Uma porta aberta para ouvidos fechados
António Curvelo
Declaração
de interesses
1 – Quando
em 2002 cessei a minha colaboração no jornal PÚBLICO,
pondo termo a um período ininterrupto de 20 anos a escrever regularmente
sobre jazz, decidi que seria um final de ciclo, o que me levou a recusar
vários
simpáticos desafios para continuar a fazê-lo noutros espaços.
Com excepção de um inesperado convite para assumir a programação
do Jazz no Parque de Serralves – recebido logo após a minha
saída do jornal e que aceitei – remeti-me, desde então,
ao mero e gratificante papel de espectador assíduo e o mais atento
possível. Um silêncio que entendi dever quebrar neste momento,
pelas razões que à frente tentarei explicar.
Declaração
de interesses 2 – Num
tempo de continuada privatização do interesse público, é um
prazer poder gozar a hospitalidade do Jazzlogical, um site privado de interesse
público.
Declaração
de interesses 3 – Não viajei a convite
da Associação Porta-Jazz.
1)
Este texto não é uma crítica musical à segunda
edição do Festival Porta-Jazz, realizada na cidade do Porto,
na sala Passos Manuel nos dias 7 e 8 de Dezembro de 2011.
Menos
do que uma notícia, é um testemunho público de
indignação e protesto. Um murro na mesa, um Basta! contra o “estado
de coisas”, à beira da putrefacção, em que hoje
o jazz (sobre)vive na comunicação social.
Um
testemunho que é, apenas e tão só, um acto de rejeição
de um lamentável sinal dos tempos, quando quem mais ordena é,
quase sempre, o compadrio e a promiscuidade, numa terra onde já vale
tudo, incluindo o saneamento por delito de opinião!
2)
O que aconteceu nas boas horas vividas no Passos Manuel – sob a
batuta da Associação Porta-Jazz, que vem desenvolvendo um trabalho
notável, sem nunca cair no pecado nacional de se pôr em bicos
dos pés – exigia (mais do que merecia) a atenção
e o reconhecimento de quem regularmente escreve e pensa o jazz em Portugal.
Um
acto de justiça para com todos os protagonistas do Porta-Jazz
(a começar pelos seus directores, Susana Santos Silva, João
Pedro Brandão e Eurico Costa) e para os músicos de jazz em
geral. E uma obrigação de quem devia sempre escrever para o
público e não para a sua roda de amigos ou para alimentar os
seus próprios egos.
Através de uma busca on line (cujos resultados não serão,
eventualmente, exaustivos), vale a pena ensaiar uma breve recensão
do que (não) aconteceu na imprensa escrita, tradicionalmente a mais
atenta ao mundo do jazz.
O resultado é assustador.
Mas eloquente.
A 15 de Novembro, o Diário de Notícias publicou um despacho
da Lusa a anunciar o Festival, o qual, na mesma data, foi reproduzido no
Jornal de Notícias (em datas próximas do festival não
localizei nenhuma referência).
Enquanto
a edição nacional do Público (jornal que,
desde a sua fundação, concedeu ao jazz o maior espaço
na imprensa escrita) o ignorou olimpicamente (incluindo a agenda sectorial
do suplemento semanal Ípsilon), no dia 7 o Festival foi objecto de
um pequeno destaque no Local Porto. Preço caro, como se percebeu 24
horas depois, uma vez que já não mereceu qualquer menção,
meramente informativa, na agenda do dia seguinte.
Na demais imprensa do Porto o jazz inexiste.
No
Expresso – onde o jazz é mais tolerado do
que amado, raramente saindo das suas tamanquinhas – na sua edição
de 3 de Dezembro, a última antes do festival, o Porta-Jazz não
mereceu uma única linha, nem sequer na agenda.
O
Correio da Manhã,
que há um par de anos mantinha um regular
espaço sobre jazz, parecer ter desinvestido. À falta de crimes
nos bastidores ou violações em palco, abateu-o ao activo.
Quanto à revista Jazz.pt, anuncia-se a próxima publicação
de um texto sobre a Associação.
Excepcionadas
breves referências respigadas de um despacho da Lusa,
pode dizer-se, em conclusão, que a 2ª edição do
Festival Porta-Jazz não foi notícia na imprensa escrita, tendo
direito (aleluia!) a uma circunstancial atenção em raras rádios
e tvs de matriz regional.
