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Frank Kimbrough

entrevista All Jazz 2003


Frank Kimbrough tornou-se conhecido em Portugal como "o pianista da Maria Schneider". Quem alguma vez assistiu a um concerto de Maria Schneider, não pôde deixar de notar a luminosidade, o lirismo, o cromatismo vivo do toque de Frank Kimbrough. O tempo revelou-o depois, também entre nós, como uma personalidade maior no Jazz contemporâneo. Em Portugal, por duas vezes à frente do Herbie Nichols Project, em disco, em múltiplas formações, Kimbrough revela-se sempre o grande pianista que é.
All Jazz aproveitou a sua presença no Festival de Serralves (Jazz no Parque  2003) para o entrevistar.

 

All Jazz: Tu és um dos dois leaders, com Ben Allison, do Herbie Nichols Project. Quem foi Herbie Nichols?
Frank Kimbrough: Herbie Nichols foi um pianista e compositor que nasceu em New York em 1919 e morreu em New York em 1963. Foi contemporâneo de Thelonious Monk e Bud Powell; os seus pais eram emigrantes das Caraíbas, Trinidad, e trabalhou em New York, mas não muito como leader. Ele apenas gravou três ou quatro discos para a Blue Note e para a Bethlehem Records. Infelizmente ele permaneceu na obscuridade durante a sua vida. Nós pegámos na sua música e eu comecei a transcrever os seus temas.

AJ: Como é que encontraste Herbie Nichols?
FK: Eu ouvi a sua música a primeira vez, ocasionalmente, num programa de rádio que estava a fazer um programa de aniversário. Era Janeiro e nesse dia estava a nevar e eu não queria sair e fiquei a ouvir o programa. Eu estava curioso sobre ele, mas nunca tinha ouvido a sua música. Foi um daqueles momentos que mudam a nossa vida. Porque eu percebi logo como ele era importante.

AJ: O que é que te chamou a atenção em H. N.?
FK: Tudo sobre ele. As composições; a sua forma de tocar (his touch on the piano), e ele tinha sempre grandes secções rítmicas, cheias de swing; todos os aspectos da sua música. A sua música era completa. Ele não esquecia nada.

AJ: Era a forma de tocar? Era parecida com alguma coisa ou alguém? Bud Powell ou Monk, ou outro?
FK: É diferente. De certa forma ele saía da era do swing, mas bastante como Monk ele não era realmente um bopper.
Não é fácil de classificar. Ele cobria um espaço entre o dixieland, o swing e o bop, mas havia elementos do que mais tarde se haveria de conhecer como avant-garde. A sua música era muito interessante. Ele era muito interessante nas "formas"; em manipular as formas das composições.
Não era apenas 32 compassos AABA ou blues de 12 compassos ou o que quer que fosse. Ele tinha que adicionar coisas ou subtrair coisas ou frases, o que quer que fosse, o que fazia a sua música muito interessante.

AJ: Tudo isso advinha somente do Jazz?
FK: Ele estudou música clássica quando era miúdo; ele interessava-se por poesia, ele interessava-se por política, imensas coisas diferentes. E eu penso que tudo isso influenciava e se reflectia na sua música.

AJ: O que é que estás — a HNP — a fazer com a música de Herbie Nichols?
FK: A sua música foi sempre registada no formato trio. Ele nunca teve oportunidade de registar a sua música com sopros. Então uma das coisas que tentamos fazer é executá-la com sopros, dar-lhe a possibilidade de a mostrar em formações mais alargadas. Mas nós também procuramos fazer a nossa própria interpretação da sua música — as suas grandes composições — e não apenas copiar o que ele fez.
AJ: Os arranjos que ele fez estão completos? E são muito complexos?
FK: São bastante complexos. Mas muitos temas não estão completamente orquestrados. Nós — o Herbie Nichols Project (HNP) — procuramos fazer os nossos próprios arranjos.
O HNP é um grupo de músicos que vai mudando bastante. Agora pode ser um quarteto, só piano/ baixo/ bateria/ saxofone, no outro dia pode ter dois saxofones e outro pode ter mais um trompete. O último disco tinha saxofone, trompete e trombone. Tentamos trazer novas pessoas para o grupo. Cada dia tem diferentes formações e isso mantém a música fresca. É muito estimulante para nós e permite introduzir a sua música a outros músicos.

