À conversa com Enrico Rava:
(Entrevista de Leonel Santos em 16 de Fevereiro de 2008)
«Eu penso que a música não é capaz de fazer parar as guerras; não muda o mundo. A única coisa que a música pode fazer é tornar a vida melhor. E é isso que eu quero: fazer as pessoas mais felizes»
Enrico Rava
JazzLogical - O seu disco
The Word And The Days foi votado pela crítica
portuguesa como o melhor disco de Jazz do ano passado. O grupo que vai tocar
em Lisboa este disco é a sua formação principal, mas
alimenta vários outros projectos.
Enrico Rava - Além deste quinteto tenho o duo com Stefano Bollani,
e tenho também um grupo chamado New Generation que como o nome indica é composto
de jovens músicos, e ainda um trio, Europeans, onde toca Eberhard
Weber, o contraixista. Os Europeans têm tocado pouco porque Eberhard
tem estado doente. Nos últimos meses eu tenho alimentado também
um projecto dedicado à música
de Chet Baker porque é o 20.º aniversário da sua morte.
Com Philip Catherine, Riccardo Del Fra e Aldo Romano, que são músicos
que tocaram com Chet. É um concerto só com repertório
de Chet Baker. Mas na próxima semana vou gravar o meu novo álbum
para a ECM, com Mark Turner, Larry Grenadier, Paul Motian e Stefano Bollani.
Paul Motian foi operado e decidiu não viajar mais. Só toca
se puder ir dormir a casa. É uma das razões porque vou para
New York. Mas é uma banda americana, excepto Bollani. Vamos tocar
uma semana no Birdland, em New York, e depois gravamos.
Jazzlogical – A sua música tende a fugir do Jazz por vezes,
quando integra elementos da música popular e clássica europeia,
por exemplo.
Enrico Rava – Se o faço, não é premeditado. As
coisas acontecem naturalmente. Claro que sou italiano e na minha música
estarão também os meus genes, o meu sangue, e a minha tradição
interfere; mas eu não o faço premeditadamente. Excepto – e
talvez se refira a isso - quando escrevi um tema sobre a ópera de
Puccini. Por vezes eu faço trabalhos como esse, mas normalmente as
coisas saem naturalmente.
JazzLogical - A sua música é naturalmente diferente quando
toca com músicos europeus ou americanos... Tocar com Mark Turner,
um músico influenciado pela tradição norte-americana,
será com certeza diferente do que é este The Word And
The Days que vem tocar a Lisboa.
Enrico Rava – Eu toco com Mark Turner porque gosto da forma como ele
toca. Mark é um músico invulgar. De certa forma ele é até muito
europeu, para usar as suas palavras; muito conceptual. Ele não toca
um Jazz muito musculado, se é isso
que quer dizer. Ele é até um músico muito sensível.
A minha música não mudará muito. Para mim a coisa não
se passa entre ser-se americano ou europeu; passa-se entre indivíduos.
Alguns americanos tocam de uma forma e outros de outra. Miles Davis, Chet,
Stan Getz ou Dexter eram músicos extremamente melodiosos. Claro que
as american all star bands apenas tocarão coisas musculadas,
mas se ouvirmos outros como Dave Douglas, já será diferente.
O mesmo na Europa: também há músicos que só tocam mainstream.
JazzLogical – A New Generation é composta por músicos
jovens...
Enrico Rava – Sim, andam por volta dos 20 anos ou um pouco mais...
JazzLogical – Qual é o
seu interesse em tocar com eles?
Enrico Rava – Porque me põem em contacto com o que acontece
agora. Eles conhecem muito. Jazz e pop e clássica também. E
porque tocam realmente bem. Em Siena, onde conheci o João (Lobo),
eu ponho várias bandas a tocar junto numa workshop. Eles vêm
de toda a Europa e é uma oportunidade única de conhecer novos
talentos.
JazzLogical – Mas
ouve coisas novas, novos discos? Conhece a cena do Jazz actual?
