Exposição
O Jazz na BD
Hot Club de Portugal
Barreiro
(Ilustra BD)
Introdução
O Jazz na Banda Desenhada
O Jazz e a Banda Desenhada (BD) são historicamente recentes. Se a representação figurativa é tão longínqua quanto a humanidade, a BD, como forma de arte, como se conhece hoje, apenas pôde surgir depois da massificação da imprensa e remonta aos anos 30 do século XIX. Por outro lado, o Jazz apenas surgiria de forma local no sul dos Estados Unidos no início do século XX, e originariamente entre a comunidade negra.
Formas artísticas tão distantes quanto o podem ser uma arte gráfica e um género musical, ambos padeceram, numa fase inicial, de um mesmo ostracismo por parte do público e da crítica de arte, que os entenderam como formas artísticas menores. Se o Jazz apenas começou a ser levado a sério pela crítica musical nos anos 40 (do século XX), a BD era considerada uma arte de entretenimento, e bastaria o nome que lhe é dado nos Estados Unidos: “comics”. Isto, mesmo se ela contou com fantásticos desenhadores e se os jornais lhe ofereceram uma enorme popularidade.
Se apenas acidentalmente a BD inspirou o Jazz, a Banda Desenhada também andou apartada do Jazz, em parte pelo seu universo temático “de entretenimento”, e pelo público a que se dirigia. Não havia Jazz (não havia espaço) nas aventuras de Flash Gordon, do Tarzan, do Prince Valiant ou do Superman, nas histórias de cowboys ou nas elucubrações oníricas de Little Nemo. As histórias de BD não se debruçavam sobre os ambientes obscuros do Cotton Club ou os fumarentos clubes de Jazz de New York; e apenas alguns heróis lhe reservaram apontamentos ocasionais, e com frequência sardónicos, em histórias mais urbanas. Até porque não havia personagens negras nas histórias de BD, até muito tarde.
Foi apenas no pós-guerra que a BD e o Jazz, diferentemente, ganharam respeitabilidade. Se com o advento do bop o Jazz deixou de ser apenas considerado música de entretenimento, ascendendo à categoria de arte, a BD sofreu paralelamente uma transformação, na forma, mas também na temática, que deixou de ser quase exclusivamente fantasiosa e aventureira, autorizando muitos autores a debruçar-se sobre argumentos e ambientes urbanos (e o Jazz é um género musical predominantemente urbano).
O caso do super-herói urbano Spirit de Will Eisner, que surgiria já nos anos 40, e que contava com um auxiliar negro, Ebony White, é paradigmático. O pequeno amigo de Spirit era um miúdo traquinas, de lábios grossos e iletrado, que se exprimia num calão cerrado, numa caricatura que poderíamos levar longe. E significativamente também, ele gostava de tocar bateria; o instrumento do Jazz.
Esta exposição completa-se aqui, no Will Eisner e nos seus personagens.
A atracção que o Jazz realizou nos meios intelectuais e artísticos, e no público não negro, a partir dos anos 60, trouxe o Jazz para os livros e o cinema. Entre biografias e autobiografias – Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Miles e Charlie Mingus- e a ficção - do On The Road de Jack Kerouac até ao But Beautiful de Geoff Dyer-, a literatura abunda nas estantes dos jazzómanos. No cinema também: a primeira longa metragem de Louis Malle, o policial negro Ascenseur pour l’échafaud, de 1968, tornou-se célebre também pela banda sonora de Miles Davis mas, mais recentes, em Bird, de Clint Eastwood, Round Midnight, de Bertrand Tavernier ou Cotton Club, de Francis Ford Coppola, o Jazz é o próprio motivo.
Mas o Jazz na Banda Desenhada é menos conhecido, mesmo se ele existe, e mesmo se alguns desenhadores o transportaram de forma persistente na sua obra.
Autores como o italiano Guido Crepax e os argentinos Muñoz e Sampayo são paradigmáticos. O singular Crepax, conhecido pelos devaneios eróticos de Valentina, desenhou uma lindíssima e dramática história - O Homem do Harlem-, e a dupla Muñoz e Sampayo, fez dos ambientes mais soturnos de New York o pano de fundo das suas histórias. Em Billie Holiday, os argentinos contam a história de uma jornalista que pretende escrever sobre uma cantora de que desconhece tudo, e o mesmo Jose Muñoz ilustra o conto de Julio Cortázar, O Perseguidor; a história de um jornalista que persegue Charlie Parker para o entrevistar.
