Jason Moran no CCB (Março de 2007)

Photo by Paul Brown

Jason Moran é um extraordinário pianista. Escrevi em 2002 sobre Modernistic que uma das coisas que me assombrava nele era o conhecimento profundo da história do piano Jazz que os seus dedos revelavam. E assim é, de tal forma que o seu estilo não é facilmente reconhecível, se não pela sua atitude totalizante. O pianismo Moran é ora clássico (europeu), ora percussivo (Art Tatum: stride, a Cecil Taylor: free), ora lírico e virtuoso (Oscar Peterson: swing, a Bill Evans: sofisticado). Curiosamente o bop apenas se revela como referência ocasional e transversal, via Thelonious Monk (mas Monk é stride, não será?) ou numa forma culta e reverente via o seu mentor e professor Jaki Byard.
Ele não será pois propriamente um pianista inovador se não na forma integradora de todas as formas (estilos) num mesmo discurso, numa mesma frase.
Jason Moran é um músico modernista enquanto compositor. A característica «integradora» da forma pianística tem um correspondente no universo referencial de Moran; e se as referências ao standards e à tradição (Jazz) são abundantes, alguns ouvidos mais puritanos não lhe suportam a invocação de referências da pop urbana, ou «pior», a utilização de materiais pré-gravados, estruturas rítmicas, vozes, discursos, sons dispersos.
Neste aspecto, o concerto do CCB de 6 de Março revelou uma evolução notável desde a última vez que o tinha visto há três anos atrás.
Há três anos atrás objectei, mas pela negativa, que esses elementos exteriores estavam deficientemente integrados na sua música, com frequência apenas como argumentos não naturais. A prova é que normalmente eles eram utilizados apenas no início das composições e logo abandonados.
Ora a novidade é que essa artificialidade, embora não tenha desaparecido, tende a dissolver-se. O que é notável hoje é a forma cada vez mais natural como esses elementos se tornaram parte integrante das composições, tornando-se por vezes o próprio tema, ou mesmo a linha rítmica ou melódica a que o piano se refere. Um dos momentos mais vibrantes do concerto aconteceu quando Moran reproduziu ao piano um discurso falado num exercício notável de «ouvido absoluto». Cada vez mais, como demonstrou, esses elementos tendem a fazer parte integrante da (sua) música.
Posto isto, eu creio que a técnica de escrita de Moran nada tem a ver com a collage da pop art, ou pelo menos tendem a deixar de o ser. Eu creio que esses elementos perdem a individualidade; que Moran os transforma e elimina quando os convoca. Eu creio que eles são mais verdadeiros temas em transformação, como a sua música é um movimento permanente. Mesmo quando ele escandalosamente invoca Bjork ou Afrika Bambaataa, as suas composições não são nunca meros exercícios de copy/ paste, mas coisas novas, e esses elementos apenas são os standards do cancioneiro alargado que a sua adolescência lhe legou. Cada vez mais integrados, cada vez mais recriados, cada vez mais seus.
Enfim, também a Bandwagon que o acompanha merece referência: como disse na apresentação do concerto eles são realmente as suas almas gémeas e não poucas vezes como referiu Moran os inspiradores dos temas que a banda toca. Não evidencio nenhum deles: tanto Tarus Mateen (contrabaixo) como Nasheet Waits (bateria) são dois músicos superlativos e como Moran, generosos e afáveis.
Jason Moran é um jovem virtuoso, moderno, inventivo e irreverente. Vaidoso, mas igualmente entusiasmado, simpático e simples. Ele é bastante a antítese da vedeta pop que não se mistura com o público. Ele abandona o palco pelo meio do público e presta-se a falar com toda a gente, não resistindo a um convite para um resto de noite numa jam session no Hot Club com músicos locais. O concerto de Jason Moran & Bandwagon foi por certo e desde já um dos grandes concertos de um ano que se auspicia pleno de grandes acontecimentos.

Photo by Shawn Dos Santos

 


 

Entrevista a Jason Moran (2002)

O colectivo da All Jazz (que à altura eu dirigia) votou o disco de Jason Moran de 2002, «Modernistic» como o melhor disco do ano (como também já tinha votado no ano anterior «Black Stars» como o segundo melhor). E foi no final do concerto da Bandwagon da Figueira da Foz que o abordei para uma curta entrevista. Esta entrevista foi publicada na All Jazz n.º 6 (2002).

 

