Jazz em Portugal 100 anos de Txim, Txim, Txim, Pó, Pó, Pó
ou a invenção da História do Jazz em Portugal
A exposição «Jazz em Portugal 100 anos de Txim, Txim, Txim, Pó, Pó, Pó», que João Moreira dos Santos (JMS) comissaria na Biblioteca Nacional provoca-me sentimentos contrários. Por um lado, é de felicitar que se celebre o Jazz em Portugal, a música que nós amamos, e nunca será demais celebrá-la. Por outro os erros históricos, as omissões, os equívocos, os abusos, a confusão que estabelece, são de tal ordem que a transformam numa história de ficção.
O mérito da exposição reside na reunião de objectos dispersos, documentos e fotos muito curiosas, alguns dos quais, creio, inéditos, entre peças de grande interesse histórico, e o mérito também de recordar alguns dos percursores do Jazz em Portugal, e as dificuldades que esses homens enfrentaram para dar a conhecer essa música magnífica. À política reaccionária do Estado Novo juntavam-se jornalistas ignorantes, uma igreja retrógrada, e uma sociedade conservadora e virada de costas para o resto do mundo. O conturbado processo da fundação do Hot Club, as primeiras jam sessions dos anos 50, o encerramento do Clube Universitário de Jazz, o processo de expulsão de Charlie Haden ou um processo político e administrativo levantado pela Federação das Sociedades de Educação e Recreio que procurava impedir a dança denominada de swing nas colectividades (1942), sob o pretexto de que esgotava os dançarinos e afectava a moral são alguns exemplos, mas a generalidade dos textos jornalísticos das primeiras décadas do século XX procurava simplesmente denegrir uma coisa que eles nem sabiam muito bem o que seria.
Dividida em secções, a exposição atribui uma importância desequilibrada ao que seria o Jazz da primeira metade do século XX, que o historiador João Moreira dos Santos teria descoberto e nos revela. O problema começa aí: é que até metade dos anos 40 não há Jazz em Portugal, como a exposição acaba por revelar. Colocar a tónica no início do século XX até poderia ser compreendido pelo interesse que alguns documentos menos conhecidos poderiam suscitar; o absurdo é que não havia Jazz. Se para alguma coisa a exposição serve é exactamente para provar o contrário do que João Moreira dos Santos pretende, para explicar porque é que o Jazz chegou a Portugal tão tarde, e porque é que só nos anos cinquenta aparecem os primeiros músicos de Jazz em Portugal.
Mas os erros prosseguem. João Moreira dos Santos afadiga-se a apresentar documentos, inúmeros como veremos irrelevantes para a história do Jazz, outros associados de forma errónea, com saltos temporais – de décadas! – abusivos, colocando objectos sem importância ao lado de outros fundamentais com outros interessantes para outra exposição, ignorando factos e figuras, ou introduzindo elementos apenas pelo picaresco, e onde o Jazz dos últimos quarenta anos é claramente menorizado, com acontecimentos e figuras fundamentais a terem uma atenção irrelevante ou a serem simplesmente passadas em branco.
Sem pretender fazer um levantamento exaustivo da exposição, alguns erros e omissões, devem ser observados, a começar desde logo, pois, pelo seu propósito.
1. A confusão começa logo no tema da exposição, na celebração dos 100 anos do Jazz em Portugal. A menção centenária é a frase de Alfredo Mesquita no livro «A América do Norte», de 1916: «Os fonógrafos repetem indefinidamente a mesma romanza ou o mesmo rag-time», e o nome da exposição é retirado de uma canção da peça «Jazz-Band infernal», de 1934, onde se pretende ridicularizar o Jazz. Mas se a frase perdida no meio das trezentas páginas do livro de Alfredo Mesquita é não mais que uma referência etnográfica de uma coisa que existiria na América do Norte, as referências seguintes deveriam fazer o historiador questionar-se da sua pertinência. Mas pelo contrário João Moreira dos Santos começou por construir uma tese e dedica-se a descobrir as provas para a comprovar. A forma ardilosa que Moreira dos Santos construiu, e consciente da escassez e ambiguidade dos testemunhos do Jazz desses primeiros tempos, esclarece: «Foi nos efervescentes e transgressores clubes nocturnos da Lisboa dos anos 20 a 50, que o Jazz, então música de dança, teve a sua primeira morada.» (na secção «Dos Clubes Nocturnos aos Clubes de Jazz»). Haveria então uma primeira fase do Jazz em Portugal que seria o Jazz para dançar, a que se seguiria o Jazz da geração de Villas Boas.