Barney et la Note Bleue (de Loustal & Paringaux, 1987) é um biopic do saxofonista Barney Willen e, mais recentemente, Youssef Daoudi mergulha na vida atribulada de Thelonious Monk, num verdadeiro épico: Monk!-, de que se mostra uma magnífica prancha de duas páginas. A terceira história biográfica da exposição é a já referida Billie Holiday, dos argentinos Muñoz & Sampayo.
Também argentinos, dois autores – Gonzalez & Altuna - construíram Hate Jazz, uma história terrível onde o amor e a paixão se cruzam com a droga e o crime num ambiente tórrido. Bem mais divertido, o italiano Sualzo conta a história atribulada de um clarinetista que parecia atrasar-se em tudo, na música e na vida.
A colecção BD Jazz, de carácter biográfico, resulta de uma encomenda dirigida a seis dezenas de autores; cada um dos livros – discos (dois CD por edição) dedicado a um músico. Destes, foram editados em Portugal 12 títulos em 2003.
A banda desenhada underground também está presente nesta exposição: nas histórias autobiográficas de American Splendor, do argumentista e crítico de Jazz Harvey Pekar, que deram origem ao filme com o mesmo nome, e na curiosa página do espanhol Pamiés; e ainda os retratos de RobertCrumb e os irreverentes cartoons de Siné e Cabu. Estes dois últimos foram por muitos anos colaboradores do Charlie Hebdo, tendo Cabu sido assassinado no ataque terrorista de 7 de Janeiro de 2015.
O blues também está presente, na história sobre a lenda de Robert Johnson de Alcimar Frazão e no épico maravilhoso de Toppi.
Em Portugal, os exemplos desta associação são raros, mas existem. Quando associamos a BD ao Jazz, o primeiro nome que nos vem à cabeça é o violinista Carlos Zíngaro, também autor de várias histórias de BD (algumas publicadas na histórica Visão) e ilustrador, e recordo-me que fez cartazes para concertos e festivais. Infelizmente, não lhe conheço histórias por onde o Jazz passe.
Do outro lado, do lado da música, a referência urgente é o disco de Mário Delgado, Filactera (um personagem de BD publicado na revista Tintim), com temas evocativos da BD como “I’m a Poor Lonesome Cowboy”, “Sete Bolas de Cristal”, “Blues dos Freak Brothers”, ou “Corto Maltese”.
Outro nome será o de Filipe Melo, pianista de Jazz, cineasta e argumentista de histórias de BD, entre as quais as bem-sucedidas aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy; mas também nas suas histórias o Jazz não é o motivo.
O Jazz é, no entanto, o ponto de partida de José Carlos Fernandes - um dos mais profícuos e premiados dos nossos desenhadores - nas desventuras nonsense d’A Pior Banda do Mundo; e ele não poderia deixar de figurar nesta exposição.
Outros autores denunciaram a sua paixão pelo Jazz em pranchas e referências dispersas, e vale a pena referir o fanzine Jazzbanda (Fanzine: fan+zine, publicação amadora alternativa, destinada aos fãs de banda desenhada) editado pelo saudoso fundador do Clube Português de Banda Desenhada, Geraldes Lino, de que foram feitos dois números: pequenas histórias com desenhos de Pedro Massano e Ricardo Cabral, Rui Lacas e outros, com textos de Ana Bacalhau e outros.
A exposição é uma mostra desta relação afortunada da BD com o Jazz: mais de 30 autores que de alguma forma fizeram do Jazz tema. E vale a pena dizer que, se entre eles estão alguns dos mais singulares e geniais autores de Banda Desenhada de sempre, o Jazz verdadeiramente inspirou-os.
Nos textos que escrevi sobre os diversos autores e obras, eu não pretendi tirar ilações sociológicas, mesmo se elas seriam possíveis, mas tão somente situá-los, porque, creio, alguns deles necessitavam ser contextualizados, e também porque serão, na sua maioria, desconhecidos do público.
Com quatro excepções, todas as pranchas e capas que se exibem são digitalizações feitas a partir de livros da minha colecção pessoal, algumas delas com várias décadas; nem sempre, infelizmente, nas melhores condições. As excepções são os scans de Youssef Daoudi e de Toppi, de Will Eisner e Crumb, que me foram disponibilizados pelos autores ou editores.
Esta exposição esteve patente ao público no Hot Club de Portugal, entre Setembro de 2021 e Março de 2022, tendo sido adaptada para o Ilustra BD 2022 e o Auditório Municipal Augusto Cabrita da cidade do Barreiro.
Leonel Santos