Resposta a
Rodrigo Amado
Das cousas e da sua memória
António Curvelo


“ O que se não pode calar com boa consciência, ainda que seja com repugnância, é força que se diga”
Padre António Vieira – Sermão do bom ladrão, 1655

I)
Embora não tencionasse voltar ao tema do 2º Festival Porta-Jazz, que me suscitou o texto “Uma porta aberta para ouvidos fechados”, publicado aqui no Jazzlogical, vejo-me obrigado a revisitá-lo para alguns breves comentários à “Resposta aberta, contra a ignorância e irresponsabilidade” assinada por Rodrigo Amado (RA), músico e crítico, responsável pela coordenação da secção de jazz no jornal “Público”.

Sem oportunidade para ensaiar, em tempo útil, uma análise detalhada de todos os textos publicados no “Público” entre 2009-2011, sob a responsabilidade de RA e por ele ora invocados (e que fui acompanhando regular e pontualmente), não faria sentido adiar algumas reflexões que me parecem essenciais.
Não sem, primeiro, sublinhar com agrado o facto de (ao contrário daquilo a que se assistiu online há poucos anos) ser, afinal, possível polemizar sobre jazz em Portugal, confrontando divergências de opinião sem medo de usar palavras incisivas e duras mas sem descer ao nível da sarjeta. Facto que, aliás, tendo RA como meu circunstancial “opositor”, não me surpreende.

E manifestar, também, a decisão de não prolongar esta troca de ideias, dando aqui por concluído o parêntesis que interrompeu o voluntário exílio da escrita a que, desde 2002, entendi remeter-me. Outros, se entenderem útil, que a continuem.

II)
A primeira conclusão decorrente da leitura da “Resposta aberta” de RA é que a mesma se centra exclusivamente nos músicos de jazz portugueses, uma opção redutora provocada, talvez, por insuficiente expressão minha ou deficiente interpretação da sua parte.

Penso, contudo, que tal não resulta do meu texto anterior, onde, logo de início, esclareço tratar-se de “um testemunho público de indignação e protesto (...) contra o “estado de coisas”, à beira da putrefacção, em que hoje o jazz (sobre)vive na comunicação social”.

Não falei dos “músicos de jazz portugueses” mas, sim, do “jazz”. Porque o problema está longe de ser exclusivo dos primeiros.

Basta focarmo-nos no mercado discográfico e no modo como os vários festivais e concertos com cartaz internacional que se realizam entre nós são objecto da atenção dos críticos da imprensa – designadamente dos críticos do “Público” (dos actuais RA e Nuno Catarino (NC), e dos dois que ainda trabalharam sob a coordenação de RA, Rui Horta Santos e Paulo Barbosa), jornal que desde a sua fundação dedicou à divulgação do jazz um espaço e atenção invulgares na imprensa não especializada – para perceber que se trata de uma questão geral e não estanque, um verdadeiro sistema de vasos comunicantes.

Vamos por pontos, mais precisamente pelos escolhidos por RA.

III) “Critérios de qualidade e relevância artística”
Reconhecendo a existência de uma crise (“o jazz atravessa um momento difícil na comunicação social do nosso país”) e identificando algumas das publicações que em seu entender lutam contra essa situação, RA explicita a filosofia que preside à sua orientação como coordenador do jazz nas páginas do “Público”:

(...), para além de critérios de qualidade e relevância artística, sempre influenciados, naturalmente, pela opinião pessoal de quem escreve os textos, é dada uma prioridade absoluta à música nacional, coberta em todas as suas vertentes estéticas”.
Não tenho quase nada a opor à declaração de princípios: critérios de qualidade e relevância artística, obviamente concretizados de acordo com a opinião pessoal dos respectivos críticos, devem ser marcas de toda e qualquer linha editorial nesta matéria.

Errada, porque redutora, parece-me, porém, a “prioridade absoluta (dada) à música nacional”.
Escrever sobre jazz num órgão generalista (como são os que RA citou, com excepção da revista “Jazz.pt”) deve dispensar fronteiras e privilégios dessa natureza, tanto mais quanto o trabalho dos músicos portugueses só poderá ser justa e correctamente valorado se devidamente contextualizado no panorama internacional. Qualquer duplicidade de padrões – um para consumo nacional, mais benevolente, e outro, mais rigoroso, para a cena internacional – é inaceitável, só assim se recusando o fado corrido do “como músico português é muito bom, mas como jazzman à escala internacional...”.

IV) “Compadrio e promiscuidade – 1”

IV-a)
Contestando a existência de qualquer situação de “compadrio e promiscuidade”, RA enumera a lista (presumo que exaustiva) de textos publicados no “Público” entre 2009 e 2011, dividindo-os por duas secções – discos e concertos/artigos. Mas incorre, em ambos os casos, no mesmo equívoco redutor, uma vez que só se refere a músicos portugueses.

A lista é vasta mas pouco esclarecedora.

Falar de muitos músicos não pode ser um critério absoluto. Importa saber quando, como e qual a razão porque se falou. E em cada caso avaliar a “relevância” dessa atenção, a qual tem de ser contextualizada – um concerto tendencialmente importante pode perder para um acontecimento simultâneo, levando, em caso extremo de falta de espaço (um mal permanente nas redacções dos jornais), à sua subalternização.

Sempre sem perder de vista a legitimidade da opção editorial perfilhada, acresce que esta não está, todavia, imune ao escrutínio crítico de qualquer um dos seus leitores.

