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2007

Reviver o passado em Angra

De forma algo diferente das edições anteriores, o Angra Jazz 2007 teve como linha de força o elogio do passado. Como fiz notar na apresentação do festival, três nomes sonantes de três épocas estavam representados na primeira pessoa: o grande Jim Hall - mais do que um estilo, um instrumento! -, o hard-bop de Benny Golson e o free-jazz europeu de Alexander von Schlippenbach. Mas a verdade é que os três outros concertos agendados se enquadravam também eles dentro da tradição; seja pela grandiloquente voz de Roberta Gambarini na interpretação dos standards, seja pela evocação de Chet Baker pela voz e trompete de Laurent Filipe, seja enfim pelo explícito referencial temático e estético da Orquestra AngraJazz.

Começando pela Orquestra Angra Jazz, sabe bem dizer que é notória a evolução da secção rítmica, a avaliar pela única coisa que dela tinha ouvido, o disco em que participa Paula Oliveira, de que tive oportunidade de falar. A orquestra é uma máquina bem oleada e realizou um concerto muito agradável. A sua maior debilidade reside agora na quase ausência de solistas e improvisadores, e é para aqui que os directores Pedro Moreira e Claus Nymark deverão dirigir a atenção. Outro aspecto a considerar talvez, será o do alargamento do repertório, demasiado tradicional.
A Orquestra Angra Jazz é um projecto que é preciso acarinhar. Sabidas as dificuldades que existem em manter em actividade grandes formações em Portugal, é até surpreendente como ela subsiste. A persistência (carolice!) dos seus membros, da Associação Angra Jazz e da Câmara, merece todos os louvores. É preciso saber-se que a orquestra apenas toca uma vez por mês, quando os directores se podem deslocar a Angra. É obra! Tocar, tocar, tocar, agora é a receita. É necessário criar as oportunidades.

O outro momento nacional, o projecto de homenagem a Chet Baker, era à partida um número ganhador: Laurent Filipe recria com inteligência os ambientes melancólicos de Chet Baker e a banda é constituída por músicos competentes. Nada é deixado ao acaso, entre o som do trompete e o timbre e colocação da voz, à própria postura em palco. Laurent senta-se na boca do palco à frente do público como se fosse contar uma história e não tocar trompete, mas foi exactamente assim que tocou em 1981 no Cascais Jazz, num concerto absolutamente inolvidável.
Laurent Filipe fez um bom espectáculo e o público não lhe regateou aplausos.

A revelação do festival foi Roberta Gambarini que pisava os palcos nacionais pela primeira vez. O repertório foi exclusivamente clássico, I Hadn't Anyone Till You, No More Blues, On The Sunny Side Of The Street, C.C. Rider, o imortal Good Morning Heartache ou Easy To Love, mostrando-se igualmente à vontade nos blues, nas baladas ou nos tempos rápidos. Ela possui uma colocação de voz e uma alegria que lembra a grande Ella, mas também uma grande intuição e toda a técnica jazzística das grandes cantoras (sem no entanto jamais sair do campo «restrito» do Jazz mainstream). Infelizmente uma perturbação nas cordas vocais impedia-a de dar algumas notas, maculando o concerto. Ainda assim, um grande profissionalismo permitiu-lhe minorar o acidente e Gambarini realizou um verdadeiro gran finale coroado com um eloquente Estate.
A banda de suporte de Gambarini esteve irrepreensível. Kirk Lightsey é daqueles pianistas sólidos capazes de acompanhar qualquer músico e tocou com alegria e elegância. Reggie Johnson que no dia seguinte acompanharia também Benny Golson foi outro músico inspirado, como Douglas Sides, de um swing a toda a prova.

Na banda de Benny Golson, tudo rolou sobre esferas. Apesar dos seus 78 anos de idade, o velho saxofonista ainda realmente é capaz de soprar mas, como previ na antecipação do concerto, a vedeta é Eddie Henderson. O outro trompete, Philip Harper, acrescentou densidade ao todo e a secção rítmica – todos eles – solam com fluidez.
O «caso» da noite, quase estragou o concerto, quando o saxofonista logo no início da sua actuação, obrigou a equipa da Euronews a desligar a câmara, sem perceber que ela estava apenas a gravar os 10 minutos contratuais. É bastante comum esta paranóia norte-americana que radica no abuso que muitos produtores exerceram sobre os músicos até aos anos 60, que os espoliavam de direitos, quantas vezes de forma dramática. Mas o episódio marcou negativamente o concerto.
Solos de Bennie Golson em I Remember Clifford, e principalmente A Protrait of Jennie de Eddie Henderson destacaram-se pela positiva numa banda experimentada e eficiente.

