Maria Schneider
À conversa com Maria Schneider:
(Entrevista de Leonel Santos em 19 Novembro 2005
antes do concerto no Guimarães Jazz)
JAZZLOGICAL: Já tocou várias vezes em Portugal. E em Guimarães
também….
MARIA SCHNEIDER: Sim. Gosto imenso de tocar em Portugal e gosto especialmente
de tocar aqui nesta cidade tão bonita. Foi onde nasceu Portugal, não
é? Além
de que tenho em Portugal alguns bons amigos. Mas os meus músicos parecem
gostar de tocar aqui especialmente …
JAZZLOGICAL: É
muito popular entre os apreciadores de Jazz portugueses…
MARIA SCHNEIDER: Sim. Diseram-me que o concerto de hoje está esgotado
há muito…
JAZZLOGICAL: A sua vida
parece ter mudado muito nos últimos tempos… O
que é que está a fazer?
MARIA SCHNEIDER: Tenho andado a escrever material para o próximo disco,
mas tenho também algumas encomendas. Quando regressar a casa, vou-me «enclausurar» durante
algum tempo, porque tenho uma encomenda urgente.
JAZZLOGICAL: O seu último disco tem vendido bem? Vender discos na
Internet não é o mesmo que ter uma distribuidora…
MARIA SCHNEIDER: Olhe, vou-lhe dizer uma coisa: já ganhei muito mais
dinheiro nos últimos seis meses a vender discos exclusivamente na
Internet, do que nos anos anteriores com a distribuição tradicional.
JAZZLOGICAL: Mas tem
encomendas que cheguem? Quantos discos é que
vende?
MARIA SCHNEIDER: Eu sou muito má para números. Deixo isso para
o meu contabilista. Mas posso dizer-lhe que antes o que ganhava com os discos
era ridículo. Tinha que trabalhar e fazer concertos em todo o lado.
Com saberá, até mantive durante anos uma banda regular num
clube de New York… Agora, posso planear a minha vida sem me preocupar
com tocar. Agendo os concertos de acordo com a minha disponibilidade (mental),
sem me obrigar a tocar para viver.
JAZZLOGICAL: Foi fácil
a sua saída da «indústria»?
MARIA SCHNEIDER: Nada fácil. De facto tive até muita resistência
e na altura zanguei-me muito. Quando me apercebi do dinheiro que não
estava a ganhar porque ia para a editora e para as distribuidoras e as lojas,
fiquei muito zangada. Tive discussões terríveis e zanguei-me
imenso porque me senti roubada. Hoje isso já passou e percebi que
não se trata de pessoas, mas do próprio funcionamento da indústria. É a
própria lógica do sistema que faz com que todos ganhem dinheiro
menos o artista. Sentia-me como uma criança que descobre que o pai
lhe está a mentir. Senti-me traída pelos meus melhores amigos.
Agora já não penso assim, já não sinto assim,
mas na altura foi terrível.
JAZZLOGICAL: Acha então
que o sistema de distribuição
através da Internet funciona melhor que o sistema tradicional?
MARIA SCHNEIDER: Não sei se funciona para toda a gente. Para mim,
funciona, talvez porque eu já tenho nome; já tenho crédito
internacional. Não sei como seria se eu fosse uma desconhecida.
JAZZLOGICAL: Mas vende
o mesmo que antes?
MARIA SCHNEIDER: Não creio. Nem pouco mais ou menos. O meu contabilista
disse-me há tempos os números, mas eu não sei dizer.
Creio que não vendo nem um décimo do que vendia. A diferença é que
agora todo o dinheiro vem directamente para mim… Tenho apenas que contabilizar
as despesas de produção do disco … e pagar ao contabilista…
JAZZLOGICAL: Voltando à sua
música. Concert In The Garden
marca uma diferença. Parece-me um disco muito menos sombrio do que
os anteriores… Enquanto
nos primeiros discos parecia estar a exorcizar os fantasmas da infância,
agora a temática é muito mais feliz, mais pastoral…
MARIA SCHNEIDER: Não sei. Vocês é que são os críticos.
Mas será talvez verdade
que neste disco os pássaros
e as flores foram uma grande fonte de inspiração para mim,
mas a infância não deixa de estar presente.
JAZZLOGICAL: O que é que
a inspira então, além da
infância?
MARIA SCHNEIDER: Tudo me inspira. O passado e o presente. Talvez que essa
felicidade de que fala corresponda também a um período mais
feliz da minha vida. Mas é disso que o Jazz fala; da vida, não é verdade?
Além disso, inspira-me o Jazz e a música que ouço, Mozart
e Chopin, Gil Evans ou os clássicos, mas também o que os meus
músicos
fazem. A natureza inspira-me, os sons da natureza, a minha infância, as pessoas,
e toda a música. Um dia destes vou tocar Mozart… A música
folclórica
também me inspira…
JAZZLOGICAL: Como é que
compõe? Tenho uma imagem de si sentada
ao piano em frente a uma janela onde vê as árvores e os passarinhos…
MARIA SCHNEIDER: Nada disso. Eu não toco piano. Eu componho directamente
no papel.
JAZZLOGICAL: A sério?
Sem nenhum instrumento?
MARIA SCHNEIDER: O meu instrumento é a orquestra. Eu sou uma péssima
pianista.