Permita-se-me uma comparação com o mundo da política.

Falar dos membros de um qualquer governo em exercício é, obviamente, legítimo. Mas falar três, seis, dez, vinte vezes mais dos ministros e secretários de estado do que dos representantes da oposição é, à partida, matéria a reclamar análise, com alta probabilidade de a relevância se revelar manipuladora, com continuada sobrevalorização do governo e constante desvalorização da oposição.

Questões que remetem para um problema mais lato e transversal a todo o jornalismo cultural.

Deverão os críticos musicais, em geral, e de jazz, em particular, ser escolhidos pelo jornal que os contrata de acordo com o péssimo critério reinante nas secções desportivas, onde cada um dos chamados “grandes clubes” tem adstrito um “alinhado” da sua cor, assim se vendendo aos leitores um adepto por um crítico?
Ou, pelo contrário, devem a seriedade e a lealdade para com esses mesmos leitores impor que só a um jornalista competente e capaz de ser isento, independentemente das suas simpatias clubistas (duas qualidades que, para nossa desgraça, nem sempre se somam), seja confiada a tarefa crítica?

IV-b)
A contextualização dos textos invocados por RA perfila-se, assim, como um factor indispensável para uma abordagem honesta das divergências ora expressas. O que poderá ser feito recorrendo aos arquivos anuais da Agenda de Jazzlogical, por forma a situar no tempo todos os concertos/festivais noticiados por RA e NC para permitir uma melhor avaliação da justeza ou não das suas opções editoriais.

No final do ponto 2) da sua Resposta, enumera RA os festivais que, entre 2009 e 2011, foram objecto da sua atenção, tendo sido “publicadas antevisões de todas as edições do Guimarães Jazz, Jazz em Agosto, Estoril Jazz, Seixal Jazz, Jazz no Parque (Serralves), Festa do Jazz, AngraJazz, Jazzores, Jazz ao Centro, Portalegre JazzFest, Festival Jazz.pt, Braga Jazz, e Som da Surpresa (Oeiras)”.

Descontadas algumas imprecisões (o Braga Jazz fechou portas em 2011 e o Seixal Jazz 2011 foi amputado de uma das suas vertentes, tendo-se realizado apenas a programada por Pedro Costa, da Clean Feed) sublinhe-se, desde já, que da lista elaborada pelo próprio RA também não consta a 1ª edição do Festival Porta-Jazz realizada em 2010. Ignoro se uma tal omissão foi fruto de esquecimento, falta de espaço ou opção editorial...

Mais significativamente, RA omite um elemento decisivo para uma qualquer análise séria do tratamento jornalístico que mereceram os referidos festivais, isto é, o gritante desequilíbrio da atenção que lhes foi concedida, sendo que alguns gozaram do sagrado direito aantevisão e crítica”, ficando outros confinados, apenas e tão só, às respectivasantevisões”, mas sem espaço para a posterior notícia crítica.
Uma opção editorial tanto mais inexplicável quanto (como RA não pode ignorar dada a sua qualidade de “coordenador”), o “Público” é habitualmente convidado por muitos desses festivais, com as despesas de viagem, estadia e bilhetes pagas, regra geral na totalidade.

Reportando-me apenas aos anos de 2009 a 2011, invocados por RA, a lista seguinte (não exaustiva mas que julgo ser exacta) é esclarecedora:

a) festivais com “antevisão” e “crítica”: Guimarães Jazz, Jazz em Agosto, Festa do Jazz, AngraJazz, Jazzores, Jazz ao Centro, Portalegre JazzFest, Festival Jazz.pt, Braga Jazz, Som da Surpresa (Oeiras);

b) festivais com “antevisão” mas sem “crítica”: Estoril Jazz, Seixal Jazz, Jazz no Parque (Serralves);

De fora da lista invocada por RA ficaram, entre outros, os festivais Matosinhos em Jazz (15ª edição em 2011), Funchal Jazz (12ª edição em 2011), Festival de Jazz Valado dos Frades (especialmente dedicado aos músicos nacionais e que este ano celebrou a sua 14ª edição), Lagoa Jazz Festival/Allgarve (9ª edição em 2011), Jazz Im Goethe-Garten (nascido em 2005), Festival Internacional de Jazz de Loulé (16ª edição em 2011).

A disparidade de critério é ainda mais incompreensível quando o “Público” vem considerando, há anos, grande parte dos festivais como “dos mais importantes”, “incontornáveis” ou “representativos” que se realizam em Portugal, raramente se podendo ler palavras de reserva às programações anunciadas.

AngraJazz 2009: “a sua 11ª edição marca o calendário cultural da ilha e ganha crescente relevância no panorama jazzístico nacional e internacional” (RA). AngraJazz 2010: “existente desde 1999, o Angrajazz tem mantido um nível qualitativo e uma consistência estética notáveis, garantindo uma posição de destaque entre os melhores festivais jazz do nosso país” (RA).
X Festival de Jazz de Ponta Delgada 2008: “consagrou-se este ano como um dos mais consistentes e representativos a nível nacional” (RA).
Jazzores 2009
(herdeiro do festival de Ponta Delgada): “aquele que poderá vir a ser um dos mais importantes festivais de jazz do país” (RA). Jazzores 2010: “...surge com uma programação ainda mais arrojada (...), “...o intuito de apresentar um jazz puro, não-produzido e não-adulterado, mais próximo do que nunca do free-jazz e da livre improvisação” (RA).
Seixal Jazz 2008: “tornou-se um dos mais respeitados festivais do nosso país, devido à qualidade do cartaz”
(RA). Referindo-se ao Seixal Jazz 2010, o Guia do Lazer do Público.pt, segue o mesmo padrão: “é um dos melhores e mais emblemáticos festivais de jazz do país”.
Jazz em Agosto 2009: “...esta nova edição do incontornável Jazz em Agosto (...) tem como principal mérito agrupar projectos de grande relevância para o futuro do jazz”
(RA).
Guimarães Jazz 2010: “...o maior e mais abrangente festival de jazz nacional” (...) “assinala um ano como todos os outros: em grande”
(RA). Guimarães Jazz 2011: “festival que concorre ao título de melhor e mais importante festival de jazz do país”(RA).
Portalegre Jazz Fest 2008: “...um festival que deixa marcas profundas no panorama do jazz nacional”
(RA).
Jazz no Parque de Serralves 2009: “com uma programação certeira e informada (...)
(RA).