2. Entre 1916 e o meio dos anos 40, mais de 30 anos!, João Moreira dos Santos encontrou menos de trinta referências na imprensa, e ainda assim equívocas, associadas à dança ou a espectáculos de music hall, ou nem isso: menos de um objecto por ano! Mesmo admitindo que outros mais existam, eles revelam apenas que não havia Jazz em Portugal até aos anos 40, e mesmo assim…
Para não aborrecer os leitores mais impacientes deixo a minha observação a esses documentos para o fim deste texto, no ANEXO.
3. Porque pretende provar que existia Jazz em Portugal desde os anos 20, JMS atarefou-se em encontrar provas. À falta de Jazz, o autor da exposição alargou abusivamente o âmbito do que é o Jazz, com a consciência de que o que era tocado era não mais do que o foxtrot, o charleston, o tango, a valsa ou o corridinho, e cônscio também de que durante muito tempo qualquer agrupamento musical que tivesse uma bateria era denominado de jazz-band. E nesta volúpia abrangedora, os erros, abusos e omissões prolongam-se.
O Jazz nunca foi música de dança, no sentido de que nunca foi (ou foi-o apenas marginalmente) construído como música feita para dançar, mas apenas música para ser construída como tal e fruída como tal: a confusão começa aqui. Algum Jazz (e inúmeros subprodutos) foi durante algum tempo dançado (pela forte componente rítmica das primeiras décadas - o que provocou até reacções violentas dentro do próprio Jazz, como reza a História), mas nem foi isso sequer que chegou aos tais clubes de que JMS fala.
O que chegou a Portugal foram os géneros marginais funcionais, destinados a dançar, parentes do Jazz alguns, outros nem sequer isso, como atrás referi, simplesmente música feita por orquestras ou bandas com bateria, que passavam, apenas por isso, (como o próprio JMS diz) a ser denominadas de jazz-bands.
4. Alguns documentos expostos são no mínimo pouco pertinentes. São inúmeros os objectos que procuram fazer associações abusivas que, ainda que plasticamente interessantes, não cabem numa exposição dedicada a celebrar o Jazz. Alguns exemplos:
. Uma bonita fotografia de três metros de altura tem como legenda «Montra da discoteca Universal, na Rua do Carmo, vendo-se expostos diversos discos de Jazz (sem data)» Ora se a foto não tem data, podendo-se ainda assim deduzir que seja antiga, pela roupa dos vendedores ou pelo mobiliário, nela não se distinguem quaisquer discos de Jazz!
. Um outro objecto, uma colecção de discos da Columbia Records de 78 rotações que terá pertencido a Manuel Fratel, de 1931, tem em destaque um disco de uma tal Carabelli Jazz Band. Mas ela não é uma colecção de discos de Jazz e o disco em destaque pertence à jazz-band (uma vez mais, apenas uma banda com bateria) do argentino Adolfo Carabelli, músico conhecido como escritor de tangos – que toca neste disco uma candonbera (música popular uruguaia de influência negro africana) e um maxixe (também conhecido como o tango brasileiro).
. Uma «Grafonola His Master Voice comercializada pela loja Grande Bazar do Porto (sem data)», como exemplo de como se ouvia música em Portugal, mas irrelevante numa exposição de Jazz.
. Foto do exterior do clube nocturno Maxim’s, de 1929, onde se dançava o foxtrot, a valsa e o charleston, a dispensar mais comentários.
. Fichas de jogo dos clubes nocturnos Regaleira e Maxim’s» !!!!!!!!!
5. A divisão em secções permite por outro lado que João Moreira do Santos agrupe objectos distanciados de décadas, sugerindo uma associações e continuidades que não existiram. Por exemplo, uma capa da revista ABC de 1927 (de um violonista de fraque e uma rapariga bebendo champagne) ao lado da capa de um Cavaleiro Andante (com a figura de Sidney Bechet, sem data na legenda) de 1961.