JAZZLOGICAL: Ainda assim,
parece-me estranho que escreva «de cabeça»,
sem ouvir nenhum instrumento! E sem querer associo a composição
ao piano, talvez porque é um instrumento completo.
MARIA SCHNEIDER: Isso é verdade. Mas eu sou mesmo uma péssima
pianista. Felizmente que tive a sorte de ter a amizade de um pianista extraordinário
como é o Frank Kimbrough, que além disso é capaz muitas
vezes de me auxiliar e até corrigir. Mas o trabalho de composição
sou eu que faço todo, directamente no papel.
JAZZLOGICAL: E os arranjos?
Como faz?
MARIA SCHNEIDER: Varia muito. Mas normalmente faço tudo directamente.
Muitas vezes vou escrevendo a melodia e os arranjos em simultâneo,
ou escrevendo inúmeras notas que depois trabalho. Sou eu que faço
tudo. Estou assim durante longos períodos a trabalhar, em quase reclusão.
Quase sempre, quando reúno a orquestra, já tenho tudo feito,
sem ter ouvido.
JAZZLOGICAL: Eu já assisti
noutras alturas a dois ou três check-sound
da sua orquestra que me pareceram mais ensaios. Por vezes pareceu-me que
estava a experimentar e até a modificar arranjos.
MARIA SCHNEIDER: Eu faço muito isso, também porque a orquestra é muito
fluida, apesar de ter um núcleo duro que me acompanha sempre… Não
dispenso o Frank… Mas muitos solistas vão rodando e eu tenho
que ter em conta a sua personalidade… Mas há muitos que tenho
sempre comigo: aquele jovem fantástico, o Don McCaslin, a Ingrid Jensen,
o Ben Monder, Rich Perry, Scott Robinson, tantos…
JAZZLOGICAL: Isso será um pouco como os célebres «head
arrangements» de Duke Ellington….
MARIA SCHNEIDER: Talvez. De qualquer forma a peça está sempre
escrita e orquestrada e eu tenho a sorte de ter sempre comigo os melhores
músicos, capazes de tocar qualquer coisa. Mas é preciso conhecê-los
e contar com a sua própria personalidade e as suas capacidades, de
forma a completar e também a enriquecer a peça. Os ensaios
são por vezes muito duros, e alguns músicos já me chamaram
ditadora, mas eu sei que é a brincar. Mas eu posso orgulhar-me de
ter sempre os melhores músicos comigo. Muitas vezes são eles
que vêm
ter comigo, e se algum falha por qualquer compromisso, tenho logo
dois ou
três
que querem substituí-lo,
e nem pode ser pelo dinheiro que lhes pago…
JAZZLOGICAl: O que é que vamos
ouvir hoje?
MARIA SCHNEIDER: O meu último disco,
algumas coisas do próximo disco, mas também algumas peças antigas, provavelmente.
Maria
Schneider Orchestra
Sky Blue
ArtistShare,
2007
***** (5/5)
A música de Maria Schneider sempre foi muito «visual»,
e isso será mais evidente em Sky Blue que nunca. A música de
Schneider está cheia de cor, mas também de memórias
e vida. Há algo na atmosfera que preside àquela música
que tem muito de autêntico, de natureza e de respiração.
Sempre vi Degas ou Monet (e não surrealistas, mas talvez Miró);
sempre vi cor e bucolismo e quietude, mesmo quando a orquestra eleva a voz.
A presença explícita dos pássaros e da natureza confirma
a felicidade desta nova fase aberta em Concert in The Garden e Days Of Wine
And Roses (ou esconjura fantasmas do passado?), que remete também
para as origens que é também o Gil Evans de coisas como Where
The Flamingos Fly ou a fusão brasileira da Flora Purim
dos anos 70.
Pretty Road é uma quase-canção-pop, como ela mesma a
define. Pretty Road conta uma história, uma vez mais retirada das
memórias da infância, com o pai, no Minnesota. A solista é a
sua amiga Ingrid Jensen em fluegel e trompete com electrónica. Aires
de Lando é inspirado numa música folk do Peru – o Lando.
As percussões latinas acompanham todo o trecho (o cajon e as palmas)
a par do acordeão de Gary Versace, com o inefável Scott Robinson
em clarinete. Rich Perry inspirou o terceiro tema do CD, e a ele pertence
o longo solo, como o voo de uma águia sobre os penedos e a orquestra
que é o vento que assobia e o suporta. Os pássaros de Maio
no Central Park são o tema da longa peça de 22 minutos de Cerulean
Skies. Tudo está lá: a aurora, os piados e os lamentos, as
cores. Don McCaslin alterna com Gary Versace e Frank Kimbrough, George Pilow
e o silêncio, o dealbar e a orquestra. Enfim, Sky Blue é dedicado à memória
de uma amiga desaparecida que lhe falava da vida como coisa efémera
como nuvens mas bela como o céu e digna de ser vivida.
Dificilmente melhor homenagem Maria Schneider poderia fazer
que dedicar-lhe
o pungente solo de Steve Winson.
A orquestra é o instrumento de Maria e ela compõe para aqueles
instrumentos e aqueles músicos que ela conhece como ninguém.
A música dela parece cada vez mais simples (naif) e
mais bela, mais depurada. Cada ano, cada disco, a orquestra
de Maria
Schneider
assemelha-se mais a um organismo vivo, luminoso.