Enrico Rava – Não muito. Ouço principalmente os discos
dos meus amigos quando mos enviam... Mas há demasiada coisa a sair
e eu também não tenho muito tempo. Continuo a ouvir os discos
antigos: Duke, Bix Beiderbecke, Louis Armstrong, Miles, Monk...
JazzLogical – A sua música mudou ao longo dos anos. Começou
por ser influenciado por Miles e Chet, mas nos anos 60 e 70 tocou com Steve
Lacy e Carla Bley. Aproximou-se do free jazz, mas hoje toca a sua própria
música.
Enrico Rava – Eu penso que sempre toquei mais ou menos da mesma forma,
mas em diferentes envolvimentos, diferentes situações. Mas
basicamente a minha forma de tocar não mudou; o que mudou foi o contexto.
Nos anos 60 o momento histórico era completamente diferente e todos
estávamos envolvidos política e musicalmente. A música
que fazíamos procurava um significado que ultrapassava muitas vezes
a própria música. Isso já não significa muito
hoje.
JazzLogical – Há muitos
músicos que prosseguem essa
estética free. Músicos da cena de Chicago, onde se contam alguns jovens,
continuam a tocar free.
Enrico Rava – Devo dizer que de algumas coisas eu gosto e de outras
eu gosto menos. Mas de qualquer forma eu não ouço nada de novo
desses lados. Eu penso que o que Ornette e Don Cherry fizeram em 57/58 é bastante
mais avançado do que o que esses músicos fazem hoje. Eu não
acho que essa música avance qualquer coisa. Esses músicos repetem
o que se fazia nos anos 60. Há jovens músicos a tocar bebop
e há jovens músicos a tocar free. Eles não estão
a renovar a linguagem como Ornette fez ou Miles antes dele, ou Parker. Talvez
Dave Douglas seja novo, mas é dos poucos. Ainda assim, se eu tivesse
que dizer quem era o trompetista mais avançado que ouvi até hoje,
eu escolhia Miles de 54/55 e Don Cherry 58/59, quando tocou com Ornette.
JazzLogical – Mas há grandes trompetistas hoje. Tocou com Paolo
Fresu há algum tempo...
Enrico Rava – Claro que há, e Paolo é um grande amigo
meu. Gravámos dois discos: um com a música de Miles e outro
dedicado a Chet Baker. Mas há outros bons trompetistas: Dave Douglas
de que falei, mas também Tom Harrell, por exemplo. E há Wynton
Marsalis, um músico espantoso, embora a sua música não
me diga muito. Mas eu admiro-o.
JazzLogical - Voltando à sua música. A maior parte do que
toca são originais. Como compõe? Ao piano?
Enrico Rava – Sim.
JazzLogical - E quem faz os arranjos?
Enrico Rava – Normalmente eu toco com músicos que conheço
bem e que estão muito próximo da minha forma de tocar e eu
não tenho de orquestrar nada. Eu mostro a melodia e os acordes e todos
descobrem o que fazer. Por vezes eu dou algumas instruções,
mas é só.
JazzLogical – Também
toca standards. Pensa que é possível
continuar a tocar standards?
Enrico Rava – Claro. Porque não? Tudo é possível.
Mas não é obrigatório tocar como se tocava nos anos
50! Eu toco standards regularmente. No grupo com Philip Catherine
tocamos muitos temas de Chet e muitos temas antigos. Eu
gosto de tocar standards, embora não o faço o tempo todo. Talvez
eu toque esta noite. Talvez. Vou decidir isso no palco.
JazzLogical – No
palco?
Enrico Rava – Normalmente eu só levo decidido o primeiro tema.
Depois decido ao longo do concerto. Depende da banda com que estou a tocar,
da audiência, da disposição...
JazzLogical – Toca com estes músicos há muito tempo,
mas não conhecerá o João Lobo assim tão bem...
Enrico Rava – Oh, não, eu conheço bem o João Lobo.
Ele esteve comigo numa workshop há quatro anos em Siena e agora é o
baterista regular da minha New Generation. No próximo mês ele
vai tocar no meu quinteto com Roswell Rudd em Itália. Ele é um
dos meus dois ou três bateristas quando Roberto Gatto não está disponível.