Já no texto que escrevi sobre António Ferro eu tinha observado a forma pouco rigorosa, pouco histórica, que JMS utiliza, ao associar documentos separados por décadas para sugerir continuidade, o que nesta exposição é basicamente a regra. Se num tema determinado a associação pode ser autorizada, a leitura da associação deve sempre ser clarificada, e ora o que acontece é exactamente o contrário.
6. No início dos anos 20 Lisboa começa a sofrer alguma influência do modernismo europeu, nos costumes e na cultura, o que influenciou basicamente alguma elite e que se revelou na adopção de modas e comportamento. Cartazes com raparigas de cabelo à garçonne e roupas mais ousadas são generosamente interpretadas por JMS como o Jazz que chegava a Portugal. Esta associação modernidade=Jazz atravessa a exposição, com alguns exemplos ridículos até, como a introdução de alguns livros onde a «noite transgressora» era relatada. E quando falamos de clubes estamos a falar de apenas uma vintena, e de vida atribulada. Como se sabe, o Estado Novo acabaria com essas veleidades modernistas, logo em 1928, e todo o Jazz que poderia vir a chegar a Portugal esfumou-se.
7. A associação preto=Jazz é outra ligação perigosa que JMS não se coíbe de invocar. Uma das divisões da exposição tem como título «A Hora Preta», inspirada num texto de Fernando Pamplona de 1928, e JMS subscreve esta confusão que se prolonga por toda a exposição, alimentada na referência da vinda a Portugal de alguns espectáculos de music-hall negros franceses; no livro «O Preto do Charleston» ou na foto do Eusébio ao lado de Louis Armstrong. A associação talvez seja autorizada ao público leigo, mas o historiador tem o dever de pensar melhor. Em anterior exposição, Moreira dos Santos incluía o seu livro-disco dedicado à bailarina Josephine Baker, que não está presente na exposição actual. Ainda bem.
8. A montra dedicada à literatura de ficção dos anos 20 é igualmente disparatada. Sob a legenda «Nos anos 20 e 30, o fenómeno do Jazz e dos clubes nocturnos de Lisboa foi transposto para diversos romances por escritores como Almada Negreiros, Reinaldo Ferreira, João Ameal, Mário Domingues, Guedes de Amorim e Augusto Navarro», JMS expõe uma dezena de livros que relatam um pouco do que terá sido a tal noite transgressora da capital dos anos 20, dos clubes onde se dançava e bebia e consumia ópio e cocaína, a noite apimentada com mulheres fatais e bailarinos negros.
Três exemplos:
a) o livro de Almada Negreiros («Nome de Guerra») conta a história de um jovem de boas famílias da província que se apaixona por uma jovem prostituta num club. Jazz: népias.
b) «A virgem do Bristol Club dançava shimmies e tangos ao som da jazz-band, preservando a sua pureza na noite dos clubs e cabarets lisboetas. Jazz: népias.
E c) «O Preto do Charleston» de Mário Domingues fala de um jovem angolano negro – dançarino no Roma Club - que tinha vivido em Nova Iorque onde tinha aprendido a dançar o charleston, e que era o amante mais desejado das mulheres de Lisboa. A estridente jazz-band toca o charleston, o shimmy e o black-bottom, o foxtrot, enquanto no Roma Club se consome cocaína, ópio e o álcool escorre, e o preto dança. Jazz: népias.
Existem vários estudos académicos, e livros, que se debruçaram sobre a vida lisboeta nos anos 20 e sobre a literatura provocadora e sensacionalista que surgia, que João Moreira dos Santos deveria ler. Interessante, percursora, mas claramente parca, e sem Jazz.
E se de literatura estamos conversados, sobre o António Ferro já falámos. Conferir o que escrevi no texto AQUI.
9. A exposição atribui uma importância desequilibrada ao Jazz da primeira metade do século XX, o que poderá até ser compreendido pelo interesse que alguns documentos menos conhecidos podem suscitar. Mas a tónica num período em que não havia Jazz, numa exposição sobre Jazz, é claramente um absurdo. Pode argumentar-se que uma exposição que pretenda historiar numa única sala «cem anos de Jazz» muito haveria inevitavelmente de ficar para trás, mas o Jazz dos últimos quarenta anos é claramente menorizado na exposição, com acontecimentos e figuras fundamentais a terem uma atenção irrelevante ou a serem simplesmente passadas em branco.