Sublinhe-se,
a propósito, que em matéria de
entrevistas e artigos sobre a Associação Porta-Jazz (fundada
em 2010 e promotora do Festival) e as actividades desenvolvidas no seu primeiro
ano de vida,
o balanço é, apenas, um pouco mais lisonjeiro.
3)
Entrando,
agora, na sala Passos Manuel, eis uma súmula
informativa do que aí aconteceu.
Numa
sala de 180 lugares, que estiveram frequentemente esgotados, o 2º Festival
Porta-Jazz incluiu, ao longo de dois dias, nove concertos non stop, com entrada
livre:
Dia 7
João Mortágua J4nela
(João Mortágua – saxofones; Alexandre Dahmen – piano;
Manuel Brito – contrabaixo; Filipe Sequeira – bateria)
GÊ.PS
(João Pedro Brandão – sax alto, flauta; Eurico Costa – guitarra;
Paula Sousa – piano; Nuno Campos – contrabaixo; João Cunha – bateria)
Rui Teixeira Group
(Rui Teixeira – sax barítono, composição; Vasco
Agostinho – guitarra; Hugo Raro – piano, teclados; António
Augusto Aguiar – contrabaixo; Marcos Cavaleiro – bateria)
Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM)
(Pedro Guedes – direcção, composição; José Luís
Rego, João Pedro Brandão, Mário Santos, José Pedro
Coelho, Rui Teixeira –saxofones; Gileno Santana, Rogério Ribeiro,
Javi Pereiro, José Silva – trompetes; Daniel Dias, Andreia Santos, Álvaro
Pinto, Gonçalo Dias – trombones; Carlos Azevedo – piano,
composição; Demian Cabaud – contrabaixo; Marcos Cavaleito – bateria)
Dia 8
Jilaba
(Ricardo Pinto – piano; Sérgio Tavares – contrabaixo;
Alexandre Coelho – bateria)
Quarteto de Jazz do Porto
(Mário Santos – saxofones; Paulo Gomes – piano; Pedro
Barreiros – contrabaixo; Leandro Leonet – bateria)
Pedro Neves Trio
(Pedro Neves – piano; Miguel Ângelo – contrabaixo; Leandro
Leonet – bateria)
Zé Pedro Coelho Quinteto
(José Pedro Coelho – sax tenor, composição; José Manuel
Moreira – guitarras; Hugo Raro – piano; Demian Cabaud – contrabaixo;
José Marrucho – bateria)
Coreto Porta-Jazz
(João Pedro Brandão – sax alto, flauta, composição;
José Pedro Coelho, Fernando Sanchez, Rui Teixeira – saxofones;
Ricardo Formoso, Javi Pereiro – trompetes; Daniel Dias, Andreia Santos – trombones;
Alexandre Dahmen – piano; José Carlos Barbosa – contrabaixo;
José Marrucho – bateria)
Estiveram envolvidos
41 músicos, na quase totalidade portugueses,
divididos por dois trios, dois quartetos, três quintetos, um large
ensemble (onze membros) e uma big band (17 elementos), com a maioria dos
repetentes (9 em 13) a pertencerem aos quadros da OJM.
Acresce
que foi possível constatar uma saudável diversificação
instrumental, contrariando o tradicional domínio quantitativo de guitarristas.
Pelo palco passaram sete saxofonistas, cinco trompetistas, quatro trombonistas,
sete pianistas, oito contrabaixistas, seis bateristas, um director de orquestra
e três guitarristas.
Todos os músicos tocaram gratuitamente.
Salvo raríssimas excepções, os reportórios apresentados foram constituídos por temas originais dos músicos em palco. E, mesmo para os mais cépticos, terá sido óbvia a existência de muito boa matéria prima, para ser trabalhada em futuro próximo.
Para
alguns espectadores, o festival foi, ainda, fonte de uma dupla surpresa – a
quantidade dos músicos participantes aliada à muita qualidade
demonstrada (uma realidade que outros só poderão ignorar devido
a uma gigantesca distracção).
Um fruto com raízes próximas no excelente e continuado trabalho
desenvolvido por duas entidades – a OJM e a Escola Superior de Música
e Artes do Espectáculo (uma ESMAE ressuscitada pela oculta persistência
do grande trabalho de Carlos Azevedo, cujos créditos permanecem envoltos
num inexplicável silêncio) – e devedor de sementes plantadas
no Guimarães Jazz, primeiro nos anos da orquestra internacional (1999-2004),
com maioria portuguesa, reunida propositadamente para tocar a música
de prestigiados directores especialmente convidados (Michael Gibbs, Gil Goldstein,
Maria Schneider, Bob Mintzer, Gianluigi Trovesi, Kenny Wheeler) e, desde
2007, nos workshops orientados por músicos de inegável valia
curricular (Orrin Evans, Marcus Strickland, George Colligan, John Escreet,
Ralph Alessi).