AJ: Todos vocês escrevem?
FK: Não. Eu transcrevi muitas das composições dos discos da Blue Note e da Bethlehem. Ele escreveu muitos temas que nunca foram publicados e a única forma é ouvir os discos. Então a banda começou a transcrever também a partir das gravações e ao mesmo tempo começámos a descobrir composições dele noutros sítios. Na Biblioteca do Congresso; a Shirley Horn deu-nos um tema que ele tinha tocado com ela, a música e o poema; outro amigo meu tinha muitos poemas dele - 60! -, e deu-mos. Isto cresceu ao longo dos anos! Há apenas seis meses alguém nos enviou 24 ou 25 temas dele que tinha encontrado na Biblioteca do Congresso.
Nem todos são bons temas. George Gershwin dizia que por cada boa composição, ele escrevia dez más! Mas muitas delas são realmente boas. Há muitas outras, até porque não há muita informação em papel, que temos vindo a descobrir com o tempo. Há temas que olhamos uma vez e não achamos nada de especial e redescobrimos dois anos depois, com outros olhos.
Das suas primeiras composições, como em qualquer miúdo de 20 anos: algumas serão melhores que outras. Mas eu penso que os seus trabalhos dos 40 anos são quase todos de uma qualidade muito consistente.
Gastamos muito tempo a olhar para os arranjos. E enquanto fomos tocando, eles foram tomando forma, de uma maneira muito orgânica. E eles mudavam de uma noite para a seguinte. Como hoje, tocámos quase o mesmo da noite passada, mas algumas coisas da apresentação de hoje foram bastante diferentes.

AJ: Qual é a relação entre o Herbie Nichols Project e o Jazz Composers Colective?
FK: São coisas diferentes. O JCC começou em sessões que estávamos a ter, eu, o Ben Allison, Michael Blake, Jeff Ballard, etc... Aconteceu numa pequena escola de música em New York, por volta de 1990/ 91, mas de facto fizemos os nossos primeiros concertos por volta de 92. Conforme íamos tocando, aparecia gente com novas composições.

AJ: Afinal o que é o Jazz Composers Colective?
FK: O JCC é uma associação de leaders que se dedica ao desenvolvimento e apresentação da música e ao estudo dos grandes compositores do jazz. Não é uma associação com sócios e quotas ou semelhante.
É uma associação livre de leaders e criadores que se junta para tocar. E como todos somos leaders das nossas próprias bandas, quando tocamos nos grupos de outros, compreendemos melhor o papel do sideman e podemos compreender melhor o que é que o outro leader pretende de nós.
Tornamo-nos melhores sidemen, porque apreciamos o que o sideman pode e deve fazer para materializar o conceito de alguém. Para formar um todo.

AJ: Como colectivo de músicos, vocês podem ser definidos musicalmente? Enquanto corrente ou estilo? Porque me parece que, apesar das vossas diferenças, podemos encontrar na vossa música algumas características comuns que vos fazem romper com a tradição do Jazz mainstream, mas também com as correntes vanguardistas dos anos 70, e ao mesmo tempo tem uma grande preocupação com a escrita e a composição.
FK: O que nos define, é realmente a nossa condição de leaders e compositores de Jazz. Somos influenciados por inúmeras e diferentes coisas. E estamos sempre em movimento, sempre a mudar. Não há nada pior para mim que aceitar um grupo "estabelecido". E não há nada que
me dê mais gozo do que "destruir" um grupo.
Nós estamos juntos todos os dias todo o dia e divertimo-nos imenso (we have a lot of fun). Como é que isso funciona? É difícil transmitir por palavras... Todos nós estamos envolvidos em imensas coisas.
Michael está envolvido com a música africana e de certa forma, a pop music.
Ben gosta de pop music. Eu não ouço pop de todo.
Outros, como Wynton Marsalis, por exemplo, trouxeram para nós muito da tradição.

