Keith
Jarrett
Testament
3CD ECM 2009
Keith Jarrett (p)
Iniciado em 1973 com Solo Concerts: Bremen/Lausanne
e seguido pelo The Köln
Concert de 1975, e ainda pelo monumental Sun Bear Concerts de 1976, este modelo «solo
ao vivo» de Keith Jarrett (que tinha sido precedido pelo disco solo de
estúdio Facing You, de 1971) revelou-se desde sempre o mais controverso
dos formatos. Amado e odiado, ele é mais escandaloso que as incursões
expressamente clássicas a Bach ou Shostakovich e, para uma franja incomensurável
de público, mais irresistivelmente atraente que o trio de Jazz. Tornado
conhecido ao lado de Miles Davis ou Charles Lloyd, o concerto de Colónia
parecia oferecer ao público leigo um universo novo (que partia do Jazz,
pois claro, mas era muito mais, digamos que branco, que o Jazz mainstream),
enquanto era maldito pela crítica mais conservadora.
Em 1983 Jarrett reconciliou-se com a crítica ao conceber com Jack DeJohnette
e Gary Peacock o Trio Standards, que ainda hoje persiste, mais de vinte discos
depois.
Com o tempo (e também alguns períodos de doença nervosa
conturbada), Jarrett suspendeu as gravações clássicas
e quase todas as colaborações externas, limitando-se a estes
dois formatos – solo e trio standards – e passou também
a ser visto muito pouco em público. As reacções coléricas
ao comportamento menos contido do público ou os sons que emite ao longo
dos concertos, passaram a fazer parte da lenda que se foi criando em torno
do músico, aumentando também a aura de génio louco que
o envolve.
Os discos a solo são normalmente, com algumas poucas excepções
(The Carnegie Hall Concert, The Melody At Night, With You) improvisações
sem rede editadas em disco Part 1, Part 2…, e onde Jarrett deambula por
quase tudo, entre trechos de melodias tradicionais americanas, aos blues, à música
barroca e à clássica erudita contemporânea, aos standards
caros ao Jazz, pois claro, ou aos ostinatos que fizeram o sucesso do concerto
de Colónia.
Gravado ao vivo entre Paris e Londres no final de 2008, o álbum de 3
CDs de Keith Jarrett agora editado é, a meu ver, uma das grandes obras
da primeira década do milénio; tão definitiva e incontornável
quanto o tinha sido para a década de 90 o At The Blue Note de 1995 para
o trio Standards com DeJohnette e Peacock.
Não há nada de realmente novo nestas gravações:
reconhecemos tudo tão bem e ao mesmo tempo não paramos de nos
surpreender com as soluções absolutamente geniais quando parece
fazer florir melopeias que interrompe de súbito, abandonando-se em paisagens
bucólicas para despertar de súbito no swing urbano; usando e
abusando dos truques que tão bem lhe conhecemos mas que apenas a ele
permitimos, alongando melodias, ou subitamente precipitando acordes onde apenas
era suposto estar uma nota, ou pelo contrário intrometendo pausas onde
antes seriam notas, cantando (gemendo!) acordes impossíveis, alternando
ternura com o abismo gélido, figura atrás de figura repetidas
obsessivamente, fazendo seguir a subtileza de Bill Evans ao martelar mais violentamente
stride, prolongando as notas, suspendendo o tempo. Nada de realmente novo em
Keith Jarrett, sempre tão reconhecível e sempre tão imprevisível.
Mas Testament não se trata de uma súmula dos últimos trinta
ou quarenta anos desta forma solo do pianista; não é uma síntese,
nem é um apontamento ou derivação: ele é realmente
o Jarrett todo; o legado.
Em boa verdade é de admitir que não se esteja perante um verdadeiro
disco de Jazz, o que neste caso será absolutamente irrelevante: trata-se
por certo de um disco de Keith Jarrett, e o que sempre se diz nestas alturas é «que
ele não poderia ser feito se não por um músico de jazz».
Ou podemos entendê-lo como um genuíno exercício de Jazz
onde o músico explora o folclore (os folclores, o que inclui os imaginários)
universal, da forma mais pessoal e íntima possível, abstraindo
formas e convenções;
da forma mais arriscada e sincera imaginável: como se fosse morrer no
momento seguinte e o soubesse.
Enfim, Testament não é um disco qualquer, feito por um simples
músico de Jazz: ele foi feito pelo mais emocionante e genial músico
de Jazz da nossa época.