Uri Caine


Uri Caine na Casa da Música - 25 Março 2007

Eu sei que me estou a repetir, mas creio que vale a pena insistir: o que o projecto Mozart de Uri Caine tem de interessante não é o facto de trabalhar sobre temas retirados do universo da música clássica. Por outro lado, ele também não utiliza os conceitos harmónicos herdados da música clássica, à maneira do que fez a Third Stream. Não procura «formatar» o Jazz dentro do espartilho clássico como eles fizeram. O que ele faz é utilizar a pauta integral das peças clássicas, com tudo o que elas contêm, de concepções, melódicas e harmónicas, mas também estruturais e, diria, superestruturais (culturais), para introduzir elementos de interrogação que as percorrem desde o princípio. Esses «elementos de interrogação» inevitavelmenbte acabam por transformar a peça, permanecendo embora reconhecíveis.

À partida, desde logo os arranjos para aquela formação surgem desajustados para os ouvidos mais conservadores. Mas a forma como ele introduzir elementos microscópicos estranhos, alterações na melodia, subvertendo o ritmo, dissonâncias e brechas de todo o tipo sobre a linha da composição, jogando com os instrumentos, uns improvisando sobre a pauta que outros tocam. Improvisação versus pauta. Instrumentos contrapondo a outros. O tema que se desloca do violino para o piano, do piano para o violino-clarinete ou para o trompete; ao mesmo tempo que os outros instrumentos constroem novas melodias, novos contrapontos, parecendo associar-se ou dissociar-se aleatoriamente. Puro Jazz.

O concerto do Porto (Casa da Música) foi exemplar, embora perturbado pela ausência do guitarrista que se fez notado (ao contrário do DJ), já que muitos dos arranjos contavam com a sua presença. Michael Formanek também substituiu Drew Gress, sem problemas. Por outro lado, aqui e ali Jim Black surgiu-me algo excessivo.

Uri Caine optou por tocar todas as sonatas num medley logo no início, seguindo-se as restantes peças e culminando no epidérmico Turkish Rondo from Piano Sonata in A Major. A improvisação mais solta, já sem qualquer pauta surgiu saborosa e eloquente no encore, também ele uma espécie de medley.

Dispenso-me de me repetir, sugerindo-lhe que leia o que sobre «plays Mozart» escrevi na antecipação do concerto.

Uma palavra apenas para exprimir o meu sentimento no final do concerto: génio!


Ver também texto sobre Os Dias da Música

Ver também http://www.uricaine.com/


 

 

O meu avô e Uri Caine

O meu avô era lavrador. Numa das mais antigas recordações que tenho dele, eu teria talvez seis anos, levou-me para a «fazenda». Era uma aventura para mim, menino da cidade, hesitando entre a chatice de ter de me levantar às seis da manhã e um dia inteiro com o meu avô. Não era pessoa de grandes falas, embora nos seus últimos anos gostasse de contar histórias do tempo que tinha passado na tropa, em Cabo Verde, durante a Grande Guerra.
Naqueles dias, a minha avó já tinha pronto para mim o café, uma caneca enorme, e pão com manteiga, enquanto ele albardava o burro. Conforme a fazenda e o que tinha que fazer, o burro ia ou não carregado e eu podia talvez ir montado nele, mas com sorte até talvez tivesse que atrelar a carroça!
A fazenda de que eu gostava mais dava pelo nome de Antas e ficava num vale ao pé de um ribeiro. Ficávamos lá todo o dia e por isso o meu avô levava almoço. Ele regava os feijões, arrancava batatas ou refazia os espantalhos, enquanto eu vigiava os coelhos e procurava os alfaiates na água ou ficava por ali a brincar com paus e cascas de árvores ou o ajudava em qualquer coisa. O almoço não variava muito, mas o que eu preferia constava de carapaus secos da Nazaré com batatas previamente cozidas que ele aquecia numa fogueira improvisada que eu ajudava a fazer. Depois ele ria-se com ar matreiro enquanto afiava um pau verde que espetava pelos olhos dos carapaus todos que depois passava pela fogueira. O fogo queimava a pele espinhuda dos carapaus e fazia-os pingar. Depois pelávamos as batatas e desfiávamos os carapaus para o prato e enfim temperávamos com azeite e vinagre e talvez um dente de alho. O galheteiro era uma garrafa meia de vinagre de vinho tinto em baixo e outro tanto de azeite dourado em cima que ele manuseava com perícia para que os líquidos não se misturassem. Quando apanhava o meu avô pelas costas, agitava freneticamente a garrafa e depois ficava a ver as bolhas separar-se lentamente. Ainda hoje sinto o cheiro da gordura dos carapaus na cinza e do vinagre de vinho.
Porque é que vos estou a contar isto? Ora, porque posso. Porque não tenho restrições de espaço e me apetece. Um destes dias conto-vos uma história da minha avó.

