Home

 

Fotos por Jorge Monjardino

2008

Coube ao quinteto de Tom Harrell a honra de abrir as portas do X Angra Jazz. Harrell é um trompetista educado na exigente escola do bop, que tocou nos anos 70 com Phil Woods, Horace Silver, Woody Herman ou George Russell. Ao longo dos últimos 40 anos ele desenvolveu uma forma de bop culto, rigoroso e sofisticado. O sólido grupo que o acompanhou esteve à altura do líder, com destaque para a jovem estrela Wayne Escoffery no saxofone tenor e Ugonna Okegwo no contrabaixo, com quem o trompetista realizou um dos momentos mais bonitos da noite; uma interpretação sublime de Body And Soul.

O segundo concerto da noite esteve por conta da Orquestra Angra Jazz, projecto acarinhado desde a primeira hora pela Associação Angra Jazz. O convidado deste ano foi o baterista Mário Barreiros, mas na celebração dos dez anos do festival, a organização decidiu estender o convite aos convidados dos anos anteriores, Mário Laginha, Paula Oliveira, Zé Eduardo e Afonso Pais, além dos directores Pedro Moreira e Claus Nymark. Alguns temas novos e solos de alguns dos membros da orquestra foram a novidade deste ano. A noite acabou de forma agradável, com todos os convidados em palco.
São conhecidas as dificuldades da orquestra que paga caro a insularidade, e desse ponto de vista não é possível exigir-se mais à orquestra. Isolada a 1500 Km dos músicos de Jazz mais próximos, com contactos apenas mensais com os directores, o colectivo faz realmente milagres. Mas ela tem realmente tudo contra ela, e creio que nestas condições é natural que a partir de agora a evolução seja lenta. Com o diagnóstico completo, a solução seria óbvia: é necessário pôr os músicos a tocar com outros músicos e a trabalhar com outros professores (se possível até estrangeiros), em regime de tempo inteiro.
E já que Maomé não vai à montanha… Não será fácil porque a orquestra é constituída em grande medida por músicos não profissionais e porque as deslocações e outras despesas associadas não são irrelevantes, mas uma primeira solução será começar a trabalhar no sentido de organizar workshops de duas ou pelo menos uma semana, duas ou três num ano, organizado pela escola do Hot ou outra, onde os músicos, todos de uma vez ou rodando, possam tocar nas condições que referi: trocar experiências e trabalhar intensivamente com outros professores e músicos. É uma aposta cara e eu estou a falar sem saber números e se realmente será possível. Mas é necessário.

O Sexteto de Mário Barreiros abriu a noite de sexta-feira com um Jazz possante e escorreito. De entre os solistas destacou-se talvez Mário Santos, mas todos os membros da banda demonstraram um bom nível. Este é um colectivo experiente, como combo ou ao nível individual, fazendo dele um dos melhores grupos de jazz nacional.

Com o ambiente preparado, abria-se o palco para o melhor do festival na pessoa do grupo de Bennie Wallace numa homenagem a Coleman Hawkins consagrada no CD Disorder At The Border.
Bennie Wallace é um verdadeiro monstro do saxofone, realmente digno da herança de Hawkins. Poderoso, sensual, vibrante, ele foi mais que convincente à frente de um noneto de notáveis onde se destacou o irreverente Ray Anderson e a luminosidade do sax alto do veterano Jerry Dodgion. Nota menos positiva para a amplificação dos sopros que já havíamos notado no dia anterior e que seria algo corrigida no sábado.
O alinhamento percorreu todos os temas do disco, acrescido de uma deliciosa versão do clássico de Duke Ellington, Caravan. Momentos altos foram ainda a interpretação de Honeysuckle Rose e ainda de La Rosita, antecedida da história de como Bennie Wallace e Ray Anderson conheceram o tema em Portugal, interpretado por Hawkins e Ben Webster, no aniversário do programa de rádio AbandaJazz, em 1981.

Sábado principiou com o trio de Bobo Stenson, conhecido por muitos como «o pianista de Charles Lloyd». Mas o pianista sueco é bem mais que um simples sideman (mesmo se ser sideman é uma arte). E ele é realmente um líder e compositor. O seu mais famoso trio diferiu da composição que se apresentou em Angra no baterista, que já foi Jon Christensen ou Paul Motian, e que agora é o jovem Jon Falt, enquanto que no contrabaixo permanece o amigo de longa data Anders Jormin.
Stenson possui um estilo verdadeiramente luminoso (não sei porquê veio-me à cabeça António Pinho Vargas), mesmo se por definição o trio de piano tende a ser intimista. Ele possui algo da densidade de Keith Jarrett, que já foi há muitos anos a sua influência principal (mas Jarrett foi a influência principal de quase todos os pianistas), e será óbvio que a sua formação é clássica e não bop. Ainda assim, ele é um sólido pianista de Jazz, como o demonstrou (se necessário fosse) em Angra. Enquanto Jormin esteve igual a si próprio, irrepreensível, permito-me questionar algumas opções «pop» da bateria, mais dadas ao espectáculo, muito na linha do que faz Magnus Öström, o baterista do malogrado Esbjorn Svensson. Mas a verdade é que anda toda a gente a fazer o mesmo…
Enfim, apesar da minha observação, este foi também um dos grandes momentos do festival.

