Jack DeJohnette
baterista
1942 - 2025

 

Ontem fez-se silêncio

Tudo o que eu possa dizer sobre Jack DeJohnette corre o risco de ser excessivo. Porque ele é, desde sempre, um dos meus heróis. Deixem-me começar por fazer um pouco de biografia.

Jack DeJohnette nasceu em 1942, em Chicago, e estudou piano na infância até se decidir pela bateria, com 14 anos.
DeJohnette começou por tocar R&B e hard-bop, tendo nesses anos tomado contacto com a muita activa cena de vanguarda de Chicago. As biografias referem que ele chegou a tocar na Sun Ra Arkestra, bem como com vários membros da AACM, e ele conta ainda que um dia em que esteve presente numa jam session de John Coltrane foi convidado para tocar em virtude de o baterista de serviço (bom… Elvin Jones) se ter atrasado.
Em 1966 Jack DeJohnette muda-se para Nova Iorque, tendo integrado de imediato o quarteto de Charles Lloyd, onde conheceu Keith Jarrett (com quem tocaria por longos anos…) e Cecil McBee.

Em Cascais, com Charles Lloyd
Foi neste ano de 1966 que Jack DeJohnette veio pela primeira vez a Portugal, integrando o quarteto de Charles Lloyd, para tocar no Club Luisiana de Luis Villas-Boas, em Cascais.
Como curiosidade, este quarteto gravou também para o TV Jazz, programa de Manuel Jorge Veloso, na RTP.
Este quarteto de Charles Lloyd foi mesmo um dos grupos mais bem sucedidos da história do Jazz e «Forest Flower», disco de 1966, vendeu mais de um milhão de cópias!!!
A hstória conta que depois de 1968 Charles Lloyd entrou em depressão (e, de acordo com a história, mudou-se para o Big Sur) e desfez o quarteto.

Bitches Brew
Nos anos seguintes DeJohnette foi requisitado para tocar com Bill Evans, Jackie McLean, Abbey Lincoln, Betty Carter, Chick Corea, Stan Getz, Lee Konitz ou Joe Henderson, ou basicamente toda a gente.
O reconhecimento de DeJohnette (e Jarrett) era já enorme quando Miles Davis, que andava à procura de músicos para renovar a sua banda (encerrando o capítulo «quinteto perfeito» com Wayne Shorter, Tony Williams, Herbie Hancock e Ron Carter), o convidou para tocar. Reza a lenda que Miles o procurou numa jam session de Jackie McLean com quem o baterista tinha acabado de gravar, convidando-o para o novo projecto.
Miles tinha acabado de gravar «In a Silent Way» em Fevereiro e no início do verão experimenta um novo quinteto numa tour europeia onde DeJohnette já toca (com Wayne Shorter, Chick Corea e Dave Holland, em Juan-les-Pins, Estocolmo, Berlin, entre outras), e em Agosto entra no estúdio para gravar «Bitches Brew», onde Jack DeJohnette assegura a bateria no canal direito (e Lenny White no esquerdo). O período Miles Davis duraria dois anos e Jack DeJohnette já não tocou em Cascais em 1971 (onde o baterista foi Leon Chandler), embora tenha regressado para gravar «On the Corner» em Julho de 1972.

Special Edition na Aula Magna
Jack DeJohnette era por essa altura um baterista requisitadíssimo, e a sua actividade multiplicava-se em concertos e gravações. Em nome próprio, ele gravou em formações diversas: em duo com Keith Jarrett ou Dave Holland, em trio com John Abercrombie e Dave Holland (Gateway), em quarteto com Abercrombie, Lester Bowie e Eddie Gomez (New Directions), também em trio com Terje Rypdal e Miroslav Vitous, ou em quarteto com David Murrray, Arthur Blythe e Peter Warren no Special Edition com que regressaria a Portugal, em 1980. Special Edition permanece um dos grandes discos dessa década.