10. Os músicos de Jazz nacionais merecem também um muito fraco tratamento na pequena secção que lhes é atribuída, com inúmeras ausências, em especial no Jazz mais recente. O destaque é dado aos poucos músicos dos anos 20 a 50, basicamente músicos de orquestras de dança ou música ligeira, com apenas uma dúzia de nomes posteriores. E uma vez mais João Moreira dos Santos não parece dar-se conta de que, apesar de enumerar uma dezena de músicos anteriores aos anos 40, nada sustenta a sua existência. Para além de algumas fotos dos orquestras e músicos desse período, o primeiro registo de um músico nacional é muito tardio, Domingos Vilaça (1957), e não é mais do que um charleston e um dixieland (quando esses géneros já tinham perdido a actualidade há trinta anos), e a única pauta apresentada é do «Caravan» e não possui data. Mas de outros trabalhos, nomeadamente de Hélder Martins, sabe-se que o repertório dessas bandas era composto basicamente de valsas, charlestons, corridinhos e outras músicas de dança.
Muito mais importante serão as jam sessions registadas no início dos anos 50, e que terão elas sim dado origem aos primeiros músicos de Jazz portugueses.
11. Se vivemos um período de excesso de edições discográficas, a montra dedicada aos discos é ridícula, também porque ignora a importância de alguns discos e editoras. A Clean Feed, onde gravou Bernardo Sassetti, Júlio Resende ou Susana Santos Silva, entre outros, nem sequer é referida, ou a que é actualmente a mais importante editora nacional, a Carimbo Porta-Jazz, merece apenas uma referência esquiva. E ora quando as coisas não são iguais, não podem ser tratadas da mesma forma.
12. Os concertos e festivais têm direito a uma curta secção e referências ocasionais em toda a exposição, mas o tratamento a uns e outros é demasiado confuso, com saltos no tempo em todos os sentidos e destaques que se diriam aleatórios, pouco respeitando a importância dos músicos e dos eventos. O mais importante festival de Jazz nacional desde há mais de duas décadas – o Guimarães Jazz - merece apenas uma referência esquiva no diagrama dos festivais e se muitos festivais de Jazz acabaram, alguns mereceriam destaque, também pela sua perseverança, consistência ou pela sua história: o Jazz no Valado, Angra Jazz, Funchal Jazz, o Matosinhos em Jazz, Festa do Jazz, Seixal Jazz, Estoril Jazz. Porque nem tudo é igual. O mesmo vale, é claro, para os músicos.
13. Se o pai do Jazz nacional, Luis Villas Boas, merece várias referências, várias outras figuras históricas do Jazz pós 25 de Abril perdem-se na exposição ou simplesmente não existem, como Rui Martins, director do Hot Club nos anos 70 e 80; o director que lhe sucedeu, Bernardo Moreira aparece apenas como músico e a actual directora, Inês Cunha, não merece qualquer referência; assim como Luis Hilário, programador do Hot Club há mais de dez anos; Zé Eduardo, o pioneiro da escola de Jazz do Hot Club; Ivo Martins, director do Guimarães Jazz, Carlos Martins, director d’A Festa do Jazz do São Luiz, José Ribeiro Pinto, radialista e director do Angra Jazz, Rui Neves, director do Jazz em Agosto, entre inúmeros outros.
Dir-me-ão que o Jazz nacional não cabe numa sala, e muita gente haveria inevitavelmente de ficar de fora. Pois sim, mas se se desperdiçam paredes com disparates, é natural que fique pouco espaço para o Jazz…
14. A secção «Digital» comporta também algumas omissões importantes. Olimpicamente esquecidos foram o site de Raul Vaz Bernardo do final do milénio passado, «Cult Jazz», mas também o «Jazz XXI» de Paulo Barbosa, o «Jazz 6X4» (onde participaram António Curvelo, Manuel Jorge Veloso, Raul Bernardo, Paulo Barbosa, Rui Duarte, António Branco, eu mesmo, e outros), «Oh não! mais um blog sobre jazz!!» de José Meneses, os blogs «Jazzlist», «Riffs & Strides», entretanto suspensos, entre outros, para além de «JazzLogical», com actividade regular desde 2006 (e não se pode dizer que JMS desconheça o meu site, já que recebe semanalmente, desde há onze anos, a minha newsletter), preteridos pelas actividades do próprio JMS, algumas pouco digitais (e controversas).