 

Vinagre e azeite
A história da tentativa de fundir o Jazz com a música clássica é realmente muito antiga. O problema, desde o início, era não tanto a utilização de temas clássicos, mas a conciliação dos dois universos, culturas: branca, ocidental, visual, escrita, com negra, afro-americana, áudio-táctil, oral. Vinagre com azeite (enfim!).
A história remonta aos primeiros orquestradores, Fletcher Henderson, mas principalmente Duke Ellington. Dizia Rex Harrison em 1955: «a maior parte da obra de Ellington é única como forma musical original, mas não é Jazz no sentido rigoroso» e «A tentativa feita por Ellington de fundir o Jazz num formato clássico tem, claro está, feito profunda impressão em muitos músicos e críticos “sérios”, que tiraram muitas conclusões falsas». E ainda Max Jones, citado pelo mesmo Harrison: «Com o andar dos anos orquestrou partes cada vez mais rigorosas de cada músico, tolhendo-lhe progressivamente a liberdade de variações individuais». E poderia continuar…
Harrison e Jones põem o dedo na ferida localizando o problema: Ellington escreveu partes substanciais das peças, composições e arranjos, «tolhendo-lhes a liberdade», substituindo improvisação total por notação escrita clássica. A originalidade de Duke residia na forma absolutamente genial como jogava com as estruturas e a improvisação, como utilizava as massas sonoras, manobrando a orquestra como um instrumento. Apesar das observações contrárias, a improvisação era de facto um dos elementos fundamentais da sua música e até mesmo os seus detractores reconheciam que ele tinha na orquestra sempre os melhores de entre os melhores. Mas a verdade também é que a «liberdade» total nunca tinha existido e as interpretações continham sempre um tema que mesmo que não fosse escrito, ele era passível de o ser e a improvisação obedecia a regras, mesmo se os músicos as transgrediam e elas evoluíam a todo o momento. Ellington apenas assumia as consequências finais dessa realidade.

Outros demónios...
Enfim, consumado o pecado original, outros demónios assomaram nos anos seguintes. Um dos exemplos mais controversos terá sido o pecadilho do insuspeito Charlie Parker no disco «with strings». Mas o projecto era bastante mais pobre que a forma ellingtoniana. Basicamente ele constava de uma formação clássica, com música e músicos clássicos, por cima do que o saxofone de Bird solava. Nada da osmose corrosiva dos dois universos, escrito e oral, de Ellington. Apenas duas formas concorrentes, uma sobre a outra. A verdade é que esta foi a fórmula escolhida por inúmeros músicos, talvez para se oferecer autoridade. E isto chegou aos nossos dias. É ainda frequente ver nos cartazes: «fulano» com orquestra. A orquestra (clássica, por norma) conta um compositor, um arranjador e um director branco – todos eles competentes funcionários - e o solista lá está à frente esperando paulatinamente que chegue a sua vez. Infelizmente foi isso que vimos, por exemplo, há bem poucos anos acontecer com o grande Wayne Shorter, num concerto no Coliseu do Porto. Como se ele necessitasse disso... No melhor pano cai a nódoa...
Os anos 50 e o cool trouxeram Gil Evans e nunca a sofisticação formal atingiu um nível tão elevado. O provocador Evans não escondia que queria mesmo casar azeite e vinagre. Ele acrescentou novas combinações tímbricas, ele reformulou e elevou a arte de Ellington até ao céu. O visionário Miles Davis soube descobrir-lhe o génio onde outros clamavam raios e coriscos: um dos momentos altos da colaboração dos dois músicos é mesmo Concerto Aranjuez, em Sketches of Spain. Bob Brookmeyer e Maria Schneider são outros representantes desta fórmula jazz-clássica, combinando escrita e improvisação, servida por arranjos próprios, com erudição, elegância e engenho.
Uma ainda outra bem sucedida solução para esta espécie de problema de «quadratura do círculo» (o Nuno Crato me perdoe pelo uso vulgar da expressão) foi realizada por Max Roach nos anos 80 com o injustamente esquecido e sem descendência «duplo quarteto». Basicamente tratavam-se de dois quartetos – um clássico e um quarteto de Jazz – a funcionar de forma dinâmica. Existia uma estrutura escrita que era tocada pelo quarteto de cordas clássico, aqui e ali pontuada por exercícios de improvisação limitados, que o quarteto de Jazz (com Max Roach à bateria, mais contrabaixo, saxofone e trompete) ora intrometia, ora perseguia, ora secundava, ora acometia, ora questionava. O resultado final era brilhante e valeria a pena ser revisitado!