Profícuo baterista, nas décadas seguintes ele não parou, mesmo embora uma tendinite no meio dos anos 90 o tenha obrigado a mudar a posição da empunhadura (do traditional para o match grip), com algum sofrimento. Mas não o fez abrandar.

A Bateria!
DeJohnette era o baterista perfeito, a bateria completa. Ele foi notado pela capacidade polirrítmica e pela empatia, pela elevação da arte da bateria ao absoluto.
DeJohnette, que tinha começado por aprender piano (e gravou mesmo vários álbuns no piano), estendeu para a bateria as capacidades harmónicas próprias do piano. De certa forma ele combinou a concepção harmónica de Max Roach com as concepções rítmicas de Art Blakey e, diria, a energia de Elvin Jones. Mais do que dançar em cima da bateria, Jack DeJohnette pôs a bateria a dançar. Ele reinventou a pontuação na bateria, desviando a condução do (prato) ride tradicional para a bateria no todo e acrescentando texturas e dinâmicas aos pratos. Ele descobriu capacidades melódicas insuspeitadas na bateria e redefiniu-lhe o lugar, a cada momento, a todo o momento. A bateria de Jack DeJohnette é ubíqua e polícroma.  

A versatilidade de DeJonette levou-o a tocar com toda a gente, mas também de outras formas musicais, que incluíam a música pop negra, o funky e a soul, mas também a vanguarda, ou as vanguardas, e ele é considerado erradamente por muitos como um baterista de fusão; coisa que ele era capaz de fazer e fez. O epíteto terá nascido da associação com Miles Davis, no período de viragem do trompetista e, de qualquer forma alguns dos seus discos podem facilmente ser classificados assim.

Por outro lado, como chicagoan o jovem DeJohnette tocou na banda de Muhal Abrams no início dos anos 60, ainda antes da criação da AACM, e ele terá visto Rashied Ali tocar com Coltrane e confessou-se por diversas vezes influenciado pelo conceito de estruturas livres de Ali. A sua versatilidade e abrangência permitiu-lhe tocar, por exemplo, com Wadada Leo Smith, por diversas vezes, já neste milénio.

Sem retirar mérito (nem poderia) a Jarrett ou Peacock, o trio Standards não seria o mesmo sem a bateria de DeJohnette. Dir-me-ão o que é óbvio: que sempre que (no Jazz) se muda um peão, se muda o jogo todo; mas a forma como ele antecipa os humores de Keith Jarrett é verdadeiramente paranormal. E recordo que alguém chamou ao Standards o trio dos dois pianos!
Elegante e brutal, rigoroso e inventivo, versátil e proficiente, a bateria perfeita em Jack DeJonette.

Toda a gente!
Jack DeJonette tocou com toda a gente, literalmente, desde os anos 60, e ele colaborou com músicos do mainstream à vanguarda, do bop à fusão, do R&B à world music; todos os géneros, todos os quadrantes.
Para além da sua discografia de meia centena de títulos, a lista de discos para onde gravou como sideman excede os 200, toda a gente.
Freddie Hubbard, Miroslav Vitous, Wayne Shorter, George Benson, Joe Zawinul, Sonny Rollins, Joe Henderson, Gábor Szabó, Stanley Turrentine, Dave Liebman, Paul Desmond, Alice Coltrane e Carlos Santana, Chet Baker, Lee Konitz, Steve Kuhn, Kenny Wheeler, Cannonball Adderley, Michael Mantler, Gary Peacock, McCoy Tyner, Jan Garbarek, Julius Hemphill, Ralph Towner, John McLaughlin, Chico Freeman, Richard Beirach, George Adams, Joanne Brackeen, John Surman, Chico e Von Freeman, Gary Peacock, Benny Golson, Cedar Walton, Kenny Burrell, Bennie Wallace, Michael Brecker, Rufus Reid, Baikida Carroll, John Scofield, Harold Mabern, Gary Burton, Joe Lovano, Lester Bowie, Lyle Mays, Greg Osby, Ernie Watts, Betty Carter, Herbie Hancock, Eliane Elias, Michael Brecker, Renee Rosnes, Chris Potter, Kenny Werner, World Saxophone Quartet, Wadada Leo Smith, Antonio Faraò, Geri Allen, Hank Jones, Rudresh Mahanthappa e Bunky Green, Michael Cain, George Colligan, David Fiuczynski, Anouar Brahem, Gonzalo Rubalcaba e Ethan Iverson, Bill Frisell, Bobby McFerrin, Danilo Perez e John Patitucci, Kenny Barron, Esperanza Spalding, Ambrose Akinmusire, Lionel Loueke, Muhal Abrams, Roscoe Mitchell, Henry Threadgill, Ravi Coltrane, John Medeski, Larry Grenadier; e esta lista está longe de ser exaustiva!