Outra vez: a História do Jazz em Portugal não pode ser também a história dos amigos…
15. A imprensa que constitui o grosso da exposição, merece um capítulo próprio, com referências para «a figura do crítico de Jazz», onde são referidos en passant alguns dos mais activos críticos e divulgadores de Jazz nacionais, com inúmeras omissões, apresenta também de forma displicente algumas das publicações especializadas, sem qualquer destaque.
16. A secção Escolas de Jazz, onde se formaram centenas de músicos, tem direito a um parágrafo num cartaz, mas também o pioneirismo e importância de Zé Eduardo, que fundou a primeira escola de Jazz no Hot Club é completamente ignorado, ou, por outro lado a outra grande escola de Jazz nacional, a ESMAE, é igualmente passada em branco.
17. A secção «Dos Clubes Nocturnos aos Clubes de Jazz» faz outra associação abusiva, acumulando alguns dos erros já referidos. João Moreira dos Santos pretende ligar os clubes onde se dançava na tal «noite transgressora», dos anos 20 aos anos 50 (repete-se: uma dúzia de clubes, alguns de curta existência, em trinta anos, onde terão actuado seis agrupamentos de desconhecidos «músicos estrangeiros» !!!!), com o Hot Club, o Clube Universitário de Jazz e o Luisiana Jazz Club.
E poderíamos continuar.
Celebrar o Jazz em Portugal é importante. Mas a exposição de João Moreira dos Santos, labora em erros sistemáticos, que contrariam a História (e a História é importante, também para explicar o presente), o rigor e a cientificidade que lhe é devida.
A História é uma construção. Fazer a história do Jazz em Portugal, significa selecionar objectos de um todo e contextualizá-los, a partir das fontes para a História: a História será sempre a interpretação das fontes. Como o cientista que descobre uma lei da física, e depois se entretém a descobrir os fenómenos que ajudem a comprovar a sua teoria, o que João Moreira fez, e ele vem fazendo pelos seus livros, é construir uma tese, de forma artificial, manipulando as fontes, introduzindo ou ignorando os objectos a seu bel-prazer, de forma a caber na sua tese.
Basicamente JMS pretende fazer passar que em Portugal há Jazz desde há cem anos, o que seria comprovado pelos documentos que ele encontrou, que demonstrariam que havia «noite» (noite=Jazz) e modernidade (modernidade=Jazz) em Lisboa, que os negros (negro=Jazz) entravam na cena cultural nacional, da mesma forma como entravam noutras capitais mundiais. Ou seja, a partir de alguns factos, JMS tira as conclusões erradas:
Sim: Portugal tinha sido contagiado por alguma modernidade. Não: a modernidade tocava apenas uma muito rala elite, quase apenas de Lisboa, e expressava-se nas artes e na cultura e na moda, a partir do contágio de alguns viajantes, basicamente de França;
Sim: havia algum interesse pelo exotismo negro: Não: essa curiosidade pelo exótico concretizava-se apenas nalguns raros espectáculos de music hall franceses;
Sim: Lisboa começava a ter vida nocturna. Não: estamos a falar da história de menos de uma dúzia de night clubs de vida atribulada;
Sim: a música de dança em Portugal sofreu o contágio das modas estrangeiras. Não: o que chegou a Portugal foi o foxtrot, o charleston, o one-step, e outras músicas de dança sub-produtos do Jazz, ou mesmo a adaptação dos tangos, das valsas ou do folclore português, interpretado por jazz-bands;
Sim: alguma coisa aconteceu na música do início do século XX em Portugal por influência do Jazz, e bastaria a introdução da bateria para o confirmar. Não: a bateria gerou as jazz-bands.