e demónios portugueses
Um exemplo não conseguido de uma experiência semelhante foi o Ascent Trio de Bernardo Sassetti; um duplo trio em que ele era o vértice, mas em que os dois trios estavam quase sempre divorciados, numa fórmula do tipo «ora agora tocas tu, ora agora toco eu». Conhecendo o Bernardo Sassetti, seria de esperar melhor...
E aproveitando para falar de Portugal, vale a pena referir ainda dois exemplos bastante mais conseguidos, mesmo se não levados às últimas consequências. O primeiro será o aclamado projecto de Mário Laginha, Canções e Fugas, que a crítica nacional votou como o melhor disco de Jazz nacional de 2006. Nele Laginha cruza técnicas próprias da fuga bachiana com improvisação jazzística num exercício bastante conseguido.
Um segundo exemplo não editado foi realizado por Pedro Moreira, o "Jazz Allegro Dansabile", quinteto mais quarteto de cordas, apresentado no CCB em Março do ano passado. O projecto revelava um muito interessante trabalho de composição e arranjo que tinha ademais o atractivo de ser acompanhado de uma igualmente interessante coreografia. De forma diferente os dois projectos partilham de concepções que se aproximam de Uri Caine de falarei a seguir, ainda que, como disse, não levados às últimas consequências.


plays Mozart

Uri Caine Ensemble
plays Mozart
Winter & Winter, 2006
***** (5/5)

O disco de Uri Caine sobre Mozart é realmente outra coisa. Músico de formação clássica, as incursões do pianista aos heróis da música clássica europeia são já famosas (Wagner, Mahler, Schummann, Bach, Beethoven...), ao mesmo tempo que as interpretações de Monk ou os devaneios milesianos no piano eléctrico como se apresenta ao lado de Dave Douglas.
Neste disco, o tema é exactamente Mozart, entre sonatas para piano, ópera ou passagens de algumas das suas mais célebres sinfonias. Qualquer ouvinte de música clássica (que não eu, que nem sequer sou apreciador) as reconhecerá imediatamente. Simplesmente, de todos ou qualquer ponto de vista, a abordagem de Uri Caine poderá de forma alguma ser considerada convencional. A começar logo pela formação, um ensemble misto de grupo de câmara clássico e combo de Jazz alargado: piano, baixo e bateria, mais clarinete e trompete, violino, guitarra eléctrica e turntables. Ou seja, nada convencional como formação clássica ou banda de Jazz.
Mas a transgressão torna-se evidente nos arranjos. Claro que eles são verdadeiras provocações e qualquer apreciador de música clássica deverá prudentemente afastar-se ou então preparar-se para o pior. Não que Mozart não esteja lá, porque o ponto de partida é sempre Mozart e as orquestrações de Uri Caine não o utilizam sequer apenas como ponto de partida, mas verdadeiramente o integram nas composições. Ele está lá sempre, ora na melodia desenhada pelo piano (mais evidente nas sonatas), ora no violino ou no violino-clarinete; mas sempre em movimento, questionado pelos outros instrumentos ou pelo instrumento que o evoca, contrariado, quebrado, silenciado ou prolongado, improvisado ou invocado. Por vezes torna-se evidente que se trata de uma banda de Jazz a tocar, outras o rock ou a pop parecem assomar, outras o mais cândido Mozart espraia-se, e o que é verdadeiramente impressionante é a forma absolutamente natural como os arranjos surgem, como se Mozart fosse exactamente assim; realmente empolgante como alguma vez já alguém o tocou. Mesmo as turntables para com que tenho uma aversão alérgica antiga são aqui usadas com parcimónia e acerto! Não tenho dúvidas que se trata de um disco de Jazz onde a escrita se funde com a improvisação como jamais tinha sido feito. Irreverente, transgressor, genial.
Sobre os músicos há pouco a dizer: apenas que este é um grupo perfeito e à bela maneira ellingtoniana eles foram escolhidos a dedo com este propósito: também aqui o génio de Uri Caine se revela. Ainda assim se haverá um músico a evidenciar, ele será Jim Black sempre eficiente nas marcações ou nos contrapontos, incisivo e inventivo.
De todas as investida aos autores clássicos de Uri Caine, esta parece-me ser de longe o mais conseguida. Mas é evidente que qualquer fundamentalista não pode deixar de se sentir ofendido. Os puristas de Mozart clamarão por sacrilégio e os que consideram que Bitches Brew não é um disco de Jazz devem achar este objecto abjecto. Mas ele é, em meu entender, um disco absolutamente genial.
O Uri Caine Ensemble vai tocar na Casa da Música no próximo Domingo, 25.

20 Março 2007