Uma pista explicativa para o panorama acima referido pode encontrar-se num texto de Nuno Catarino, publicado no Ípsilon em 2010, dedicado à editora Clean Feed e ao JACC (Jazz ao Centro Clube), onde se identificam, de forma linear, os agentes da grandeza do “universo jazz em Portugal”:

Se a todos estes projectos” (as várias iniciativas da Clean Feed/Trem Azul e da JACC/revista Jazz.pt) juntarmos a iniciativa de editoras como a Tone of a Pitch de André Fernandes e a Creative Sources de Ernesto Rodrigues, a programação de festivais como o Jazz em Agosto (espaço para o jazz de vanguarda, programado por Rui Neves), o Estoril Jazz (palco privilegiado para o jazz "mainstream"), o Guimarães Jazz (o maior festival fora da capital, da responsabilidade de Ivo Martins), a Festa do Jazz (de Luís Hilário e Carlos Martins) e os ciclos e actividades promovidas pela Associação Granular (liderada por Rui Eduardo Paes e Carlos Zíngaro), ficamos com uma ideia da crescente diversidade e riqueza do universo jazz em Portugal.

IV-c)
Importa repetir que não está em causa a existência de opções editoriais (quem trabalhou nos jornais sabe que um dos problemas recorrentes é, precisamente, a falta de linha editorial em muitas das secções culturais) mas a coexistência simultânea de uma opção editorial – que na minha opinião é estética e ideologicamente sectária – e a ausência de uma informação não discriminatória, que proporcione aos leitores do “Público”, pelo menos, a notícia fiel da actualidade.
Acrescendo, naturalmente e sempre segundo a minha opinião, que o dever da crítica é “dizer bem”, justificando-o objectivamente, daquilo que na sua subjectividade o crítico julga meritório e “dizer mal”, justificando-o com o mesmo rigor de objectividade, daquilo que na sua subjectividade o crítico considera mau ou menor.

Pergunte-se a qualquer músico e a resposta será a mesma: pior do que uma má crítica é a ausência de crítica. Presumo que o músico RA terá a mesma opinião.

Mas as tentativas de explicações adiantadas por RA para “justificar” a ausência de qualquer referência ao 2º Festival Porta-Jazz não passam disso mesmo, de desastradas tentativas, de um desesperado desejo de tapar o sol com uma peneira.

Voltando ao ponto 4 da sua “Resposta aberta”, sublinho, desde já, que seria, obviamente, censurável que o “Público” tivesse omitido a realização do Festival Jazz.pt. Mas, que eu saiba, não foi disso acusado mas, antes, de não ter noticiado a 2ª edição do Festival Porta-Jazz.

Diz RA que “por compreensíveis limitações orçamentais, o jazz no Ípsilon tem estado limitado a um destaque semanal. Tratou-se assim de uma opção editorial que em nada retira mérito ou valor ao Festival Porta Jazz ou aos músicos que nele participam.”

Mesmo dando de barato que a desculpa orçamental poderá aceitar-se como um facto (mas nunca como uma inevitabilidade), a justificação adiantada (“uma opção editorial”) deve ser tida como legítima mas discutível (aliás, como tudo o que é legítimo).

O que se estranha, porém, é que não se tenha considerado a hipótese de apresentar os dois festivais no mesmo espaço, mesmo que sem igual destaque (outra opção editorial?)

Ou que, sendo o Ípsilon em causa de 2 de Dezembro (“a edição anterior ao Festival”, como lembra RA), não se tenha optado editorialmente por conceder um parágrafo, uma linha, uma legenda ao Porta-Jazz ao longo dos sete dias que mediaram entre o Ípsilon e o primeiro dia do festival (7 de Dezembro).
Ou RA não se lembrou de que no “Público” o jazz não está, felizmente, prisioneiro das páginas daquele suplemento, dando, por vezes, sinal de vida no P2, como sucedeu, por exemplo, na recente edição de 16 de Dezembro, onde o próprio RA assinou (ainda bem!) um texto sobre um concerto da Big Band Júnior marcado para o CCB nessa mesma noite?
Ou na edição do passado dia 20, em que o mesmo P2 albergou duas-páginas-duas dedicadas (justamente, aliás) à reabertura do Hot Clube de Portugal (“Novas memórias para um velho clube”) que, todavia, não são assinadas por nenhum dos dois críticos de jazz ao serviço do “Público”, tendo-se RA limitado a picar o ponto numa breve nota (“Mais Jazz em Lisboa”) no Ípsilon de dia 16?
Situação que, aliás, não é caso virgem, conforme o atesta o texto “Na primeira pessoa – Hot Clube e todo esse jazz”, entrevista com Paulo Gil da jornalista Kathleen Gomes no P2 de 19 de Março de 2008, assinalando o 60º aniversário do Hot Clube de Portugal.