Ele é um dos bateristas que prefiro.
JazzLogical – Conheço algumas coisas mais abstractas que o
João faz que a música deste quinteto.
Enrico Rava – Não comigo. Mas ele é capaz de tocar qualquer
coisa...
JazzLogical – No passado gravou para outras editoras: a Black Saint,
a Label Bleu; mas os últimos discos foram gravados para a ECM.
Enrico Rava – Desde há quatro anos que gravo só para
a ECM. Manfred (Eisher) disponibilizou-me tudo o que eu precisava para os
vários
projectos...
JazzLogical – Fala-se da ECM como uma editora de música
suave...
Enrico Rava – Não sei o que seja. Provavelmente referem-se ao
processo de mistura, mas eu não sinto isso. Por outro lado a ECM grava
coisas como os Art Ensemble Of Chicago. Não creio que exista isso
do ECM sound. É uma invenção dos críticos...
O facto é que gravar para a ECM é sempre gravar em muito bons
estúdios nas melhores condições e com muito cuidado
no som.
JazzLogical – Tem tocado algumas vezes música do Brasil, e é conhecido
o seu gosto por alguns autores como Jobim ou João Gilberto. No disco
com o Bollani, por exemplo toca o Retrato a Preto e Branco do Tom Jobim.
Enrico Rava – Eu penso que o Brasil deveria fazer um monumento de 40
metros de altura de homenagem a João Gilberto e Tom Jobim. Eles mudaram
a música no Brasil; antes deles existia apenas quase só samba «étnico».
Com eles a música brasileira tornou-se arte de verdade. Não
apenas eles, mas eles começaram. Claro que depois veio Caetano e muitos
mais, mas eles começaram nos anos 50. Eles são dois marcos
da música do século XX. Nem tudo na sua música é evidente
por detrás da suavidade das formas. A música do Brasil tornou-se
poética, subtil. De facto eles tiveram imensa importância na
música popular em todo o mundo.
JazzLogical – Falando
de poesia; nunca tem cantores na sua música.
Enrico Rava – De facto eu tenho um disco com uma cantora, gravado para
a Label Bleu, que se chama Vento. A cantora chama-se Barbara
Casini. É um
disco com orquestra que eu gostei muito de gravar. Barbara tem uma voz lindíssima.
Mas normalmente eu não preciso de vozes. Porquê ter cantores
se posso falar com o trompete?
JazzLogical – Também
tem alguns discos sem instrumento harmónico.
Enrico Rava – Sim. É diferente tocar sem piano. Por vezes incluo
uma guitarra. É uma música mais exigente, mas talvez mais livre.
Mas há muitos exemplos no Jazz… Sonny Rollins… Mas gosto
muito de tocar com piano. Com Bollani, por exemplo…
JazzLogical – Normalmente não é convidado
como solista de outras bandas ou orquestras, mas tocou em Portugal com
a Italian Instabile
Orchestra.
Enrico Rava – Foi experiência única: existe pouca liberdade
na Instabile. Fui convidado por amigos e não posso dizer que não
tenha gostado, mas senti falta de liberdade.
JazzLogical – Mas tem outras experiências?
Enrico Rava – Hoje raramente. Normalmente sou eu que convido alguns
músicos ou então toco com amigos. Mas no passado toquei com
Steve Lacy e Lee Konitz e depois com Carla Bley numa experiência histórica
e no início dos anos 80 toquei na Globe Unity. Não gostei da
Globe Unity. Cada um tocava para seu lado e ninguém sabia o que fazia;
ninguém sequer ouvia os outros. Todos queriam tocar muito e fazer
muito barulho. Não gostei.
JazzLogical – Há pouco disse que nos anos 70 toda a gente estava
envolvida em política. A política interessa-lhe?
Enrico Rava – Claro que sim. Mas a política é uma coisa
pessoal, que não deve ser misturada com a música. A música
tem outros objectivos. A música serve para te pôr feliz, se
quiseres.
JazzLogical – Nem todos os músicos são da mesma opinião.
Na pop há músicos com posições diferentes. E
no Jazz, por exemplo, Charlie Haden é um militante de longa data.