Em seu nome, depois de se ter começado na Milestone, ele estreia-se na ECM em duo com Keith Jarrett com «Ruta and Daitya» (1971), disco que inicia uma longa colaboração temporal com a editora de Munique. Não exaustiva, ainda assim e, para além dos vinte títulos na ECM, na sua discografia (meia centena) figuram ainda gravações para a Blue Note, Prestige, CBS, a Golden Beams que ele mesmo criou já neste milénio, ou a Motéma para onde gravou o seu último disco, Hudson.

Jack em Portugal, 60 anos
Jack DeJonette veio por diversas vezes a Portugal, e eu vou-me esquecer de alguns dos seus concertos.
Depois de 1966 (farão para o ano 60 anos), integrando o quarteto de Charles Lloyd, com 24 anos de idade (no Luisiana de Luis Villas Boas), o baterista apenas regressaria a Portugal em 1980 à frente do quarteto Special Edition.
Este concerto de 1980, em Lisboa, na Aula Magna, foi absolutamente devastador. Com David Murrray, Arthur Blythe e Peter Warren, o Special Edition fez um concerto que eu recordo  como um dos concertos da minha vida.
«Special Edition» é um dos grandes discos de DeJohnette como líder, com excelentes composições que incluem uma homenagem a Eric Dolphy, e uma energia e criatividade que se revelou intemporal. Quarenta e cinco anos após, o «Special Edition» revela uma frescura rara.
Enfim, o baterista voltaria a Portugal no ano seguinte para outro memorável concerto, o «80/81» do guitarrista Pat Metheny, no Parque Palmela, Estoril; com Dewey Redman, Michael Brecker e Charlie Haden.
Depois de 1980 Jack DeJohnette voltaria por diversas vezes a Portugal, em diferentes contextos e formações,
com o Gateway (com John Abercrombie e Dave Holland) em 1996, logo no primeiro Seixal Jazz;
o mesmo Gateway, creio, no Matosinhos em Jazz;
no meio dos anos 90 no Coliseu de Lisboa, numa noite memorável em que se estreava o jovem Ravi Coltrane (num concerto duplo onde, na mesma noite, tocou o grupo de Elvin Jones com… Joshua Redman);
com Keith Jarrett e Gary Peacock no CCB, em 2006;
no Jazz em Agosto, num concerto tranquilo com John Surman, em 2010;
em 2012 num grande concerto no AngraJazz, com Rudresh Mahanthappa;
no Guimarães Jazz com Don Byron, em 2013;
em 2018 na Gulbenkian, com Dave Holland, na apresentação do disco «Blue Maqams» do tunisino Anouar Brahem;
e nesse mesmo 2018 em Amarante, no Festival MIMO, com muita cerveja e animação, com John Scofield, John Medeski e Scott Colley. O concerto comemorava os 75 anos do baterista  Tocaram «Hudson», o que foi o último disco de Jack DeJohnette.

Ontem O Baterista deixou-nos.
Ontem fez-se silêncio. E é ensurdecedor!

 

 

A ouvir (para além de todos os outros):
Jack DeJohnette Special Edition, ECM, 1980
Keith Jarrett at the Blue Note (com Gary Peacock e Jack DeJohnette), 6-CD live box, ECM, 1995

 

 

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