Positive Catastrophe
Garabatos Vol. One
CD Cuneiform 2009

Taylor Ho Bynum (corn, flis, dir)
Abraham Gomez-Delgado (per. voz, dir)
Jen Shyu (voz, erhu)
Mark Taylor (tro, mellophone)
Reut Regev (trb, flis)
Matt Bauder (st, sa, cl)


Michael Attias (sb)
Pete Fitzpatrick (g-el)
Alvaro Benevides (b-el)
Keith Witty (ctb)
Tomas Fujiwara (bat)

 


 

Um dia no fim de Julho de 1982 tomei o comboio para uma viagem de seis horas para Caminha e decidi-me a acampar sozinho no meio da imensidão de jovens que era o Vilar de Mouros. O rock já não me interessava muito, mas a Sun Ra Arkestra, sim. Três ou quatro dias depois assisti a um concerto absolutamente memorável e ele foi também um dia de aprendizagem: eu estava preparado para assistir a um concerto de free jazz radical, mas o que eu pude observar – por detrás do fogo de artifício esotérico – foi um modelo de organização absolutamente ellingtoniano que não esqueci. Não tão eloquente, mas ainda assim excelente, e de novo pela mão de Rui Neves, foi o concerto que Sun Ra levou ao Jazz em Agosto de 1985 (devido ao enorme sucesso, a Gulbenkian repetiria o espectáculo dois dias depois), mas o que o público pôde ver foi um mesmo conceito de organização: a ordem dentro do caos.
Sun Ra era um provocador e um experimentalista «positivo». Quero eu dizer na redundância forçada que ele não experimentava para experimentar mas, ao contrário dos experimentalistas que têm a experiência como objectivo, ele tinha um objectivo outro, e integrava a experimentação na sua música. Confundir o génio musical de Sun Ra com «a arte de ranger portas» como eu já vi escrito, é uma imbecilidade; é tratar Sun Ra como um taralhoco, confundir a árvore com a floresta; é confundir a provocação e a encenação kitsch com que Sun Ra mascarava a música com a própria música.
Mas vão longos os prolegómenos.
O Positive Catastrophe de Taylor Ho Bynum e Abraham Gomez-Delgado é uma das melhores homenagem que conheço ao génio de Sun Ra, e a meu ver em especial pela forma inteligente como os dois músicos entenderam o que era a essência da música de Sun Ra, para além do espectáculo, para além da provocação e do radicalismo; no modelo de organização superior. Dir-se-á acertadamente que Sun Ra é apenas o ponto de partida, e que por ali passam também Charlie Mingus ou a orquestra latina de Dizzy Gillespie. Precisamente. Mas não eram Mingus e Gillespie (os líderes de orquestra), dois ellingtonianos? Creio que esta Positive Catastrophe em nada nada ficará a dever à Mingus Dinasty, mas afinal o que sobrevale ali é o espírito de Sun Ra, tornado óbvio até pela lengalenga esotérica de Jen Shyu e presente no humor que percorre todo o disco. E a única pecha de Garabatos será mesmo a excessiva colagem às formas artificiais do Deus Sol.
Os dois músicos co-lideram e alternam na autoria das composições, mas inda assim este resulta um disco bastante equilibrado e consistente. Música impetuosa, generosa e gozadíssima que eu gostaria de ver tocada em palco. Afinal é no palco que se separam as águas entre os verdadeiros músicos de Jazz e os mistificadores. É no palco que as pautas voam e onde o espírito resplandecente de Sun Ra gosta de regressar de vez em quando (e venham também os bailarinos, as lantejoulas e os neons).