Ou (nem isso!) o coordenador do jazz, RA, não se lembrou de que o próprio Ípsilon tem um espaço de Agenda de Concertos, onde, além dos destaques por áreas musicais (Pop, Clássica, Jazz), no mesmo dia 2 de Dezembro vinham referenciados outros seis concertos?

Opção editorial ou esquecimento, também aqui pretenderá RA defender tratar-se de uma omissão “que em nada retira mérito ou valor ao Festival Porta Jazz ou aos músicos que nele participam?

A questão de fundo não é, como RA certamente sabe, a existência de uma linha editorial que, como coordenador responsável pela área do jazz, tem todo o direito de adoptar. Mas, sim, a legitimidade de estabelecer uma orientação que nunca foi manifestada aos leitores e, muito mais importante e decisivo, uma orientação que omite ou subalterniza, intencional e frequentemente, uma parte significativa do que se passa na cena do jazz em Portugal. E, mais uma vez, não apenas do jazz feito por músicos portugueses.

É que basta olhar para a prática do “Público” em matéria de concertos e festivais ou críticas discográficas, independentemente da nacionalidade dos músicos envolvidos, para se concluir que a matriz sectária (estética e ideologicamente) é a mesma.

IV-d)
Não julgo correcto e admissível que quem faz crítica num jornal generalista não escreva prioritariamente para os leitores, sendo o seu dever primeiro o de informar (não omitindo concertos, festivais, etc, conforme as opções estéticas dos mesmos), embora mantendo toda a liberdade de valorar positiva ou negativamente, de acordo com as suas opiniões pessoais, os concertos ou as respectivas programações.
Mas daí a subverter ou manipular a realidade por omissão vai uma grande diferença!

Basta recordar as críticas de discos de músicos portugueses publicadas ao longo dos anos da responsabilidade de RA para detectar um evidente corporativismo.

Quantos discos mereceram nota baixa na escala de estrelas (de uma* a cinco***** correspondentes a Medíocre, Razoável, Bom, Muito Bom e Excelente, além da bola preta para Mau) adoptada no “Público”? Ou será que não há discos maus, medíocres ou irrelevantes assinados por músicos portugueses?
Ao folhear o respectivo arquivo, não pode deixar de impressionar o espírito corporativo que transpira dessas críticas, a fazer lembrar o atávico chauvinismo das revistas de jazz francesas onde os músicos da terra acumulam autênticas carradas de “chocs” e “excelentes”.

Cito apenas alguns exemplos.
Em 12 das 13 críticas referidas por RA como publicadas em 2009 (não consegui apurar as estrelas (*) atribuídas ao disco “Kits”, de Jorge Lima Barreto/Carlos Zíngaro), apenas uma mereceu 2** (correspondente na tabela do Ípsilon a “razoável”), duas valeram 3*** (“bom”), seis ganharam 4**** (“muito bom”) e duas foram premiadas com as 5***** de “excepcional”. E um dos discos entrou em 4º lugar na lista dos “Melhores do Ano de 2009”.

O diagnóstico para 2010 e 2011 é em tudo idêntico.
No total das 21 críticas arroladas por RA para 2010, as que logrei consultar somam nove discos com Muito Bom (4****) mais dois a rondar o Excelente (4,5****); três com Bom (3****), incluindo quatro entradas nos “15 Melhores do Ano” (1ª, 5ª, 12ª e 15ª).
Apesar de um maior número de 3***, o ano de 2011 também não destoa, registando duas entradas na lista dos “10 Melhores do Ano” (6ª e 9ª).
E se recuarmos no tempo, o denominador comum mantém-se: um terço dos “15 Melhores Discos” do ano de 2007 têm assinatura lusitana (6ª, 9ª, 11ª, 14ª e 15ª) e outros três foram medalhados na mesma lista de 2008 (8º, 12º e 13º).

Num balanço sumário, para um total de 34 críticas referidas por RA como publicadas em 2009 e 2010, das 28 que pude conferir 24 mereceram Bom/Muito Bom/Excelente, tendo cinco entrado nas listas dos Melhores Discos do Ano.
É obra! Abençoado país que só tem discos e músicos de jazz deste calibre... (Face a uma tal manifestação de corporativismo, acredito que até a nossa magistratura corará de vergonha!)

V) O caso Paulo Barbosa – “dispensa” ou “saneamento por delito de opinião” ?

“As acções de cada um são a sua essência”
Padre António Vieira – Sermão da Terceira Dominga do Advento (1644)

V-a)
A razão invocada por RA para a “dispensa” de Paulo Barbosa (PB) – e graças à qual terá descoberto que o crítico que convidou para a sua equipa em 2007 era, afinal, incapaz – não decorreu de qualquer texto publicado por PB enquanto crítico do “Público”, mas sim de um artigo de opinião divulgado no site do próprio PB, “Jazz XXI”, e posteriormente, embora em versão reduzida e adaptada, na revista Jazz-pt.