Mais desequilibrado foi o Monk's Casino de Alexander von Schlippenbach, se bem que com uma actuação bem mais convincente que o desastrado episódio de Lisboa que referi noutro dia.
As composições-arranjos de AvS revelaram-se interessantes - na engenhosa construção - desconstrução das figuras, nos contrapontos e até no cruzamento dos temas - e durante a primeira metade do concerto ajustados, a revelar conhecimento da obra de Monk. Mas o mesmo não se poderá dizer das desiguais interpretações e da opção acústica, que resultou (apesar das excelentes qualidades acústicas da sala) no «apagamento» do piano e do contrabaixo no turbilhão dos sopros e da bateria.
Nem todos os músicos revelaram iguais qualificações: um baterista demasiado rígido, o trompete de Axel Doener a confirmar a sua origem clássica e incapacidade de solar (Jazz; habituado a outros ambientes mais abstractos), um pianista equívoco, um contrabaixista regular (quando se ouviu) e um excelente clarinetista em dia de excessos.
Curiosamente (enquanto pianista) o ícone do free Schlippenbach exibe uma formação bop (Bud Powell, não Monk), mas acusa ausência de personalidade, entre a exposição «à Monk» e um desenvolvimento ora bop (Powell) ora tayloriano. Ora o estilo de piano de Monk era único e estava intimamente associado à própria composição. Nem todos os pianistas compreendem isso.
Rudy Mahall é o músico de Jazz de Monk's Casino e o líder visível. Ao fim de algum tempo a fórmula estava gasta e Mahall vai progressivamente assumindo as rédeas do concerto. Ele é o grande solista da noite, estimulando o grupo e o público, mesmo se também ele contribuiu para o espectáculo de circo em que por vezes o Casino se tornou.
Nota alta para as composições/ arranjos de Schlippenbach, apesar de algumas soluções circense mais forçadas e para a prestação de Rudy Mahall, o verdadeiro líder da banda.

Jim Hall, um dos mais influentes guitarristas de todos os tempos, realizou o concerto que se esperava. Ele que sempre foi um músico discreto e acertivo, mantém todo o acerto da técnica irrepreensível, mas já não está propriamente na flor da idade. Aguardava-se um concerto celebratório e foi isso que aconteceu: durante hora e meia desfilaram alguns clássicos do cancioneiro americano com um delicioso Skylark ou All The Things You Are, standards como St. Thomas de Sonny Rollins ou originais como Ouagadougou. Jim Hall sempre foi um músico sofisticado e elegante e a sua música possui já arestas e rugas e ternura que se confundem em harmonias sob o peso da idade. O público rendeu-se à sua arte e exigiu o regresso para um encore, Americana (de Scott Colley), «dedicated to Peace». Jim Hall aproveitou para fazer um pouco de política pedindo desculpa pela política ambiental do Sr. Bush e pela guerra.
Scott Colley e Geof Keezer estiveram bem. Discreto em demasia para o meu gosto Colley; ele que é um dos grandes contrabaixistas da actualidade, provavelmente de forma deliberada deixando o mestre brilhar; mais intrusivo Keezer, autorizado talvez pelo disco recente que gravou em diálogo com o velho guitarrista.
O melhor concerto do festival.

Como é tradição no Angra Jazz, a organização do festival esteve sempre irrepreensível e atenta aos mínimos pormenores. Ambiente algo informal (diria familiar) que a sala permite e a direcção do Angra Jazz alimenta, três editoras na feira do disco, uma exposição de fotografias, excelentes! de António Araújo dedicadas ao Angra Jazz e vários eventos paralelos completaram a edição de 2007. Para o ano promete-se mais e melhor.

15 de Outubro de 2007

(JazzLogical esteve em Angra do Heroísmo a convite do Angra Jazz)



O Angra Jazz em antecipação

Esta semana decorre um dois mais interessantes festivais de Jazz nacionais, o Angra Jazz. A programação é, como vem sendo hábito, criteriosa e ecléctica, combinando géneros, fórmulas e formas, o velho e o novo: o Jazz, todo.
Históricos são Jim Hall, Bennie Golson e Alexander von Schlippenbach, que trazem consigo «jovens turcos» como Scott Colley, Eddie Henderson ou Rudi Mahall (enfim, Eddie Henderson já não é bem um jovem...). E mais jovem é a estrela em ascensão Roberta Gambarini sobre quem a crítica internacional tem os olhos postos. A representação nacional está a cargo do mais que competente Laurent Filipe e o mais acarinhado projecto do festival, a «improvável» Orquestra AngraJazz. De Sábado para Quinta:

Sábado 6
Quando se fala de Jim Hall, fala-se de um dos mais influentes guitarristas da história do Jazz; o Sr. Discreto, cujo som atravessou longitudinalmente todo o Jazz desde os anos 50. Sem jamais se apresentar como um virtuoso, o mais melodioso dos guitarristas foi o companheiro de aventuras de toda a gente entre Jimmy Giuffre, Bill Evans, Sonny Rollins, Art Farmer, Chico Hamilton, Paul Desmond, Gerry Mulligan, Ron Carter, Michel Petrucciani, e a lista é praticamente interminável. Digamos que metade da história do Jazz da segunda metade do século XX teve a participação de Jim Hall. Mário Delgado refere-o como «o Picasso da guitarra» e Nuno Ferreira assume explicitamente a sua influência: «É o meu guitarrista favorito, um mentor musical». Ele é o guitarrista perfeito, tecnicamente insuperável, inventor de uma sonoridade única.
A preferência de Jim Hall foram desde sempre as pequenas formações, os diálogos a dois ou a três e são inúmeros os exemplos deste tipo de colaborações na sua discografia. Apesar dos seus quase 80 anos de idade, Jim Hall continua a ser uma das grandes referências do Jazz e a fazer grandes discos: Duologues, de 2005, com Enrico Pieranunzi, Free Association, com Geoffrey Keezer, também de 2005, Magic Meeting, de 2004, com Scott Colley e Lewis Nash, Jim Hall & Basses, duos com Scott Colley, Charlie Haden, Dave Holland, Christian McBride e George Mraz, de 2001 ou ainda Jim Hall & Pat Metheny, de 1998, foram justamente aclamados toda a crítica e pelo público. No início de 2008 será editada a colaboração de Jim Hall com Bill Frisell, outro dos insuspeitados discípulos do velho guitarrista.
Em Angra do Heroísmo, no próximo sábado, Jim Hall apresentar-se-á com dois músicos que conhece bem: Geoffrey Keezer, um pianista que temperou as suas formas com Art Blakey, e o voluntarioso e virtuoso Scott Colley, que muitos comparam, sem favor, a Dave Holland.
Mas a noite continua com o Monk's Casino de Alexander von Schlippenbach. Schlippenbach tornou-se célebre nos anos 70 pela direcção da mais exemplar orquestra de free-jazz europeu. A Globe Unity, assim se chamava, tocou em 1979 na Gulbenkian, integrada nos célebre ciclos de música contemporânea (ainda antes do início dos Jazz em Agosto), num concerto absolutamente memorável. A sua reactivação recente é uma confirmação da frase daquele filósofo que dizia que a história acontecia sempre duas vezes; a primeira como drama e a segunda como comédia.
O Monk’s Casino de Schlippenbach está bastante longe dessas experiências idas e explora a música do grande Thelonious Monk. A apresentação que o pianista fez em Lisboa do projecto apresentou-se apenas sofrível, apesar dos arranjos interessantes; mas a inqualificável acústica do Teatro Variedades do Parque Mayer liquida qualquer concerto. Notável foi a prestação de Rudi Mahall, um dos grandes músicos de Jazz europeus, um louco furioso do clarinete-baixo.
A música de Thelonious Monk permanece uma das mais estimulantes e são inúmeros os músicos a perseguir o mais intrigante dos pianistas de Jazz de sempre. Espera-se que a excelente sala do Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo ofereça a Alexander von Schlippenbach a oportunidade para a explorar. E atenção a Rudi Mahall.

Sexta 5
No dia anterior tocará outro veterano: o grande Benny Golson. Apesar de profusamente gravado, a maior parte dos amantes do Jazz conhecem-no não como músico, mas como autor de de algumas dos mais imortais dos standards do Jazz: I Remember Clifford ou Whisper Not. Mas a história do saxofonista atravessa também ela a história do Jazz do pós-guerra, tornando-se um dos expoentes do bop e do hard bop. Com Dizzy Gillespie, Tadd Dameron, Clifford Brown, Art Blakey ou Roland Kirk atravessou os anos 50 e 70. Com o passar dos anos o saxofone tenor de Golson foi-se tornando mais rude e denso, perdendo alguma maleabilidade que o distinguia, mas oferecendo-lhe profundidade e emoção. Sem nunca ter deixado de tocar e gravar, Golson mantém-se eficaz nas baladas e no funky que o celebrizou. No sexteto que reuniu conta com outros nomes seguros como Eddie Henderson no trompete e Carl Allen na bateria. De notar que o grupo tem dois trompetistas. Promete-se uma noite de Jazz inequívoco, com swing a rodos.
Antes disso toca na Sexta a coqueluche do festival: a Orquestra AngraJazz. Contou Claus Nymark num dos textos de apresentação do CD da orquestra (ver texto abaixo »A Orquestra Improvável») que Sheila Jordan se espantou com a existência de uma orquestra de Jazz num tão recôndito e improvável lugar como a ilha Terceira, e com o seu nível. A improbabilidade da sua existência espanta ainda mais todos quantos à ilha se deslocam, pela alegria e intensidade que ela comunica. A orquestra é dirigida por Nymark e Pedro Moreira que se deslocam regularmente à ilha, que este ano contará ainda com a presença do aclamado Afonso Pais.