AJ: Wynton Marsalis é membro do JCC?
FK: O JCC não é uma associação normal. Se um leader vem até nós com composições novas, então nós juntamo-nos e tocamos. Wynton é muito mais do que a tradição; ele é um grande compositor e ele é capaz de comunicar coisas, de oferecer. Cada um expõe aos outros as suas ideias e as suas coisas. E isto funciona de forma que todos beneficiam.
Tentamos não trazer os nossos egos para o grupo. O ego é uma boa parte do Jazz, porque o Jazz se baseia no indivíduo; mas é preciso sabermos comunicar aos outros as nossas ideias.

AJ: Consideras-te um músico de Jazz? Muitos músicos não gostam de ser etiquetados...
FK: Sim, eu considero-me um músico de Jazz. Mas se me tivesses perguntado ontem ou me perguntares amanhã, talvez tivesses outra resposta. E talvez te dissesse que sou apenas um músico. Mas sim, o Jazz é uma parte de mim e eu amo muito essa música. Não gosto de ser colocado numa caixa, porque isso pode limitar-me; realmente ninguém gosta de ser etiquetado.

AJ: O que pensas que vai ser o futuro do Jazz? O Jazz tem futuro?
FK: Eu ensinei durante algum tempo na Universidade e alguns alunos faziam-me essa pergunta. A minha resposta era sempre: Porque me perguntas a mim? Isso depende de ti!
Eu espero que sim. Ele vai continuar a existir em inúmeras diferentes formas. Mas eu não me sinto como a pessoa que é capaz de definir o que o Jazz virá a ser.

AJ: Pessoas como o Keith Jarrett continuam a tocar standards com grande sucesso. Isso faz sentido para ti?
FK: Keith Jarrett é o meu pianista preferido. Ele tocou imensas coisas ao longo da sua vida artística e se ele continua a tocar standards, ele terá as suas razões. Mas não é essa a minha via, tocar standards. Eu sou capaz de tocar, e por vezes, faço-o. Mas acho que não faz sentido.
Eu passei uma boa parte da minha vida a estudar os clássicos. Eu estudei centenas de standards, eu estudei a música de Monk, estudei Herbie Nichols, eu estudei Andrew Hill, eu estudei Bill Evans profundamente, imensos pianistas, os clássicos e os contemporâneos. Mas eu procurava outra coisa. A maior parte dos meus contemporâneos estavam interessados nos pianistas pós-bop. Eu não estava interessado só nisso. Eu andava à procura de outras coisas.
Eu achei que era importante para mim ser responsável por saber o mais possível sobre a História do piano Jazz.
E então, em vez de apenas ouvir três ou quatro pianistas, eu procurei pianistas que os outros não ouviam. Herbie Nichols foi um deles, Paul Bley foi outro, Andrew Hill foi outro, ouvi muito Abdullah Ibrahim, muito de Lennie Tristano, muito de Elmo Hope...

AJ: Esses são os grandes pianistas para ti?
FK: E mais os óbvios, Thelonious Monk, Herbie Hancock, Jarrett, Chick Corea, esses todos. Mas os que eu referi, talvez não tão conhecidos, deram o seu contributo também. Eu acho que é importante para qualquer jovem músico ouvir o mais que puder.

AJ: Consideras que todos estes pianistas estão presentes na tua forma de tocar; influenciaram-te?
FK: De certa forma, a minha forma de tocar foi influenciada por todos eles. A verdade é que isso acontece a todos nós e só não é influenciado quem vive numa caverna.
Mas de todos, eu gostaria de citar três influências maiores:
Em primeiro lugar Shirley Horn. Ela é uma grande pianista. Ela toca baladas melhor que qualquer outro. Ela tem um toque maravilhoso, tem um sentido de tempo único, e tem imensas coisas que fazem uma maneira muito especial de contar uma história. Podes ouvir-me tocar e não ser capaz de reconhecer o toque de Shirley, mas ele está lá, com certeza.
Outra é Andrew Hill, que foi um dos melhores indivíduos como nunca houve no planeta. Como compositor e como pianista. Se eu ouvir Andrew Hill tocar, eu reconheço-o em apenas duas notas. Só pelo seu toque. Mas também o seu conceito de como tocar um standard.
O mesmo com Paul Bley, outra das minhas grandes influências. O que se passa com Paul, é que ele foi buscar tudo a todo o lado, folk music, Tristano, swing, música improvisada, standards, os blues estão sempre lá...