Dedicado às edições discográficas da Clean Feed no primeiro semestre de 2010, rezava assim na parte ora relevante:

É óptima a sensação de poder constatar na mais recente produção da Clean Feed uma cada vez mais firme tendência para a edição de registos que não se limitam ao ruído, aos grunhidos e a outras quantas estratégias que, embora postas em prática já lá vão uns bons 50 anos, numa altura em que faziam todo o sentido, continuam a ser defendidas e “vendidas” (por esta e por outras quantas editoras, como a CIMP, a NoBusiness, a Ayler Records, a Smalltown Superjazz ou a Not Two, para referir apenas algumas) como inovadoras, ou como “avant-garde”, ou ainda – o que quer que isso seja – como “avant-jazz”. Pior ainda é que esse falso radicalismo (ou “pseudo-vanguardismo”) seja agora adoptado por alguns músicos que não chegam muitas vezes a reunir atributos para que devessem ser reconhecidos como tal.
Continua, portanto, a espantar-me que, em todo o seu reconhecível eclectismo, a grande editora de Lisboa continue a propor-nos gravações nas quais não é fácil encontrar grandes motivos para que se tivessem tornado discos, constituindo as recentes edições pelo Red Trio, por Sei Miguel (ambas já de 2010), pelo Nobuyasu Furuya Trio e por Luís Lopes (trazidas a público no ano passado), alguns dos casos mais gritantes para estes ouvidos. Espanta-me, no fundo, que tantos sejam os que “ouvem gato por lebre” e seguem satisfeitos, mas espanta-me muito mais que vários sejam os críticos que, dentro e fora do país, continuam a anunciar e a defender uma “novidade de barbas branca
s”.”

Seguia-se uma série de sete críticas discográficas, quase todas muito elogiosas com excepção do disco homónimo do Red Trio: “Muito menos admissível é o que se passa neste Red Trio, disco que nos impõe a sensação de que alguma coisa não bate certo, de que algo está, deliberadamente ou não (questionar-se-á de início), avariado, como um brinquedo que se "escangalhou" e para o qual não há remédio, o que poderia até nem ser uma má coisa... Mas um olhar mais cirúrgico sobre o que se passa ao longo destas seis faixas vai gradualmente afastando a hipótese da deliberação na atitude deste trio, forçando-nos à conclusão de que os seus membros assim tocam não por opção, mas porque não saberiam, por mais que quisessem e se esforçassem, tocar de outra maneira.

Sob pena de me tornar tão radical quanto os responsáveis pelo disco nele tentam ser, devo afirmar que esta não é música que se apresente a ninguém. A música, seja ela qual for, mas principalmente aquela que chega a disco, deve ser tocada por quem sabe, por músicos a sério, e não por amadores ou aprendizes que, ainda que eventualmente cheios de boas intenções, acabam por não revelar grande jeito para o ofício. A excepção, no que ao tal “jeitinho” para a música diz respeito, deverá ser reconhecida em Gabriel Ferrandini, um jovem dotado de imensos recursos no kit e fora dele, capaz de gerar diversos tipos de situações de real interesse sob o ponto de vista textural. Mas enquanto Ferrandini insistir indefinidamente em situações sem tempo e ao lado de músicos incapazes de fazer música dentro dessas mesmas situações, dificilmente passará a ser levado a sério como um baterista completo e verdadeiramente musical. Até lá, ficamos à espera de uma decisão mais acertada...

Diz RA que o afastamento de Barbosa – que, todavia, nunca lhe foi comunicado, só o tendo RA confirmado no início de 2011, quando PB manifestou a sua estranheza por não ter participado, ao contrário do que sucedera nos anos anteriores, na selecção dos “Melhores Discos” do ano de 2010 – foi uma consequência directa do modo como se referiu, “entre um grupo grande de músicos, ao Red Trio (...)

Dos demais nomes citados por PB que, todavia, RA tratou de omitir (Sei Miguel, Nobuyasu Furuya Trio e Luís Lopes), apenas o saxofonista Nobuyasu não pertence ao regular círculo de amizades e companheiros do próprio RA (da colaboração musical de RA com todos os outros abundam notícias, inclusive nas páginas do “Público”), sendo, embora, parceiro acidental de dois elementos do mesmo Red Trio (com eles tocou, por exemplo, em Lisboa em Janeiro de 2009).

V-b)
As palavras de PB que levaram à sua alegada “dispensa” são, obviamente, muito cruas e susceptíveis de diferente valoração, conforme o subjectivismo de cada um dos seus leitores. Mas como em todas as questões de livre opinião e independência (que deve ser uma regra de ouro de qualquer crítico) importa saber se se tratou de um “crime” ou do mero exercício da liberdade de expressão.

Na sua qualidade de coordenador-responsável pela área do jazz no “Público” ninguém negará a RA o direito de escolher livremente os seus colaboradores, acolhendo uns nomes e recusando outros.
O que, pessoalmente, acho chocante e inaceitável é o fundamento ora invocado: que as “afirmações de PB em que dizia que “este ou aquele músico não sabiam tocar e que não compreendia como é que alguém podia editar a sua música” (...) revelavam que não é “uma pessoa informada, culta”, que sabe “respeitar os músicos independentemente do seu nível ou filiação estética”, tendo desse modo desrespeitado “a noção de que a nossa liberdade de opinião não deve magoar ou denegrir os outros de forma leviana, ainda mais estando numa posição de evidente responsabilidade.”

Acontece, porém, que este critério parece não ter sido lei no passado.