Quinta 4
O festival abre na Quinta-Feira 3 com o quinteto de Laurent Filipe. É provável que Laurent vá tocar a música de Chet Baker onde se vem especializando. Em 2006, Laurent gravou um (excelente) disco com o nome Ode To Chet. Chet Baker é um dos mais populares músicos de Jazz de sempre e Laurent explora a sua dupla personalidade de trompetista-cantor. Todo o grupo toca com grande eficácia e Laurent é convincente no seu papel.
Mais à noite teremos outra voz, esta ainda quase nada conhecida do público nacional, Roberta Gambarini.
Nascida em Turim, em Italia, ouviu Jazz toda a sua juventude. Depois de rodar por alguns clubes de Jazz de Italia, Roberta decidiu estudar nos Estados Unidos. Desde então, a sua esplêndida voz de alto tem convencido inúmeros músicos como Hank Jones, o desaparecido Michael Brecker, James Moody, Ron Carter, Herbie Hancock, Slide Hampton ou Roy Hargrove. Apesar disso a oportunidade de gravar só surgiu no ano passado quando ela já era uma espécie de cantora de culto, um segredo dos jazz-fans.
O disco de apresentação revela uma voz madura com matizes de Ella Fitzgerald, perfeita como Sarah Vaughan. Gambarini tem uma colocação de voz irrepreensível, tem swing e conhecimento da tradição. Easy To Love que presumivelmente irá tocar em Angra percorre catorze standards do Jazz entre os quais um tocante I Loves You Porgy ou um rápido On The Sunny Side Of The Street, a atestar a sua versatilidade e eloquência. Com ela vai estar uma banda de luxo com o inventivo e subtil Kirk Lightsey à cabeça, aliás, ao piano; Reggie Johnson, um contrabaixista capaz de acompanhar com a mesmo destreza Sonny Rollins, Sun Ra ou Gambarini e Alvin Queen, um baterista igualmente eficaz, à-vontade na marcação dos tempos ao lado de uma cantora ou numa orquestra.

25 Set 2007

Qui 4-Out Angra do Heroísmo Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo 21.30 Angra Jazz

Laurent Filipe Quinteto - LF (t, voz), Bruno Santos (g), Filipe Melo (p), João Custódio (ctb), Paulo Bandeira (bat)

Angra do Heroísmo 23.30 Angra Jazz Roberta Gambarini Quarteto - RG (voz), Kirk Lightsey (p), Reggie Johnson (ctb), Alvin Queen (bat)
Sex 5-Out Angra do Heroísmo 21.30 Angra Jazz Orquestra Angra Jazz c/ Afonso Pais - Pedro Moreira (dir), Claus Nymark (dir), Afonso Pais (g), Luis Sousa (sa), Rui Borba (sa), Rui Melo (st), Davide Corvelo (st), Mónica Goulart (sb), Paulo Almeida (cl), Márcio Cota (t), Paulo Borges (t), Tony Barcelos (t), Bráulio Brito (t), Manuel Almeida (trb), Paulo Aguiar (trb), Evandro Machado (trb), Adriano Ormonde (trb), Antero Ávila (tub), Paulo Cunha (g), Eduardo Ornelas (ctb), Nuno Pinheiro (bat)
Angra do Heroísmo 23.30 Angra Jazz Benny Golson Sexteto - BG (s), Eddie Henderson (t), Philip Harper (t), Mike LeDonne (p), Reggie Johnson (ctb), Carl Allen (bat)
Sáb 6-Out Angra do Heroísmo 21.30 Angra Jazz Jim Hall Trio - JH (g), Geoffrey Keezer (p), Scott Colley (ctb)
Angra do Heroísmo 23.30 Angra Jazz

Monk's Casino - Alexander von Schlippenbach (p), Jan Roder (ctb), Uli Jenessen (bat), Axel Doerner (t), Rudi Mahall (cl-b)

www.angrajazz.com/