AJ: Os blues estão sempre lá? É muito difícil descobrir os blues nalguns discos de Paul Bley dos anos 70...
FK: Estão nele. Podem não estar à superfície, mas estão lá.
Outro aspecto é a forma como ele transpôs os conceitos de Ornette para o piano. Eu considero-o um dos mais incríveis músicos do século.
Ele foi um dos primeiros a usar o sintetizador. Ele tocou com toda a gente, de Charlie Parker a Evan Parker.

AJ: Tu não usas o sintetizador?
FK: Não. Eu gosto da madeira no metal: Eu gosto de ouvir a madeira e o metal a vibrar. Não gosto de modificações artificiais.

AJ: E não tocas piano eléctrico?
FK: Por vezes toco. Nunca aconteceu nos meus discos, mas aconteceu no disco de Michael Blake, ou nos discos de Ben. E toquei piano preparado. Não como o piano de John Cage, mas algumas cordas foram alteradas. Mas eu sei sempre o que vai sair. Eu consigo sempre controlá-lo, e não ando apenas a experimentar. Isto é um pouco difícil, por vezes, de se fazer ao vivo.

AJ: Este grupo vai continuar por algum tempo?
FK: Sim, talvez. Mas como te disse, o Herbie Nichols Project está sempre a mudar.

AJ: Em que projectos, além do HNP, estás envolvido neste momento?
FK: Tenho tocado com o grupo de Ben e vou continuar com ele mais algum tempo. Vai haver um tour em Outubro como grupo de Ted Nash, com o Marcus Printup, Ben e Matt Wilson.
Esta é uma secção rítmica incrível. Matt tem imensa graça e é um incrível músico. Uma das minhas pessoas favoritas do planeta, também como ser humano.
Tenho vindo a tocar também com o grupo de Michal Blake e vou continuar a trabalhar com Maria Schneider.

AJ: Ela está activa com a Big Band?
FK: Maria tem feito muita coisa sozinha, mas ela tem vários concertos para o ano e tem escrito muito para o próximo disco. Sairá talvez na Primavera.

AJ: E tu como leader?
FK: Como leader, tenho um disco ao vivo em trio, para a Omnitone, que deverá sair no Outono, tudo composições minhas.
Foi gravado num concerto do Jazz Composers Colective com Ben Allison no baixo e Jeff Ballard na bateria. Depois haverá um disco em estúdio com Ben e Matt Wilson que deverá sair na Primavera, pela Palmetto.
E tenho continuado a tocar com Joe Locke também.
Ele tem andado ocupado, mas temos continuado a tocar, por vezes coisas minhas, por vezes dele, por vezes Duke Ellington ou standards.
Eu conheço o Joe há muitos anos e temos tocado sempre.
Haverá mais discos, mas por agora ainda não. Um disco exige uma certa serenidade e um sentido de paz, e nós precisamos disso. Mais do que nunca, no mundo. Fizemos um disco com sucesso. Fizemos outro. E agora, quem sabe?
Outra coisa que eu queria fazer e não tenho tido muita oportunidade é um disco de piano solo. Mas agora tenho andado novamente com a Maria, com o Colective e outras coisas e tenho tido pouca oportunidade de gravar a solo.
Mas agora acho que seria bom voltar a tocar a solo, por vezes...

 

Entrevista por Leonel Santos

 

 

Nota: Em 2003 Frank Kimbrough teve honras de capa na All Jazz #9, sob a minha direcção. É minha também a entrevista que lhe realizei na cidade do Porto, depois da actuação do Herbie Nichols Project no Jazz no Parque (Serralves).

Aqui ficam as reproduções das capas da All Jazz #9.