoráveis (o solo em Believer foi fabuloso!), mas toda a sua prestação foi notável.
Jim Black é um monstro da bateria; e creio que ninguém terá dúvidas que ele é um dos maiores bateristas da actualidade. Mas em Serralves ele teve uma actuação bastante menos explosiva do que lhe conhecemos, cedendo o protagonismo aos seus pares. Uma observação atenta, no entanto, revelava uma incomensurável riqueza no detalhe, na forma como nunca se remete para o mero acompanhamento, solando sobre a estrutura, introduzindo milimetricamente uma vastidão de figuras através de todos os recursos da bateria, vertiginoso, avassalador.
E enfim, completanto o trio, a personalidade e autoridade, a bonomia e a singularidade da música de Carlos Bica.
Um grande concerto a encerrar o Jazz no Parque 2013, encerrando também um ciclo, com a despedida de António Curvelo da direcção do festival.

Dom 14 Porto Serralves - Ténis 18.00 José Menezes
«100 Umbrellas»
José Menezes (s), Gonçalo Marques (t), Mário Delgado (g), Carlos Barretto (ctb), José Salgueiro (bat)
Dom 21 Porto Serralves - Ténis 18.00

Nelson Cascais
«Mingus Project»

Nelson Cascais (ctb), Diogo Duque (t), Ricardo Toscano (s), Victor Zamora (p), Vasco Furtado (bat)
Dom 28 Porto Serralves - Ténis 18.00 Carlos Bica
«Trio Azul»
Carlos Bica (ctb), Frank Mobus (g), Jim Black (bat)

Folha de Sala

 

quem sabe faz a hora, não espera acontecer

"Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer"
(Geraldo Vandré)

"Mais um sinal da crise: o programa do Jazz no Parque de Serralves deste ano é todo formado por projectos de músicos portugueses.

A frase, publicada na imprensa, é um modelo de desinformação. E um reflexo dos vícios que hoje contaminam grande parte da comunicação social – preguiça, leviandade, ignorância. O raciocínio é linearmente comodista e falso: como o cartaz de Jazz no Parque 2013 "é todo formado por projectos de músicos portugueses" a razão só pode ser uma – "mais um sinal da crise".

A 22ª edição de Jazz no Parque não acontece num tempo de crise qualitativamente diferente do já vivido no último ano. Na verdade, o valor do orçamento de 2013 é igual ao valor do orçamento de 2012 – e em 2012 Serralves acolheu uma orquestra nacional, a LUME, e dois projectos oriundos dos EUA, o trio BassDrumBone e o Marty Ehrlich's Rites Quartet. (A homenagem a Bernardo Sassetti não fazia parte, naturalmente, da programação inicial). Nada impediria, por isso, que 2013 reincidisse em idêntica fórmula.

Que mudou, então?

A crise do país manteve-se e agravou-se significativamente, atingindo todas as áreas. Mas o jazz que se faz em Portugal não está, no essencial, em crise.

Há, claro, menos concertos; proliferam os cachets indexados à receita de bilheteira; reduz-se a geografia das digressões; autarquias há que querem música mas gratuita (da parte dos músicos, claro); alguns festivais suspenderam a respiração, outros adiaram a ressurreição; ampliou-se a crescente ausência do jazz na comunicação social – ignorado na televisão, diminuído na rádio, encolhido na net, mal tolerado na imprensa.

Mas mantiveram-se os pequenos espaços com jazz ao vivo; apesar das dificuldades crescentes, não fecharam Escolas de Jazz; e, acima de tudo, multiplicou-se o número de jovens músicos de enorme talento e sem medo do futuro. E no jazz o essencial são, precisamente, os músicos.

***

Em 2012, o texto de sala dos concertos da 21ª edição de Jazz no Parque concluía com um alerta: "Em tempos difíceis, quando a "crise" também se perfila como argumento de suspensão de projectos, adiamento de iniciativas ou asfixia de afirmações culturais não conformistas nem situacionistas – e, por isso, logo carimbadas pelos burocratas de serviço como incómodas, inoportunas, inúteis –, não surpreende que também o mapa nacional do jazz comece a contabilizar as suas baixas. Mas resista. A 21ª edição de Jazz no Parque não pretende ser exemplo de nada e para ninguém. Mas solidariza-se com a resistência e a luta contra o mito do "inevitável", as homilias do "tem de ser assim", a interiorização do demissionismo. Desistir no meio da tormenta, acreditando que quando chegar a bonança se pode recomeçar no ponto onde estávamos antes, é atrasar o futuro, enfraquecendo o presente."

Um ano depois, as causas da preocupação não se esfumaram nem se atenuaram. Pelo contrário, tornou-se mais urgente reforçar o alerta, persistir na resistência, aprofundar a vontade de, mais do que sobreviver, acelerar o futuro. E manifestar de forma mais activa a indispensável solidariedade.

A opção de fazer do Jazz no Parque 2013 um palco exclusivamente dedicado a projectos liderados e protagonizados por músicos portugueses não foi, pois, um dano colateral e inevitável da crise mas, antes, uma opção voluntária e absolutamente consciente – uma dupla tentativa para resistir-lhe e procurar ultrapassá-la.