Um dos textos mais demolidores publicados no “Público/Ípsilon”, já sob a responsabilidade editorial de RA, foi a crítica ao disco de Jacinta “Convexo (A Música de Zeca Afonso)”, intitulada “Um passo em falso” e assinada pelo mesmo PB em Outubro de 2007.
Para que se saiba do que estamos a falar, aqui ficam alguns extractos:

“As limitações e a imaturidade artística evidenciadas por Jacinta neste projecto em nada justificam o sucesso experimentado pela vocalista desde a sua emergência”;
“...um aberrante “scat” que traz desafinação incluída como bónus”
“ uma imitação barata, aqui mais óbvia do que nunca, da dupla Maria João & Mário Laginha”;
“ ...marcado por péssimas escolhas de timbre logo no início do tema, agravadas pelos problemas de afinação que parecem habitar em cada um dos seus “scats”...”;
“ ...Jacinta apresenta várias imperfeições no seu fraseado, muitas delas provavelmente decorrentes da dificuldade em lidar com aquela métrica. O “scat” em registo grave com que a vocalista nos conduz ao final do tema é simplesmente inadmissível”;
“ o final de “Tenho um Primo Convexo” e as desafinações pontuais que podem ser ouvidas em “A Morte Saiu à Rua” e “Coimbra do Mondego” constituem provas acabadas de uma falta de gosto, de esmero e de capacidades interpretativas que tornam cada vez mais difícil encontrar qualquer justificação para o sucesso que esta vocalista tem conhecido (...)”.

V-c)
Lendo hoje RA, custa a compreender porque terá demorado três anos a “descobrir” a alegada falta de “informação” e “cultura” de PB, pecados que o fariam não saber “respeitar os músicos independentemente do seu nível ou filiação estética” e o levariam a desrespeitar “a noção de que a nossa liberdade de opinião não deve magoar ou denegrir os outros de forma leviana, ainda mais estando numa posição de evidente responsabilidade.”

Alguns factos podem contribuir para o esclarecimento da questão.
A começar por uma recentíssima crítica ao disco do pianista Bill Carrothers “A Night at The Village Vanguard” (publicada no Ípsilon de 23 de Dezembro de 2011).
Contrapondo o elogio da qualidade do trio da gravação (Nicolas Thys e Dré Pallemaerts) à censura ao contrabaixista e baterista que acompanharam Carrothers num concerto açoreano em Outubro passado, o autor da crítica serviu-se de uma frase do mais fino recorte e eloquente elegância: “esta sim é a sua verdadeira secção rítmica europeia, e não os trapalhões que o acompanharam no mais recente Angrajazz”.

Serão estas palavras “respeitadoras dos músicos, independentemente do seu nível ou filiação estética”? E herdeiras directas da “noção de que a nossa liberdade de opinião não deve magoar ou denegrir os outros de forma leviana”?

Sublinhe-se que não releva, aqui, o facto de o trio que tocou no Village Vanguard ser, efectivamente, muito superior ao apresentado por Carrothers em Angra do Heroísmo, mas sim o primado da política de “dois pesos e duas medidas” perfilhada por RA no exercício das suas funções de coordenador.

Ou será que o autor da citada crítica ao disco de Carrothers (que por acaso é o próprio Rodrigo Amado...) não está, também ele, “numa posição de evidente responsabilidade”...?

E na crítica ao último disco de Jacinta, “Songs of Freedom”, intitulada “Uma estrela à chuva” e igualmente assinada por RA, em 2009, não haverá reflexos dos “pecados” que não perdoou a PB?
Referindo-se ao anterior disco da cantora (o mesmo “Convexo” que originou o texto de PB acima citado e que julgo ter sido o único disco até hoje classificado no “Público” com uma única *, isto é, com um estrondoso Mau), escreveu RA: “...registo dedicado à música de José Afonso, revelando as mesmas fragilidades mas desta vez sem um produtor à altura que salvasse a música de uma mediocridade embaraçosa.

Ou, ainda, “o caso de Jacinta é um dos maiores equívocos da cena jazz nacional” (...) “...numa busca de êxito que parece ser para ela mais importante do que um trabalho sério na consistência da sua música”.

Entre versões que funcionam melhor e outras que nem tanto, Jacinta desafina mais do que o razoável e força frequentemente graves e agudos, conferindo a "Songs of Freedom" o som amador de uma gravação de demonstração mal acabada.

V-d)
O último dos 37 textos que PB publicou no “Público” (entre 2007 e 2010) data de Julho de 2010.

Ora, tendo sido a sua contratação originada, segundo as próprias palavras de RA, “por saber que ele tinha opiniões e gostos totalmente diferentes dos meus e do Nuno Catarino”, pensando que dessa forma poderia “garantir uma maior diversidade na cobertura do jazz no Público”, surpreende que ao fim de 17 meses, RA ainda não tenha retomado a sua preocupação de servir os leitores do “Público” proporcionando-lhes “uma maior diversidade na cobertura do jazz”.
Não haverá no mercado outros críticos capazes de assegurar tal objectivo? Ou, se os há, serão todos “incultos”, “desinformados”, “desrespeitadores dos músicos” e “irresponsáveis”?

Em conclusão, a questão que exige resposta é outra: pode a qualificação das opiniões expressas por um crítico – nuns casos, polémicas e duras; noutros, desinformadas, incultas, levianas e desrespeitadoras sendo, por isso, intoleráveis – variar consoante os músicos visados são ou não amigos e companheiros de palco ou estúdio do coordenador desse mesmo crítico e responsável pela secção de jazz de um jornal ?

Porque razão, à semelhança do saudável hábito institucionalizado em revistas internacionais, não optou RA pelo confronto de opiniões críticas frontalmente opostas sobre um mesmo disco, fornecendo aos leitores pistas de reflexão em vez de privilegiar uma visão monolítica e unanimista?