Sim: havia jazz-bands em Portugal. Não: uma jazz-band é o nome que era atribuído a qualquer agrupamento musical que tivesse uma bateria, independentemente da música que tocasse.
Sim: foram publicados alguns textos na imprensa sobre Jazz. Não: são muito poucos os registos descobertos, menos de trinta em trinta anos, que tratavam sempre o Jazz como uma coisa exótica, sem se compreender muito bem o que era;
Sim: o Txim, Txim, Pó, Pó, chegou a Portugal nos anos 20. Não: o Jazz chegou muito mais tarde, já no meio dos anos 40, e levaria muito mais anos para ganhar alguma expressão em Portugal.
E enfim, logo após 1928, Salazar e o seu séquito de malfeitores, entre os quais o modernaço António Ferro, encarregar-se-iam de fazer retroceder Portugal cem anos. Duas décadas depois surgiriam finalmente as primeiras manifestações do Jazz em Portugal.
Creio que haverá comentários de fundamentalismo à minha crítica à exposição de João Moreira dos Santos, mas qual é a importância das «Fichas de jogo dos clubes nocturnos Regaleira e Maxim’s» numa exposição sobre Jazz? Falta rigor, falta Ciência, falta História, falta Jazz na exposição «Jazz em Portugal 100 anos de Txim, Txim, Txim, Pó, Pó, Pó da Biblioteca Nacional.
São inúmeros os interesses na exposição, o problema é a história que ela quer contar. Muito do Jazz que fez em Portugal está lá e se se entender a exposição como simples reunião de curiosidades, ou se se quiser compreender porque é que não havia Jazz em Portugal até meio dos anos 40, então a exposição pode ser até muito interessante.
E enfim, celebrar a História do Jazz em Portugal é importante. Assim não.
ANEXO: Leitura crítica de alguns documentos apresentados na exposição Jazz em Portugal 100 anos de Txim, Txim, Txim, Pó, Pó, Pó da Biblioteca Nacional comissariada por João Moreira dos Santos.
Sem esgotar a análise que vale a pena fazer da exposição, comecemos pelos documentos anteriores aos anos 50.
1916. A primeira referência, de 1916, é a frase de Alfredo Mesquita no livro «A América do Norte», de 1916: «Os fonógrafos repetem indefinidamente a mesma romanza ou o mesmo rag-time». É o ragtime, e não o Jazz, e na América, não em Portugal, que João Moreira dos Santos assinala numa primeira secção da exposição que intitula «Os primeiros ecos do Jazz». Mesmo se o ragtime não é Jazz, ele é uma das formas musicais que o precederam, e poderia até invocar-se que a sua referência na imprensa portuguesa corresponderia a uma primeira tomada de consciência dessa forma musical. Mas ela é demasiado vaga e sem consequências.
1917. A segunda referência é de 1917, n’A Capital, e tem por título «A evolução da dança – desde a valsa e da mazurka ao tango argentino», e que consiste basicamente numa entrevista ao professor de dança Sr. Magalhães Pedroso, que se queixa que em Portugal quase não se dança e só se conhecem a valsa, a polka, e mais recentemente o tango. À pergunta de que país exporta maior número de dança, responde: «A América – exclusivamente a América, tendo por entreposto Paris. A Itália exportou a “Furlana” que não teve longa vida. Em compensação o “tango argentino”, o “maxixe brasileiro”, o “triple-boston”, o “one-step”, o “rag-time” invadem todos os países, todas as salas…» e mais à frente, respondendo ao que se dança em Lisboa: «…dança-se uma valsa azougada em que os pares mexem rythmicamente os quadris o que lembra o maxixe». E enfim, no final da entrevista o professor dá a conhecer ao jornalista (algo que ele não conhecia) e que era o foxtrot: «o passo da raposa».
1918. Nenhuma referência de 1918.
1919. A referência que se segue, de 1919, pertence também ao A Capital, titulado: «O “jazz-band” – Músicas e bailes americanos», onde se afirma que «O “jazz” é uma orchestra como outra qualquer, que além dos instrumentos antigos, juntou outros “modernos” e que toca qualquer música... Certamente o rithmo é sempre o mesmo, trata-se sempre de “rag-time” ou música syncopada, mas qualquer trecho pode ser tocado sobre tal rithmo. Tocam-se valsas viennenses, tangos, canções, tudo.». O texto fala claramente de uma música exótica; não de Portugal.
