Publicado em |
Thelonious Monk: «Eu não toco assim»
Um dos maiores génios da música do século XX, Thelonious
Monk, é uma figura mítica do Jazz, objecto de um culto invulgar,
pelo público como pela 'intelligentsia'. Pianista, mas também
compositor, arranjador e chefe de orquestra, Monk evidenciou-se por um estilo
singular, e principalmente pelas concepções interpretativas,
que nele estão intrinsecamente ligadas a uma ideia particular de improvisação,
que é também de arranjo, como de técnica.
Enquanto instrumentista, Thelonious Monk não é considerado um
virtuoso, mas vale a pena observar como a técnica percussiva, herdada
do 'stride' (usada da forma culta de Ellington, mas de modo bem mais interveniente
já que o piano é o seu instrumento, enquanto este raramente o é para
Duke), se adequa na perfeição às suas concepções.
O estilo de Monk é estranhamente 'imperfeito', como não cessaram
de observar os estudiosos; ele está longe de utilizar todas as possibilidades
do piano e não se lhe conhecem excessos ou qualquer tipo de elucubrações
virtuosísticas, com excepção talvez para algumas ocasionais
curtas referências ao 'boogie-woogie' e ao 'stride'.
Mas curiosamente, de acordo com as teses segundo as quais uma das grandes fontes
de inovação no Jazz tem/teve origem na superação
de insuficiências, técnicas ou físicas, num jeito especial
de fazer das fraquezas força, o discurso de Monk é original e
riquíssimo. Monk joga a todo o momento com todos os elementos da composição,
recriando-a sem contudo a desvirtuar. Monk joga com o ritmo e a melodia, alterando
nota a nota, compasso a compasso, recuperando a melodia de seguida para de
novo a reformular. Ele altera o ritmo, a métrica, acelera ou retarda,
introduz síncopes, ablações e silêncios, parece
meditar sobre uma nota para de seguida se precipitar. Thelonious Monk não é um
adepto da música atonal ou da dissonância. Mas ele é o
mais desconcertante dos intérpretes ao introduzir inesperadamente notas
dissonantes em melodias conhecidas. Ele insere erros (falsos erros), na melodia,
na pontuação ou no ritmo, usa arpejos como acordes, introduz
repetições e díssonos, jogando com a altura e duração,
e enfim toda a sorte de figuras, efeitos e artifícios que as oitenta
e oito teclas e os dois pedais lhe permitem.
Não existe subtileza na marcação do ritmo em Thelonious
Monk — ela é óbvia e poderosa, mesmo na mais patética
e abandonada das baladas. Mas isso não significa simplicidade, já que
todo o discurso do pianista é engenhoso em efeitos de descontinuidade,
pulverização e reconstrução das estruturas rítmicas,
de forma semelhante e indissociável da subversão operada sobre
a melodia. A técnica que usa não pode igualmente ser dissociada
da sua própria concepção de composição e
interpretação, pois que ela é obviamente premeditada e
construída sobre as mesmas premissas.
Uma característica menos observada em Thelonious Monk é sua ideia
de interpretação, entendida não somente no que respeita à técnica,
mas na abordagem globalizante e no tratamento dinâmico, evolutivo do
tema, na estrutura da composição e num conceito peculiar de improvisação.
A improvisação é um dos elementos que fazem parte da própria
definição de Jazz. Entre os grandes nomes que fazem a História
do Jazz destacam-se os maiores improvisadores de todos os tempos e algumas
das lendas mais visitadas contam as batalhas das orquestras de rua de New Orleans
ou relatam duelos de saxofones. Assim é que uma boa parte do público
leigo considera Jazz e improvisação como sinónimos.
O ARRANJO É O REINO
DO PIANISTA
Os grandes improvisadores do Jazz desenvolveram formas riquíssimas -
de inteligência, imaginação e técnica - mas que
se utilizam do tema apenas como argumento que depressa abandonam. A forma típica
de construção de uma composição em Jazz baseou-se
na alternância dos elementos tema e improvisação. Duke
Ellington, um dos maiores e mais profícuos compositores de sempre do
Jazz (que pelo seu conceptualismo foi contestado pelos fundamentalistas da
altura, que o acusaram de abastardamento e aviltamento do espírito original
do Jazz), integrava sempre nas composições o elemento improvisação,
reservando espaços próprios aos solistas.