Opção que exige, desde logo, o firme repúdio de duas ideias (mal) feitas e mistificadoras: reafirmando que não foi devido a um menor orçamento (facto, aliás, falso) que a programação abdicou da sua habitual vertente internacional em benefício de projectos nacionais; e negando que uma tal programação implique necessariamente uma quebra do padrão de qualidade musical que constitui um dos ex-libris de Jazz no Parque.

Longe vai o tempo (ao ponto de só os ouvidos mais veteranos o poderem testemunhar) em que o músico de jazz português era havido como um parente pobre, paternalisticamente tolerado além fronteiras. A escolha criteriosa de projectos nacionais não comporta qualquer risco acrescido de "menor qualidade"; não o admitir constitui, hoje, um insulto dirigido a uma parte significativa dos músicos de jazz portugueses.

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O calendário proposto permite, ainda, usar esta edição de JAZZ NO PARQUE como um momento tripartido de reflexão e de alerta para algumas questões importantes que atravessam o mundo do jazz nacional.

O concerto inicial (dia 14), com a revelação do projecto "100 Umbrellas" do saxofonista José Menezes, sublinha dois aspectos cruciais da realidade jazzística portuguesa – a experimentação e a frequente clandestinidade a que esse trabalho exploratório é cruelmente votado, apenas e tão só pela ausência de oportunidades, fruto, na maior parte das vezes, da falta de informação, desinteresse ou incompetência dos agentes culturais.

"100 Umbrellas" é um interessante trabalho de José Menezes sobre a música de Eric Satie. Estreado em Setembro de 2010 num concerto em Torres Vedras, nunca mais voltou a subir a palco (antes do convite para o Jazz no Parque), não obstante contar com a participação de alguns dos mais reputados músicos portugueses.

A sua presença em Serralves pode ser, também, um gesto de combate contra este tipo de mediocridade cultural (que alguns confundem com "fatalidade"), responsável pela asfixia de grande parte do melhor trabalho que os criadores produzem. Uma situação que muitos e muitos músicos de jazz já viveram e que urge contrariar frontalmente.

"Mingus Project" (dia 21), liderado pelo contrabaixista Nelson Cascais remete para outra dimensão fundamental do jazz – a renovação geracional e a aprendizagem musical, na dupla vertente académica e existencial. Professor na ESML, Nelson Cascais juntou em torno da insubstituível herança musical de Charles Mingus (um dos maiores autores do jazz) alguns dos seus mais brilhantes alunos, cujos nomes são, hoje, garantes da sempre imprescindível renovação. Uma renovação tanto mais profunda e acelerada quanto construída na partilha diária, musical e humana, da experiência acumulada pelos músicos "veteranos".

A participação do trio Azul de Carlos Bica (quer o concerto de dia 28, quer a master class realizada na véspera) evoca uma realidade histórica que, em todas as latitudes, ajudou a forjar e cimentar, de forma decisiva, a universalidade do jazz – o processo de migração artística intercontinental que levou, primeiro, os jazzmen dos EUA à Europa (e depois à Asia) e, posteriormente, os músicos europeus às Américas.

Carlos Bica é um exemplo raro do músico de jazz português "exilado" na Europa (Alemanha), onde veio a afirmar-se como líder do seu próprio trio internacional (integrando um músico alemão e outro norte-americano).

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A diversidade (conceptual, estética, instrumental) dos projectos reunidos no cartaz de Jazz no Parque 2013 reflecte, parcialmente, a vitalidade do jazz que actualmente se faz em Portugal, sendo certo que muitos outros nomes poderiam subir a este mesmo palco sem quebra de qualidade e interesse. Pessoalmente, julgo que nunca vivemos um período tão rico e pujante em termos de músicos, num excitante e promissor cruzamento de "veteranos" e "jovens leões". Dar-lhes espaço e incentivo será um verdadeiro serviço público. Assim saibam as entidades competentes, públicas e privadas, estar à altura do desafio.

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No início de 2002, poucos dias após ter encerrado um longo período de actividade como crítico de jazz, fui surpreendido por um inesperado desafio da Fundação de Serralves – um convite do então director do Museu, João Fernandes, para programar o ciclo de concertos do Jazz no Parque.

Aceite o convite, mais surpreendido ficaria se me dissessem que 12 anos depois estaria, ainda, a programar a sua 22ª edição. Uma edição especial, pelas razões que acima expliquei. Mas igualmente especial, em termos estritamente pessoais, porque este será o último ano em que o farei. Não sendo uma decisão fácil ou cómoda, julgo que este foi um tempo bastante para ajudar à consolidação de Jazz no Parque. Sem dúvidas quanto à dedicação e empenho com que o fiz e à valia da(s) música(s) apresentada(s), penso que chegou a hora de outros assegurarem o seu futuro, aprofundando caminhos já abertos ou rasgando outros destinos.

Por tudo o que foi feito, o meu obrigado à Fundação de Serralves, da sua Administração a todos os trabalhadores que tornaram estes 12 anos possíveis – com um abraço muito especial para o João Fernandes e para a Cristina Grande e a sua equipa sem mácula. E, claro, a minha gratidão a todos os músicos que aceitaram subir ao palco do Jazz no Parque e ao público que nunca nos faltou com o apoio expresso da sua continuada presença.

António Curvelo (Julho 2013)