1920. Nenhuma referência de 1920.
1921. Nenhuma referência de 1921.
1922. Em 1922 António Ferro, em A Idade do Jazz-Band, protesta contra a inexistência da modernidade em Portugal, dando como exemplo o Jazz-Band que não existia. Ver o meu TEXTO sobre António Ferro.
1923. Nenhuma referência de 1923.
1924. Em 1924, Ferreira de Castro na Ilustração Portuguesa, no interessante texto sobre «A propagação do Jazz-band», o escritor historia ao longo de três páginas a origem e disseminação do Jazz na América e como se propagou para Paris e daqui – rematando - «invadiu também a Portugal - e nos próprios salões aristocráticos, que constituem ainda o refugio da tradição, já audaciosos pés vão ensaiando os passos da música selvagem, já ha corpos voluveis bailando em mefistofélicas contorções. E hoje os sons burlescos e todavia gloriosos do Jazz-band ouvem-se em toda a parte: - nos clubs elegantes onde a luz embriaga e o topasio do champagne adquire estranhas refulgências, nos cinemas, nos parques publicos, - nos restaurants da moda e até em modestas leitarias…».
1925.…
1926 a. Referência a um texto de Francine Benoit. Este texto, e o de 1926, dois anos depois, que a exposição não apresenta, de Francine Benoit, no A Informação, são sem dúvida os mais significantes.
Compositora, professora, ensaísta, crítica de música (nascida em França e naturalizada portuguesa em 1929, com um percurso notável também como anti-fascista), Benoit estudou na Academia de Amadores de Música e teve formação superior de música em Paris entre 1917 e 1919, onde terá provavelmente tomado contacto com o Jazz, e de que fala de forma entusiasmada: «É assim mesmo, o nosso rico «Jazz», vencedor do dia, mestremor da actualidade…»
1926 b e c. Dois outros textos são apresentados de 1926. Um primeiro em A Capital assinado por JACS: «A Origem do Jazz-Band – Como se tem desenvolvido na América e na Europa» (de difícil leitura, que JMS reproduz): «O jazz-band é um tipo de orquestra de origem americana, proveniente dos pretos, caracterizado pelo ritmo sincopado da sua música, pela improvisação e pelo escorregamento de um tom no outro e ainda pelo emprego original dos instrumentos de percussão, que formam a bateria.»; e um segundo texto pacóvio, na ABC: Revista Portuguesa - «Como nasceu o Jazz-Band», onde se sugere que o Jazz teria sido inventado por um português de Barcelos residente nos Estados Unidos, e que é apenas música de selvagens, falando sempre do Jazz como uma música americana.
1927. Duas entradas na exposição para 1927: uma primeira da capa da revista ABC, uma gravura representando um clube onde se pode ver em grande plano um violinista vestido de fraque numa pose pouco convencional e por detrás uma jovem moderna, numa mesa onde se vê também uma garrafa de champagne; e uma segunda, incluída na secção da exposição «Concertos», onde no Diário de Lisboa se noticia «Uma orquestra de negros estreia-se amanhã à noite». O texto anuncia o concerto dos «Robinson’s Syncopaters» no «Trindade», que João Moreira dos Santos apresenta como uma «banda de renome». Ora os Robinson’s Syncopaters não existiram para além de algumas poucas actuações, e só encontrei mesmo registo em Portugal, duas, em Lisboa e no Estoril, e é claramente uma banda de ocasião do violinista Wilson Robinson, que haveria de tocar durante alguns meses com Cab Calloway no célebre Cotton Club.
1928 a. De 1928, João Moreira dos Santos afirma que Sidney Bechet tocou em Portugal com a Revue Negre, mas ninguém apresentou até hoje confirmação de que isso tenha acontecido. Apenas se sabe que Sidney Bechet esteve em Portugal. Mas poderia ter apenas ido à praia, porque no anúncio do Revue Negre é muito estranho que não seja noticiado um dos mais famosos músicos de Jazz da época.