All Jazz – Em Black Stars, toca com um veterano, Sam Rivers. Como foi tocar com ele? Ele é um músico bastante mais velho...
Jason Moran – Não foi difícil, porque ele é um músico que pode fazer tudo. Eu escrevi música para ele, para o saxofone dele, e rearranjei uma ou duas composições. Porque eu sei que ele “empurra” a música para a frente. Ele é muito avançado, apesar da idade; é um espírito jovem. Por isso foi tão fácil. E ele estava ansioso por tocar connosco. Ele tem 78 anos e escreve música todos os dias, todo o dia. Ele é uma personagem fantástica.
AJ – Quem foi que o escolheu?
JM – Eu escolhi-o. Ele é amigo de Jaki Byard, que foi meu professor durante muito tempo. Por isso eu fui introduzido na sua música, muito antes de o conhecer. Quando o conheci, fiquei deslumbrado com a sua personalidade. Eu tive oportunidade na Blue Note, de fazer o que quisesse. E propus o projecto com Sam Rivers.
AJ – Jaki Byard é um enigma: porque é outro grande músico desconhecido do público. Tocou com Mingus...
JM – Os músicos conhecem-no bem. Ele conhece a história inteira do piano e toca-a. E ensina-a. É o professor perfeito. Ele sabe! E dá isso aos alunos. Eu aprendi tanto com ele!
AJ – Mudando de assunto. Tocou com músicos hip-hop. Gosta de hip-hop? De que forma é que o hip-hop o influenciou.?
JM – Eu ouvi muito hip-hop. É a minha música pop. As pessoas mais velhas cresceram com Jazz ou com Folk ou com Blues, mas eu fui um miúdo que cresceu com hip-hop e música rap. Está dentro de mim. É uma espécie de Folk Music. Tarus (Mateen – cb) e Nasheet (Waits - b), são um pouco mais velhos que eu e conhecem melhor. Tarus tocou imenso hip hop dance music. Eles compreendem imediatamente o que é que eu estou a fazer e não tenho que falar. E eles simplesmente tocam.
AJ – Fale-me do teu último disco, "Modernistic". Tem também várias referências pop.
JM – “Planet Rock” é um tema dos “African Bambaataa”, que faziam uma espécie de música rap no fim dos anos 70 em New York. Eu toquei uma das suas canções. Isto afectou a minha história. James P. Johnson ou Planet Rock ou Robert Schumann, eles são a minha música. Como Richard Abrams. Foi esta gente que anda à minha volta e que afectou a minha música.
AJ – A propósito ainda de pop, fez um trabalho para a Bjork.
JM - Adoro a Bjork. Adoro o “Homogenic” que é um grande disco. Atrai-me o seu conteúdo emocional e a forma como ela canta as canções. É muito bluesy, soulful, sem ser soulful da maneira americana. Ela é islandesa, é muito diferente. É um mistério a maneira como ela canta. A forma das suas estruturas harmónicas é muito curiosa e inspiradora. Não vejo nela Jazz ou outra coisa. Elas movem-se não como numa canção tradicional. É muito interessante ouvi-la.
AJ – Os duetos com Greg Osby (que tocou hoje) foram muito bonitos. Estão gravados?
JM – Não. Talvez gravemos. Eu toco com o Greg há seis anos e conhecemo-nos muito bem. Ele é um grande músico. Fez parte do movimento Mbase e tem uma energia muito grande. Eu também toquei com todos eles, Graham Haynes, Lonnie Plaxico, Cassandra Wilson, Steve Coleman. Eles fazem uma música muito criativa. Aprendi muito com ele.
AJ – Tocou em Lisboa esta semana.
JM – Toquei no Hot Club na Terça-Feira, dois sets. É como um clube de New York. Lindo! “A lot of cats”. Mesmo como em New York. Adorei o clube.

Modernistic

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Blue Note/ EMI-VC
Jason Moran (piano)

O que Jason Moran tem de extraordinário começa por ser a própria forma como aborda o piano, como se a sua herança lhe pertencesse por inteiro.
As primeiras notas de “Modernistic” dão o mote, ao recriar o piano stride de James P. Johnson. O segundo tema, “Body and Soul”, popularizado por Billie Holiday, é apenas o reverso da mesma medalha. Na eloquência de ambas as interpretações encontra-se uma afirmação de modernidade subtil. Mas já “Planet Rock”, um tema rap dos anos 80, marca a ruptura, esclarecendo de forma clara que, se o Jazz é a sua grande referência musical, o é por opção, já que a sua música pop (o equivalente ao que os clássicos de Jazz entendiam os (hoje) standards, como fonte de inspiração), são coisas tão estranhas para a maior parte dos ouvidos dos amantes do Jazz como o rap, o hip hop ou a Bjork. As referências seguintes ao free jazz e à música clássica europeia em Muhal Abrams e Robert Schumann, não são por decerto, ocasionais.
Trata-se então de saber se o produto resultante desta abrangência/ eclectismo referencial tem alguma consistência ou é, pelo contrário, apenas um embuste, um produto da indústria, que o tempo acabará por desmentir. Não creio: este é o quarto registo do pianista na primeira pessoa e já são razoáveis as suas prestações ao lado de figuras tão diversas quanto Von Freeman, Steve Coleman, Joe Lovano, Lonnie Plaxico, Jaki Byard (com quem estudou), Cassandra Wilson, Sam Rivers ou Greg Osby e inúmeros outros. Para explicar como o piano de Jason Moran não se confina a um estilo, não sendo no entanto, como sucede com inúmeros jovens prodígio, um clone imitador de diversos estilos. James P. Johnson, Richard Abrams, Robert Schumann ou os Afrika Bambaataa são apenas modelos inspiradores, a partir dos quais Jason Moran edifica a sua música.
E aqui reside, outra diferença do pianismo de Jason Moran: o seu universo de referência já não é apenas o Jazz, como o é, por exemplo, para outro extraordinário tecnicista, James Carter, mas toda a música. Aparentemente Jason Moran compreendeu o que inúmeros jovens parecem ignorar: que o Jazz sempre foi uma música em evolução, construída sobre as outras músicas, outros géneros e correntes.
Nada parece ser tabu para este Jason Moran. Será talvez prematuro elevar o jovem pianista à altura dos grandes nomes que fizeram a História do Jazz, mas penso que o caminho que ele vem traçando, e de que este “Modernistic” é exemplar, é um dos caminhos mais interessantes do Jazz contemporâneo.

Leonel Santos

(publicado em All Jazz 6, 2002)

 
 
Modernistic 2002 (Blue Note)