Publicado em
O Papel do Jazz,
Número Dois, 1997
Direcção de José Duarte, Lisboa: Livros Cotovia

 

Thelonious Monk: «Eu não toco assim»

Um dos maiores génios da música do século XX, Thelonious Monk, é uma figura mítica do Jazz, objecto de um culto invulgar, pelo público como pela 'intelligentsia'. Pianista, mas também compositor, arranjador e chefe de orquestra, Monk evidenciou-se por um estilo singular, e principalmente pelas concepções interpretativas, que nele estão intrinsecamente ligadas a uma ideia particular de improvisação, que é também de arranjo, como de técnica.
Enquanto instrumentista, Thelonious Monk não é considerado um virtuoso, mas vale a pena observar como a técnica percussiva, herdada do 'stride' (usada da forma culta de Ellington, mas de modo bem mais interveniente já que o piano é o seu instrumento, enquanto este raramente o é para Duke), se adequa na perfeição às suas concepções. O estilo de Monk é estranhamente 'imperfeito', como não cessaram de observar os estudiosos; ele está longe de utilizar todas as possibilidades do piano e não se lhe conhecem excessos ou qualquer tipo de elucubrações virtuosísticas, com excepção talvez para algumas ocasionais curtas referências ao 'boogie-woogie' e ao 'stride'.
Mas curiosamente, de acordo com as teses segundo as quais uma das grandes fontes de inovação no Jazz tem/teve origem na superação de insuficiências, técnicas ou físicas, num jeito especial de fazer das fraquezas força, o discurso de Monk é original e riquíssimo. Monk joga a todo o momento com todos os elementos da composição, recriando-a sem contudo a desvirtuar. Monk joga com o ritmo e a melodia, alterando nota a nota, compasso a compasso, recuperando a melodia de seguida para de novo a reformular. Ele altera o ritmo, a métrica, acelera ou retarda, introduz síncopes, ablações e silêncios, parece meditar sobre uma nota para de seguida se precipitar. Thelonious Monk não é um adepto da música atonal ou da dissonância. Mas ele é o mais desconcertante dos intérpretes ao introduzir inesperadamente notas dissonantes em melodias conhecidas. Ele insere erros (falsos erros), na melodia, na pontuação ou no ritmo, usa arpejos como acordes, introduz repetições e díssonos, jogando com a altura e duração, e enfim toda a sorte de figuras, efeitos e artifícios que as oitenta e oito teclas e os dois pedais lhe permitem.
Não existe subtileza na marcação do ritmo em Thelonious Monk — ela é óbvia e poderosa, mesmo na mais patética e abandonada das baladas. Mas isso não significa simplicidade, já que todo o discurso do pianista é engenhoso em efeitos de descontinuidade, pulverização e reconstrução das estruturas rítmicas, de forma semelhante e indissociável da subversão operada sobre a melodia. A técnica que usa não pode igualmente ser dissociada da sua própria concepção de composição e interpretação, pois que ela é obviamente premeditada e construída sobre as mesmas premissas.
Uma característica menos observada em Thelonious Monk é sua ideia de interpretação, entendida não somente no que respeita à técnica, mas na abordagem globalizante e no tratamento dinâmico, evolutivo do tema, na estrutura da composição e num conceito peculiar de improvisação.
A improvisação é um dos elementos que fazem parte da própria definição de Jazz. Entre os grandes nomes que fazem a História do Jazz destacam-se os maiores improvisadores de todos os tempos e algumas das lendas mais visitadas contam as batalhas das orquestras de rua de New Orleans ou relatam duelos de saxofones. Assim é que uma boa parte do público leigo considera Jazz e improvisação como sinónimos.