1928 b. A moda dos espectáculos de bailado negros chegava pois também a Portugal e, nesse mesmo ano de 1928, Fernando Pamplona em «A hora preta» noticia a vinda a Portugal de um grupo, a «Companhia Negra», uma companhia de bailado com bailarinos negros, que dançavam ao som de uma música que o autor descreve como o «charleston» e o «black-bottom»: os «acordes estridentes do “Jazz”». E o autor conclui: «A hora preta resume-se num grito. Ela ha de passar rapidamente, porque o relógio branco da extravagância branca tem muitas horas de muitas cores. Ela é um arco-íris cronométrico, com um ponteiro sempre a andar…»
Era claramente o gosto pelo exótico que estava na moda. E o Jazz, ou o que eles entendiam pelo Jazz, era apenas um objecto exótico. Mas «A Hora Preta» sugeriu a João Moreira dos Santos a introdução de um capítulo, fazendo abusivamente a ponte entre preto e Jazz.
(Curiosamente, exótico era também o dirigível que merecia também a página contrária da referida publicação de 1928, num artigo intitulado «O Dirigível, Arma do Futuro».)
1928 – 1933. Em 1928 a ditadura assumia o poder, e a repressão inicia-se em todas as frentes, também na cultura, nos costumes e mesmo na música. E João Moreira dos Santos também não encontra registos do Jazz em 1929, em 1930, 1931, 1932 e 1933.
1934. Em 1934 José Fontana da Silveira escreve a peça Jazz-Band infernal, onde uma das canções parodia o Jazz com a frase onomatopaica «Txim, txim, txim, pó, pó, pó», que dá o nome à exposição.
1935. Nada em 1935.
1936. João Moreira dos Santos também não encontrou nada em 1936.
1937. Nem em 1937.
1938. Nem em 1938.
1939. Em 1939, Acção Católica Portuguesa publica um livrinho de propaganda intitulado «Os Bailes e a Acção Católica», onde se faz uma diatribe contra o nojento batuque de pretos, esse jazz infernal.
1940. Em 1940, O Século Ilustrado em «Quem inventou o Jazz-band» revela que o Jazz nasceu do acaso numa obscura taberna do Harlem, rematando: «Quando no inconstante voltear de um maxixe dolente, ou na morbidez de um tango argentino, num cenário de sombras lantejouladas, os pares deslizam, presos aos “jazz”, embebidos na voz do solista, quem se lembrará como teria nascido o jazz, a música moderna que sepultou para sempre a rendilhada melodia das valsas vienenses?
(Enfim, na mesma página, o mesmo Século Ilustrado informava os leitores sobre o que fazer para evitar que a ferrugem ataque um objecto de metal em «Para livrar da ferrugem», e noutro texto contava «Como nasceu o postal ilustrado».)
1941. De 1941, JMS apresenta a foto do espectáculo da obscura Orquestra de William Lewis no Casino Estoril.
1942. Muito interessantes são os documentos relativos ao processo político e administrativo sobre a «dança denominada de “swing”», levantado a partir de uma queixa da Federação das Sociedades de Educação e Recreio, que solicitava a proibição da prática da referida dança nas colectividades, de 1942.
1943. Nada sobre 1943.
1944. Em 1944 O Século Ilustrado publica um texto sobre «É este o rei do “swing”», dedicado a Django Reinhardt.
1945. De 1945 (ano em Luis Villas Boas inicia o programa de rádio) é apresentada uma foto de Frank Sinatra com amigos nas Lajes (Açores).
1946. Nada de 1946.
1947. Nada de 1947.
1948. (Luis Villas Boas reúne os primeiros interessados em formar um club de Jazz) «Ao Som do Jazz» (Edições Salesianas do Porto)(folheto): «O Jazz rompia com um fox-trot e logo aquele corropio desatava a trotar… No fim a assistência batia palma. E o diabo também.»
1949. (Luis Villas Boas inicia as primeiras démarches administrativas para formar o Hot Club de Portugal)
1950. Aprovados os Estatutos do Hot Clube de Portugal
Não há Jazz para celebrar antes do meio dos anos 40: se alguma coisa haverá a retirar da exposição de João Moreira dos Santos é apenas isso. As poucas referências encontradas são por demais erróneas para admitir diferente conclusão.