Em Thelonious Monk a estrutura tradicional é secundária, sendo
inúmeros os exemplos de interpretações onde não é reservado
espaço para o solo. Ou se preferirmos, todo o trecho é uma improvisação
em torno do tema, um exercício de recriação permanente.
Mais óbvio nas interpretações solo , o pianista usa o
motivo como base de trabalho, reinventando a todo o momento cada nota e cada
acorde, diluindo ou eliminando a fronteira entre o tema e a explanação,
assumindo a composição como um todo. Monk pulveriza o tema, toma
um pequeno pedaço, altera-o, ora modificando-lhe alguma ou algumas das
notas, ora suprimindo ora adicionando notas novas, eventualmente 'erradas',
ou silêncios, alterando-lhe a métrica, o tempo, o ritmo, num jogo
de subversão aparentemente sem regras nem limites. O elemento improvisação,
tal como é comummente entendido deixa de existir e o que resta no fim é um
objecto inteiramente novo.
Poderíamos falar aqui de um conceito novo de 'head arrangement' e este,
o arranjo, feito por sobre a interpretação, é o reino
privilegiado do pianista. A forma absolutamente original como parece divagar
sobre o tema, as suspeitíssimas hesitações, os falsos
erros, a ideia da composição que no fim ressurge, não
engana. A noção de composição global contesta a
estrutura típica exposição do tema - solo - tema, do Jazz.
Hall Overton transmitiu bem a ideia do pianista nos arranjos para orquestra
, tendo sido talvez Coltrane o 'solista' que melhor entendeu o espírito
de Monk .
Interessante é observar a marcação de Monk às intervenções
dos solistas, muito mais que mero suporte rítmico, em sequências
de notas esparsas, desenhando a (fragmentos da) melodia em movimentos paralelos,
que por vezes parecem mesmo comprometer os solos. Não menos espantoso é pelo
contrário o silêncio absoluto a que se remete perante a grandiloquência
das intervenções de Trane .
Thelonious Monk é a antítese do 'sideman', recusando-se ao papel
de elemento anódino da secção rítmica. Esta postura,
absolutamente coerente com a sua personalidade extravagante e solitária,
foi mesmo a causa de incompreensão e atritos com inúmeros músicos,
entre os quais Miles Davis e Coleman Hawkins.
Monk é verdadeiramente desconcertante na interpretação dos temas extraídos do cancioneiro americano já que os ouvidos treinados pelo conhecimento das melodias populares são, nota-a-nota, silêncio-a-silêncio, surpreendidos pela construção de um sistema solar alternativo, parte de um universo por vezes dissonante, mas coerente.
MÚSICA EM MOVIMENTO
O papel de Monk na interpretação/recriação de 'standards'
extraídos do 'American Song Book', não é inocente, sendo
a sua compreensão fundamental no situar na História do Jazz,
enquanto herói e paradigma da linguagem e do seu espírito: o
Jazz não nasceu de geração espontânea. Como nenhuma
outra forma musical, aliás. Mas, ao contrário de outros géneros,
correntes, movimentos ou linguagens musicais, assume despudoradamente a paternidade
conflituosa, integrando em si mesmo os instrumentos e as técnicas, os
conceitos, os folclores e as temáticas alheias. Música mestiça
por excelência, o Jazz é a mais erudita das músicas populares
(como também a mais popular das músicas eruditas). A música
que sai dos dedos de Thelonious Monk é o modelo insuperado do espírito
do Jazz — música popular erudita, em conflito e em mutação
permanente, dinâmica, criativa, de uma riqueza ímpar.
Thelonious Monk regressava amiúde aos 'standards' da rua, meia dúzia
de canções que usava sem parcimónia. A sua relação
com os 'standards' era uma verdadeira relação de amor-ódio
já que, se a eles sempre regressava, pouco restava do original após
passar pelas suas mãos. Monk parecia querer dizer: «eu sou diferente,
eu sou músico de Jazz, eu não toco assim». A trama elementar
das canções populares mais não eram que 'leit motiv' para
a sua reinterpretação do mundo, mas não o único.
Com o contemporâneo Tadd Dameron e, noutros tempos e outros contextos,
Ellington, Bird, Charles Mingus ou Ornette, Monk sentiu na insuficiência
dos 'standards', a necessidade de criar as suas próprias composições.