O ARRANJO É O REINO DO PIANISTA
Os grandes improvisadores do Jazz desenvolveram formas riquíssimas - de inteligência, imaginação e técnica - mas que se utilizam do tema apenas como argumento que depressa abandonam. A forma típica de construção de uma composição em Jazz baseou-se na alternância dos elementos tema e improvisação. Duke Ellington, um dos maiores e mais profícuos compositores de sempre do Jazz (que pelo seu conceptualismo foi contestado pelos fundamentalistas da altura, que o acusaram de abastardamento e aviltamento do espírito original do Jazz), integrava sempre nas composições o elemento improvisação, reservando espaços próprios aos solistas.
Em Thelonious Monk a estrutura tradicional é secundária, sendo inúmeros os exemplos de interpretações onde não é reservado espaço para o solo. Ou se preferirmos, todo o trecho é uma improvisação em torno do tema, um exercício de recriação permanente. Mais óbvio nas interpretações solo , o pianista usa o motivo como base de trabalho, reinventando a todo o momento cada nota e cada acorde, diluindo ou eliminando a fronteira entre o tema e a explanação, assumindo a composição como um todo. Monk pulveriza o tema, toma um pequeno pedaço, altera-o, ora modificando-lhe alguma ou algumas das notas, ora suprimindo ora adicionando notas novas, eventualmente 'erradas', ou silêncios, alterando-lhe a métrica, o tempo, o ritmo, num jogo de subversão aparentemente sem regras nem limites. O elemento improvisação, tal como é comummente entendido deixa de existir e o que resta no fim é um objecto inteiramente novo.
Poderíamos falar aqui de um conceito novo de 'head arrangement' e este, o arranjo, feito por sobre a interpretação, é o reino privilegiado do pianista. A forma absolutamente original como parece divagar sobre o tema, as suspeitíssimas hesitações, os falsos erros, a ideia da composição que no fim ressurge, não engana. A noção de composição global contesta a estrutura típica exposição do tema - solo - tema, do Jazz. Hall Overton transmitiu bem a ideia do pianista nos arranjos para orquestra , tendo sido talvez Coltrane o 'solista' que melhor entendeu o espírito de Monk .
Interessante é observar a marcação de Monk às intervenções dos solistas, muito mais que mero suporte rítmico, em sequências de notas esparsas, desenhando a (fragmentos da) melodia em movimentos paralelos, que por vezes parecem mesmo comprometer os solos. Não menos espantoso é pelo contrário o silêncio absoluto a que se remete perante a grandiloquência das intervenções de Trane .
Thelonious Monk é a antítese do 'sideman', recusando-se ao papel de elemento anódino da secção rítmica. Esta postura, absolutamente coerente com a sua personalidade extravagante e solitária, foi mesmo a causa de incompreensão e atritos com inúmeros músicos, entre os quais Miles Davis e Coleman Hawkins.

Monk é verdadeiramente desconcertante na interpretação dos temas extraídos do cancioneiro americano já que os ouvidos treinados pelo conhecimento das melodias populares são, nota-a-nota, silêncio-a-silêncio, surpreendidos pela construção de um sistema solar alternativo, parte de um universo por vezes dissonante, mas coerente.


MÚSICA EM MOVIMENTO
O papel de Monk na interpretação/recriação de 'standards' extraídos do 'American Song Book', não é inocente, sendo a sua compreensão fundamental no situar na História do Jazz, enquanto herói e paradigma da linguagem e do seu espírito: o Jazz não nasceu de geração espontânea. Como nenhuma outra forma musical, aliás. Mas, ao contrário de outros géneros, correntes, movimentos ou linguagens musicais, assume despudoradamente a paternidade conflituosa, integrando em si mesmo os instrumentos e as técnicas, os conceitos, os folclores e as temáticas alheias. Música mestiça por excelência, o Jazz é a mais erudita das músicas populares (como também a mais popular das músicas eruditas). A música que sai dos dedos de Thelonious Monk é o modelo insuperado do espírito do Jazz — música popular erudita, em conflito e em mutação permanente, dinâmica, criativa, de uma riqueza ímpar.
Thelonious Monk regressava amiúde aos 'standards' da rua, meia dúzia de canções que usava sem parcimónia. A sua relação com os 'standards' era uma verdadeira relação de amor-ódio já que, se a eles sempre regressava, pouco restava do original após passar pelas suas mãos. Monk parecia querer dizer: «eu sou diferente, eu sou músico de Jazz, eu não toco assim». A trama elementar das canções populares mais não eram que 'leit motiv' para a sua reinterpretação do mundo, mas não o único. Com o contemporâneo Tadd Dameron e, noutros tempos e outros contextos, Ellington, Bird, Charles Mingus ou Ornette, Monk sentiu na insuficiência dos 'standards', a necessidade de criar as suas próprias composições.
Vale a pena referir o fenómeno absurdo que reside na desproporcionada valoração do cancioneiro popular norte-americano por parte dos amantes do Jazz. O valor do 'American Song Book' tem origem na diversidade das culturas património do povo norte-americano, apoia-se numa indústria discográfica (e cinematográfica) poderosa, mas cimenta-se definitivamente na interpretação que dos seus originais fizeram várias gerações de músicos de Jazz. Os 'standards' norte-americanos não serão melhores que os franceses, italianos ou brasileiros, e apenas Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Louis Arm-strong os imortalizaram. Os músicos de Jazz (música de origem norte-americana) encontraram nas canções da rua a fonte mais próxima de inspiração, até à universalização definitiva do Jazz operada nos anos sessenta e setenta.
Diz a lenda que as primeiras composições de Thelonious Monk, nos primórdios do bebop, eram ardilosas tramas destinadas a afastar os menos dextros. O bebop entusiasmava toda a espécie de voluntaristas e os artifícios das criações de Monk cumpriam o papel da selecção natural.
Praticamente todos os seus originais são hoje 'standards' do Jazz. As gerações seguintes adoptaram as melodias que criou, mas a música de Monk apenas ocasionalmente é tocada. Repetido até à exaustão, ele permanece incompreendido. Bill Frisell, Steve Lacy, Don Byron, Ran Blake, Marc Ribot, Willem Breuker ou Giorgio Gaslini ouviram Thelonious Monk, mas a grande maioria dos seus intérpretes limita-se a tocar as notas das criações de Monk 'ao estilo' de Monk, pouco tendo entendido da sua ideia subversiva de música em movimento.