Enrico Rava – Para mim, e isto é a minha opinião pessoal,
fazer coisas do tipo Blues for Darfur ou Blues for
Che não fazem nenhum
sentido. E quando conhecemos as pessoas, vemos como a prática é diferente
da propaganda. Muitos músicos que vemos a apelar à paz no Darfur
têm posições sociais muito questionáveis; fazem
apelos contra a pobreza, mas saem em grandes limousines e passam a vida em
festas de beneficência… Charlie Haden exige sempre os melhores
hotéis e é capaz de tratar mal os empregados. São pessoas
pouco coerentes. Creio que são formas baratas de show off. É uma
forma de auto afirmação: eu sou tão bom, eu estou tão
envolvido. Não é nada.
JazzLogical - São coisas separadas: música e política?
Enrico Rava - Sim. Arte é arte. Nos anos 60 acreditámos que
a música podia mudar o mundo, mas ficou tudo na mesma. Acabou a guerra
do Vietname e começaram outras… Havia muita ingenuidade também.
JazzLogical – Mas não é possível fazer política
através da música? Há pessoas honestas que acreditam
nisso.
Enrico Rava – Eu penso que a música, a literatura, a poesia
ou o cinema não muda o mundo. A única coisa que a música
pode fazer é tornar a tua vida melhor, se gostares dela. E é isso
que eu quero: fazer as pessoas mais felizes. Não somos capazes de
parar as guerras a ouvir música. Pense na Alemanha, um país
onde as crianças aprendem música desde pequenas,
onde existiram grandes génios da literatura e da música, Goethe,
Wagner, Beethoven…, e apesar disso foi na Alemanha que nasceu o nazismo.
Alguns dos maiores criminosos da história eram amantes de arte.
Eu
não creio que a música possa mudar o mundo ou parar a guerra.
A única coisa que a música pode fazer é fazer-te feliz.
Blues for Che ou Blues for Darfur é apenas demagogia.
Não é isso que o público deve esperar de mim hoje. Vou tentar apenas fazer
as pessoas um pouco mais felizes.
Entrevista realizada antes do concerto do CCB de 16 de Fevereiro. Os meus agradecimentos ao CCB, ao João Godinho e a Sofia Mântua pela simpatia e disponibilidade. E à Rosa Reis pelas fotos. E ao Enrico Rava, pois claro.
Leonel Santos
Enrico Rava Quintet
The Words And The Days
ECM, 2007
***** (5/5)
O título do álbum, explicitamente poético, não é ocasional.
De facto a música de Enrico Rava tende a ser poética, na substituição
das palavras na luminosidade e lirismo do trompete. Longe vai o tempo do
free jazz, mas a música de Enrico Rava é uma súmula
de todo o seu passado, e também da história do Jazz, até porque
as suas referências vão de Miles e Chet e de Duke Ellington
a Don Cherry.
O ambiente onírico e cálido de The Words And The Days contagia
e embala o ouvinte. O quinteto, que é a sua formação
mais regular, conta com alguns músicos extraordinários, onde
destaco o trombonista Gianluca Petrella, uma das rising stars do trombone
moderno, frenético e inspirado. Mas talvez mais do que as prestações
individuais de músicos de sólida formação – Andrea
Pozza no piano, Rosário Bonaccorso no contrabaixo e Roberto Gatto
na bateria (que no CCB foi substituído por João Lobo), para
além do límpido e incisivo trompete de Rava, seja a empatia
absoluta deste combo. Em estúdio em especial, os músicos tendem
a ser submergidos na perfeição das formas geométricas,
mas uma audição mais atenta revela o inatacável swing
de Pozza em Echoes of Duke, as irrepreensíveis escovas de Roberto
Gatto em The Wind, o bucolismo do contrabaixo em Sogni Proibiti, a intrigante
estrutura rítmica de Gatto e Bonaccorso em Serpent, a fanfarra em
Bob The Cat e Traps ou o inspirado diálogo de Rava e Petrella do clássico
de Don Cherry, Art Deco.
Admirável música!