Ou será que, afinal, a metafórica “dispensa” de PB foi mesmo (como continuo a considerar legítimo classificá-la) um inadmissível saneamento por delito de opinião?

VI) O sectarismo estético-ideológico
Se dúvidas ainda houvesse sobre o sectarismo estético-ideológico que alimenta as opções editoriais de RA, recorde-se a sua “antecipação” do Jazzores de 2010 (ex-Festival de Jazz de Ponta Delgada).

Num texto significativamente intitulado “A vanguarda nos Açores – O jazz mais puro em quatro ilhas dos Açores, a partir de hoje”, RA celebra “o intuito (dos directores artísticos do festival) de apresentar um jazz puro, não-produzido e não-adulterado, mais próximo do que nunca do free-jazz e da livre improvisação”, tendo como “cabeça de cartaz” “o fabuloso trio de Evan Parker (...), o trio de Charles Gayle (...) e o extraordinário duo de Wadada Leo Smith e Louis Moholo-Moholo”, assim se cumprindo, na opinião de RA, “a visão unificadora do jazz, tal como proposta por Archie Shepp, Ornette Coleman ou Sun Ra, nos anos 1960”.

Surpreendente (também) pelo confusionismo histórico que denuncia – da citada “visão unificadora do jazz” (???) à promoção de Gayle a símbolo das “raízes negras mais profundas do jazz” e à entronização de Wadada e Moholo como “duas grandes figuras que deixaram marcas no jazz mais aberto e criativo do séc. XX” –, o texto de RA, serodiamente baptizado de “A vanguarda nos Açores”, transpira um sectarismo que encarna, num perfeito reflexo de sinal contrário, o fundamentalismo habitado pelas tribos do chamado jazz mainstream (que também as há), barricadas à sombra das bandeiras de um outro “jazz puro” e, claro, “não-adulterado”...

VII) “ Compadrio e promiscuidade – 2”

“Não pode deixar de adulterar a verdade quem no mundo vive com dependências”
Padre António Vieira – As Sete Propriedades da Alma

À luz dos mais elementares princípios deontológicos, o que RA pode (como se vê pela figura junta) mas não deve é assumir funções de crítico simultaneamente com o exercício da sua legítima profissão de músico, considerando não haver aí qualquer incompatibilidade de interesses.

O que o leva a:

a) escrever sobre festivais de jazz que, ao mesmo tempo, o convidam para tocar (exemplos: Jazz em Agosto 2011, 2006, 2002; Jazz ao Centro 2011; Jazz.pt 2009; Seixal Jazz 2009; Portugal Jazz 2011; Portalegre JazzFest 2009);

b) a criticar e classificar discos de uma editora (Clean Feed) que, de acordo com o Profile constante do site pessoal do próprio RA, ajudou a fundar em Setembro de 2001 (tendo saído em 2005 para criar a sua própria editora) e que tem no seu catálogo seis títulos da discografia do músico RA, o último dos quais de 2008;

c) a criticar e classificar discos de músicos que dão corpo aos projectos musicais do próprio RA ou que o convidam para tocar e gravar.

O músico RA tem todo o direito de tocar em qualquer festival. Mas não deveria vestir a pele de crítico e escrever sobre os mesmos festivais que o acolhem.
O músico RA tem todo o direito de tocar com os músicos que entender. Mas não deveria escrever, como crítico, sobre os mesmos músicos que chama para os seus projectos musicais.

Por uma questão de salubridade pública, o velho ditado da sabedoria popular que ensina que “não basta ser sério, é preciso parecê-lo” não deveria cair em desuso. E muito menos aplicar-se apenas à classe política, o bode expiatório mais cómodo porque mais à mão.

Por tudo isto, mantenho a opinião expressa quanto aos compadrios e promiscuidades que, todavia e infelizmente, estão longe de ser coutada exclusiva do “Público” ou do seu coordenador para o jazz (acusação que, aliás, não consta do meu texto anterior).

VIII) Carlos Azevedo, a OJM (sim) e a ESMAE (não)
Quanto às referências a Carlos Azevedo, RA mais não fez do que tentar atirar areia para os olhos. Em momento algum pode RA descortinar no meu texto, que originou a sua “Resposta aberta”, qualquer acusação ao “Público” decorrente de uma alegada omissão sobre o trabalho musical de Carlos Azevedo como director da Orquestra Jazz Matosinhos (OJM).

Pelo que não colhe minimamente a “defesa” de RA ao invocar a sua qualidade de “incondicional apoiante e admirador” da OJM e a auto-citar-se: “Da Orquestra mais celebrada do país será justo dizer que está cada vez mais “expressiva” graças ao trabalho notável de direcção e orquestração de Carlos Azevedo e Pedro Guedes.
O que escrevi foi bem diferente: “uma ESMAE ressuscitada pela oculta persistência do grande trabalho de Carlos Azevedo, cujos créditos permanecem envoltos num inexplicável silêncio”. E a verdade é que não me lembro de ler qualquer texto no “Público” (e não só) sobre esse trabalho.

O que, aliás, também não surpreende, atento o comodismo que marca a coordenação de RA, o que talvez explique a continuada não comparência do jornal em boa parte dos festivais para que é convidado (sem encargos), preferindo centrar-se nos eventos que ocorrem em Lisboa e arredores, com excepção de devotas peregrinações a Portalegre, Coimbra ou Guimarães ou, num esforço de maior fôlego, aos Açores e Dublin (como sucedeu no recente e certamente incontornável 12 Points Festival).