Vale a pena referir o fenómeno absurdo que reside na desproporcionada
valoração do cancioneiro popular norte-americano por parte dos
amantes do Jazz. O valor do 'American Song Book' tem origem na diversidade
das culturas património do povo norte-americano, apoia-se numa indústria
discográfica (e cinematográfica) poderosa, mas cimenta-se definitivamente
na interpretação que dos seus originais fizeram várias
gerações de músicos de Jazz. Os 'standards' norte-americanos
não serão melhores que os franceses, italianos ou brasileiros,
e apenas Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Louis Arm-strong os imortalizaram.
Os músicos de Jazz (música de origem norte-americana) encontraram
nas canções da rua a fonte mais próxima de inspiração,
até à universalização definitiva do Jazz operada
nos anos sessenta e setenta.
Diz a lenda que as primeiras composições de Thelonious Monk,
nos primórdios do bebop, eram ardilosas tramas destinadas a afastar
os menos dextros. O bebop entusiasmava toda a espécie de voluntaristas
e os artifícios das criações de Monk cumpriam o papel
da selecção natural.
Praticamente todos os seus originais são hoje 'standards' do Jazz. As
gerações seguintes adoptaram as melodias que criou, mas a música
de Monk apenas ocasionalmente é tocada. Repetido até à exaustão,
ele permanece incompreendido. Bill Frisell, Steve Lacy, Don Byron, Ran Blake,
Marc Ribot, Willem Breuker ou Giorgio Gaslini ouviram Thelonious Monk, mas
a grande maioria dos seus intérpretes limita-se a tocar as notas das
criações de Monk 'ao estilo' de Monk, pouco tendo entendido da
sua ideia subversiva de música em movimento.
MONK NÃO É UM
BOPPER
Thelonious Monk emergiu na cena musical no advento do bebop, tendo participado
activamente nas célebres sessões do Minton's nos primeiros
anos da década de 40. As suas concepções eram no entanto
por demais avançadas para a altura, tendo ele retirado do bop muito
mais do espírito revolucionário que o assistia, que a forma,
de que se serviu nos seus propósitos. Maldito entre os seus pares,
incompreendido, mesmo entre os músicos, que entendiam bastante melhor
o pianismo eloquente de Bud Powell, Tadd Dameron, Milt Jackson ou Duke Jordan.
Monk não foi, de facto, um bopper (ou se quisermos, ele terá sido
um bopper ocasional).
Monk é um músico solitário e atormentado; são inúmeras
as suas gravações solo, como são lendários os obscuros
períodos de eclipse. Thelonious Monk tocou com Charlie Parker, Kenny
Clarke, Coleman Hawkins, Dizzy Gillespie, Coltrane, Johnny Griffm, Roy Haynes,
Miles Davis, Art Blakey, Max Roach e Sonny Rollins, em conturbados e efémeros
combos. Apenas nos anos 60 o pianista encontraria a paz na forma de um grupo
mais estável e coeso, liderado pelo saxofonista Charles Rouse, coincidindo
com a mudança de 'label' e de produtor. Este viria a ser no entanto
um período de estabilização das formas experimentadas
nos vinte anos anteriores e aonde o estro esteve quase sempre arredado.
Thelonious Monk foi referido inúmeras vezes como um louco, um génio
perturbado. Ao longo da vida, ele haveria de repetir até à exaustão
não mais de uma trintena de composições, entre 'standards'
e originais seus, de forma obsessiva e atormentada, como um deus criador e
experimentador de mundos em busca da perfeição.
A singularidade do seu universo musical concentracionário onde errava
(com traços muito próximos dos preceitos estéticos que
assistiam ao movimento surrealista) faz dele um dos mais geniais e mais perturbantes
músicos do século XX. O seu legado pertence hoje já à História
da Música, mas ele era inequivocamente um músico de Jazz e a
sua personalidade confunde-se com o espírito mesmo do Jazz.
Encontraria alguma dificuldade em escolher um disco para representar a arte
maior de Thelonious Monk. Ainda assim, a minha clara preferência vai
para as gravações de estúdio a solo, da década
de cinquenta: Alone In San Francisco, Riverside, OJC 231 e Thelonious Himself,
Riverside, OJC 254 (John Coltrane toca em "Monk's Mood", numa intervenção
absolutamente fabulosa); e os trios alternando Art Blakey e Max Roach em Thelonious
Monk, Prestige, OJC 010.
Thelonious Monk tocou em Portugal, integrado nos Giants Of Jazz, no l.º Festival
de Jazz de Cascais, em 21 de Novembro de 1971. As suas últimas gravações
conhecidas, para a etiqueta Black Lion, datam de 15 desse mesmo Novembro.
LS