O Porta-Jazz funcionou, também, como um saboroso ponto de encontro de diferentes gerações, num saudável equilíbrio de “veteranos” (como o pianista Paulo Gomes que, embora activo, parece viver na clandestinidade, tão grande tem sido a sua ausência da imprensa) e novas vozes, na sua grande maioria ligados, de uma forma ou outra, à ESMAE e à OJM
Quem teve oportunidade
de acompanhar todos os concertos pôde, ainda,
confirmar uma verdade raramente reconhecida – a real possibilidade
de os mesmos músicos assinarem projectos muito diversificados e personalizados.
Um pedagógico exercício de desmistificação da
crença oposta, segundo a qual só variando os músicos
se podem gozar concertos distintos.
E, paralelamente, a descoberta de outras faces de músicos até então
apenas conhecidos como instrumentistas, como foi o caso paradigmático
do saxofonista/flautista João Pedro Brandão, membro da estante
de saxofones da OJM e que, no seio do large ensemble Coreto-Porta Jazz, tocou,
arranjou e dirigiu a sua própria música. Uma experiência
entusiástica e a revelação de um projecto a seguir com
toda a atenção.
4)
Qualquer
ouvido atento e informado reconhecerá a
impossibilidade de falar, hoje e com conhecimento de causa, do jazz em Portugal
mantendo-se à margem
do que de mais importante e promissor se está a fazer no Grande Porto,
dinamizado pela actividade sustentada da ESMAE (que já agrega um número
significativo de músicos vindos de Espanha), da OJM e, agora, também
da associação dos próprios músicos, em boa hora
reunidos na Porta-Jazz. Uma dinâmica que tenderá a aumentar
quando se vier a concretizar a anunciada intenção da criação
de uma escola de jazz em Guimarães, promovida pela Associação
Cultural Convívio, uma das entidades responsáveis pela criação,
há 20 anos, do festival Guimarães Jazz.
Por tudo isto, a 2ª edição do Festival Porta-Jazz nunca poderia ter sido o segredo que, de facto, foi. Antes deveria ter sido “o destaque da semana” da cena do jazz em Portugal.
Mas a realidade foi
outra: À margem deste contexto
absolutamente inédito,
os jornais que assumiram compromissos (face aos seus leitores) para a divulgação
do jazz (assegurando um espaço regular de crítica discográfica
e de antevisão e crítica de concertos e festivais) primaram
pelo silêncio noticioso ou, na melhor hipótese, por meia dúzia
de linhas, num picar de ponto estritamente burocrático, e pelo mais
absoluto vazio crítico.
Como se as palavras queimassem.
Como se nada tivesse acontecido.
Como se os dias 7 e 8 de Dezembro fossem dois buracos negros na agenda do
jazz nacional e não, como efectivamente foram, um autêntico
manifesto da grande vitalidade da cena do jazz sediada no norte do país
e (repita-se) composta, na sua esmagadora maioria, por músicos portugueses.
Uma injustificável omissão, na qual uma especial responsabilidade deve ser assacada ao Público, o único jornal com dois críticos ao seu serviço mas cuja agenda de cobertura de concertos e festivais vive entrincheirada num despudorado sectarismo estético-ideológico, actuando como um rolo compressor a que também não escapa a crescente descentralização geográfica da cena do jazz, sempre tão elogiada em palavras mas que nos factos parece acabar em Coimbra.
E no entanto (mesmo admitindo
uma qualquer eventual deficiente divulgação
imputável à Associação Porta-Jazz, o que não
sei se foi o caso) bastaria consultar o Jazzlogical para ficar a saber, pelo
menos desde 30 de Novembro, tudo o que era necessário sobre a 2ª edição
do Festival Porta-Jazz: datas, local, hora dos nove concertos e elenco completo
dos grupos participantes.
Seria
assim tão difícil?
E
o futuro continuará, à revelia do mais elementar profissionalismo,
a ser assim tão pequenino?
5)
Termino com uma declaração de desinteresses
que é um
conselho: se quiser estar informado sobre o jazz que hoje fazem os músicos
portugueses – não leia, vá!
António Curvelo
(10 Dezembro 2011)