Com excepção das críticas de discos, apresentações de festivais e concertos (com direito pontual e discriminatório a algumas críticas aos mesmos, como ficou acima demonstrado) e de raras entrevistas, não há outros textos a registar.

Não me recordo sequer (mas não garanto) que o “Público” tenha dado notícia – nos termos merecidos e não em eventuais duas linhas perdidas numa qualquer agenda ou guia do lazer – de uma iniciativa tão relevante e rara como as sucessivas edições dos Festivais Clean Feed realizadas em Nova Iorque ou Chicago. Há factos que, pura e simplesmente, não podem escapar à escrita de um crítico.

A “demissão” ou “esquecimento” que frequentemente atingem as opções editoriais de RA chegam ao ponto de a morte de nomes históricos do jazz não merecer a atenção de qualquer dos críticos do jornal.

Porque a memória é curta, recordo, mais uma vez como simples exemplos, as mortes recentes de Paul Motian (22 Novembro) e de Bob Brookmeyer (15 Dezembro), a primeira reduzida à reprodução de um despacho da Lusa e a segunda nem isso...

Ou, em 2007, a partida de Oscar Peterson que, todavia, originou dois textos assinados por jornalistas totalmente alheias ao mundo do jazz –um de Maria João Guimarães (editado no corpo do jornal de 26 de Dezembro) e uma página inteira de Alexandra Lucas Coelho (no P2 do dia seguinte), incluindo uma magra coluna com cinco álbuns “clássicos intemporais” do pianista escolhidos por RA.

Por explicar ficou, porém, a ausência dos textos que eram exigíveis aos críticos de jazz do “Público”.

No dia em que escrevo estas linhas, marcado pela notícia da morte de Sam Rivers, fica-me a esperança de, ao menos este, ser considerado digno da sua atenção...

E que dizer, ainda, da inexplicável publicação, no P2 de 27 de Dezembro passado, de um texto de Luís Miguel Queirós sobre o Vol. I das “Bootlegs Series” do Quinteto de Miles Davis, objecto de crítica de RA no Ípsilon de quatro dias antes?
Curiosamente, o mesmo disco que mereceu a nota máxima das *****, atribuída por RA com fundamento na asserção de tratar-se de um “monumental registo”, “que surpreende (...) pela perfeição absoluta da música”, sendo “impressionante constatar que, 44 anos passados, dificilmente se encontra um jazz tão vibrante, simultaneamente avançado e baseado na tradição, com os músicos a improvisar com extrema liberdade e imaginação.

Qualidades pelos vistos insuficientes, uma vez que as citadas ***** não impediram que o pobre do Miles caísse para o último lugar da lista dos “10 Melhores discos de 2011”, ultrapassado por outros que, nas respectivas críticas publicadas ao longo do ano no Ípsilon, não atingiram aquela nota máxima (casos de “Wadada Leo Smith – Heart’s Reflections”, cujas 4,5* de RA lhe conferiram o 3ª lugar da lista, e de “Red Trio – Empire”, 6º classificado com apenas 4*, dadas por NC).

Mistérios que a razão e o bom senso desconhecem, mas que a santa aliança compadrio & sectarismo podem explicar.

IX) Conclusão

“Ainda anda por aí muita gente que julga que a água nasce nas torneiras.”
Alexandre O’Neil

Acusou-me RA de, com o meu artigo, revelar “uma total ignorância pela actividade que desenvolvemos actualmente no Público, e alguma irresponsabilidade, pela credibilidade que alguns, como eu, atribuem à sua opinião”.

Não me parece que proceda a alegada ignorância sobre o seu trabalho como responsável pelo que se publica sobre jazz no “Público”.
Pelo contrário, é por estar tão informado sobre ela, como leitor assíduo que sou, que me senti a tal ponto indignado com os factos que fui levado a interromper o meu silêncio público quanto ao estado das coisas em que, em minha opinião, a divulgação e a crítica do jazz têm (sobre)vivido.

Quanto à irresponsabilidade que RA me assaca, os leitores desta polémica julgarão.

Tudo visto, urge concluir que RA, músico no activo e crítico, não desconhece a cena do jazz em Portugal (e não, apenas, a cena do jazz dos músicos portugueses). Limita-se a distorcê-la. Trazendo sistematicamente para a boca de cena uma parte dela e omitindo outra, sacralizando a primeira e ostracizando a segunda.

Lembrava-me há dias um “velho” companheiro de aventuras jazzísticas um dito de O’Neil : “ainda anda por aí muita gente que julga que a água nasce nas torneiras.”
Pior, ainda, são aqueles que, sabendo que assim não é mas dando-lhes jeito que todos acreditassem que assim fosse, acabam convencidos de que todos suportarão e calarão o embuste.

Disse RA que escreveu a sua “Resposta aberta” – que me dirigiu pessoalmente – “pelo respeito que tenho e sempre tive por si e pelo seu trabalho”. Agradeço o respeito mas lamento que na génese da sua resposta não esteja, prioritariamente, o respeito pelos leitores do jornal “Público”.

António Curvelo
(28 Dezembro 2011)

Textos anteriores:
António Curvelo: “Uma porta aberta para ouvidos fechados” (10 Dezembro 2011)
Rodrigo Amado: “Resposta aberta, contra a ignorância e irresponsabilidade” (16 Dezembro 2011)