MONK NÃO É UM BOPPER
Thelonious Monk emergiu na cena musical no advento do bebop, tendo participado activamente nas célebres sessões do Minton's nos primeiros anos da década de 40. As suas concepções eram no entanto por demais avançadas para a altura, tendo ele retirado do bop muito mais do espírito revolucionário que o assistia, que a forma, de que se serviu nos seus propósitos. Maldito entre os seus pares, incompreendido, mesmo entre os músicos, que entendiam bastante melhor o pianismo eloquente de Bud Powell, Tadd Dameron, Milt Jackson ou Duke Jordan. Monk não foi, de facto, um bopper (ou se quisermos, ele terá sido um bopper ocasional).
Monk é um músico solitário e atormentado; são inúmeras as suas gravações solo, como são lendários os obscuros períodos de eclipse. Thelonious Monk tocou com Charlie Parker, Kenny Clarke, Coleman Hawkins, Dizzy Gillespie, Coltrane, Johnny Griffm, Roy Haynes, Miles Davis, Art Blakey, Max Roach e Sonny Rollins, em conturbados e efémeros combos. Apenas nos anos 60 o pianista encontraria a paz na forma de um grupo mais estável e coeso, liderado pelo saxofonista Charles Rouse, coincidindo com a mudança de 'label' e de produtor. Este viria a ser no entanto um período de estabilização das formas experimentadas nos vinte anos anteriores e aonde o estro esteve quase sempre arredado.
Thelonious Monk foi referido inúmeras vezes como um louco, um génio perturbado. Ao longo da vida, ele haveria de repetir até à exaustão não mais de uma trintena de composições, entre 'standards' e originais seus, de forma obsessiva e atormentada, como um deus criador e experimentador de mundos em busca da perfeição.
A singularidade do seu universo musical concentracionário onde errava (com traços muito próximos dos preceitos estéticos que assistiam ao movimento surrealista) faz dele um dos mais geniais e mais perturbantes músicos do século XX. O seu legado pertence hoje já à História da Música, mas ele era inequivocamente um músico de Jazz e a sua personalidade confunde-se com o espírito mesmo do Jazz.
Encontraria alguma dificuldade em escolher um disco para representar a arte maior de Thelonious Monk. Ainda assim, a minha clara preferência vai para as gravações de estúdio a solo, da década de cinquenta: Alone In San Francisco, Riverside, OJC 231 e Thelonious Himself, Riverside, OJC 254 (John Coltrane toca em "Monk's Mood", numa intervenção absolutamente fabulosa); e os trios alternando Art Blakey e Max Roach em Thelonious Monk, Prestige, OJC 010.
Thelonious Monk tocou em Portugal, integrado nos Giants Of Jazz, no l.º Festival de Jazz de Cascais, em 21 de Novembro de 1971. As suas últimas gravações conhecidas, para a etiqueta Black Lion, datam de 15 desse mesmo Novembro.


LS