A música de William Parker, que tocou no fim da noite de sábado, possui qualquer coisa da festa dos Art Ensemble of Chicago, como também de Sun Ra nos apelos à energia cósmica da cantora Leena Conquest; mas creio que acima de todos eles esteve sempre a personalidade avassaladora de Charles Mingus, no som denso do contrabaixo em jeito de bússola, e no dramatismo das peças. Não foi free jazz o que Parker tocou; ele parece retomar a forma do que foi a New Thing dos anos 60, bem ancorado na tradição e sem grandes devaneios vanguardistas. Para o espectáculo, Parker conta com a cantora bailarina Leena Conquest, cuja voz grave e bem modulada me parece inspirar-se mais na soul music que na tradição Jazz, embora isso não seja necessariamente defeito… Como bailarina no entanto, ele esgotou-se ao fim do primeiro tema, tendo-se repetido algo excessivamente. Curiosamente, o repertório é constituído por verdadeiras canções, à medida da voz de Conquest.
Bom concerto com nota alta para as prestações de Rob Brown e Hamid Drake.

O festival encerrou com o concerto do vencedor de um Grammy em 2007, Herbie Hancock. Herbie Hancock é uma verdadeira estrela pop, um músico bastante popular entre ouvintes de vários géneros. Ele esteve este ano em Portugal em vários concertos a apresentar o disco de homenagem a Joni Mitchel (Rivers) (com que ganhou o Grammy), bastante próximo do cool Jazz; obviamente muito bem feito e agradável, ou não fosse ele Herbie Hancock.
A formação que esteve no Angra Jazz foi no entanto diferente, bastante mais jazzy, com Terence Blanchard no trompete e James Genus no contrabaixo, para além do incontornável Lionel Loueke na guitarra, a harmónica de Gregoire Maret e Kendrick Scott na bateria. A parafernália no palco não enganava, anunciando um concerto eléctrico, e foi isso mesmo que aconteceu: entre os temas popularizados pelos Headhunters, alguns clássicos «travestidos» e alguns outros mais modernos à medida do guitarrista do Benin, o espectáculo rolou sem quaisquer engulhos. Herbie Hancock é um bom comunicador e demonstrou como a velha raposa ainda reina. Depois de um tema inicial dos Headhunters, o pianista atacou Speak Like a Child com um arranjo milesiano do tipo Pharaoh’s Dance, para passar a um tema mais Weather Report onde não faltou a voz sintetizada, depois um solo excessivo (mas esse é o privilégio dos virtuosos) de Lionel Loueke, em Seventeens, seguido de um solo de piano acústico por ele próprio e de novo o regresso aos Headhunters. Apreciei em especial os solos de Terence Blanchard, de Maret e de Genus, mas esta é uma banda superlativa e o público obrigou o sexteto a regressar ao palco para um encore.

A jornalista da RDP Açores Elsa Soares perguntou-me qual tinha sido na minha opinião a evolução do Angra Jazz ao longo destes dez anos. Nenhuma, respondi-lhe; o Angra Jazz é desde a primeira edição um dos melhores festivais nacionais, com uma programação equilibrada e ecléctica, entre a tradição e o Jazz moderno, aliando a qualidade e o espectáculo. A décima edição do Angra Jazz foi nesse sentido exemplar.

8 de Outubro de 2008

(JazzLogical esteve em Angra do Heroísmo a convite do Angra Jazz)

 

Qui 2-Out
Angra do Heroísmo
Centro Cultural e de Congressos
21.30
Angra Jazz 2008
Tom Harrell Quinteto
TH (t, flis), Wayne Escoffery (st), Danny Grissett (p), Ugonna Okegwo (ctb), Johnathan Blake (bat)
Orquestra Angrajazz com Mário Barreiros
Luis Sousa (sa), Rui Borba (sa), Rui Melo (st), Davide Corvelo (st), Tomás Leal (sb), Paulo Almeida (cl), Márcio Cota (t), Paulo Borges (t), Tony Barcelos (t), Bráulio Brito (t), Manuel Almeida (trb), Paulo Aguiar (trb), Evandro Machado (trb), Adriano Ormonde (trb), Antero Ávila (tu), Paulo Cunha (g), Eduardo Ornelas (ctb), Nuno Pinheiro (bat), Pedro Moreira (dir), Claus Nymark (dir) + Paula Oliveira (voz), Mário Laginha (p), Zé Eduardo (ctb), Afonso Pais (g), Mário Barreiros (bat)
Sex 3-Out
21.30
Sexteto de Mário Barreiros
MB (bat), Pedro Guedes (p), Pedro Barreiros (ctb), Mário Santos (st, cl-b), José Luis Rego (sa, ss), José Pedro Coelho (st)
Benny Wallace’s “Disorder At The Border”
BW (st), Jesse Davis (sa), Jerry Dodgion (sa), Adam Schroeder (sb), Ray Anderson (trb), Joe Magnarelli (t), Donald Veja (p), Bill Huntington (ctb), Quincy Davis (bat)
Sáb 4 Out
21.30
Bobo Stenson Trio
BS (p), Anders Jormin (ctb), Jon Fält (bat)
William Parker’s “Raining On The Moon”
WP (ctb), Leena Conquest (voz, dança), Lewis Barnes (t), Rob Brown (sa), Eri Yamamoto (p), Hamid Drake (bat)
Dom 5-Out
21.30
Herbie Hancock Sexteto
Herbie Hancock (p), Terence Blanchard (t), James Genus (ctb), Lionel Loueke (g), Gregoire Maret (harm), Kendrick Scott (bat)

 

Dez anos é muito tempo...

A décima edição do Angra Jazz começa já na quinta 2 com o quarteto de Tom Harrell, um sofisticado bopper trompetista cujas formas combinam uma espécie de bop evoluído com um imaginoso e sofisticado melodismo. Tom Harrell é uma figura impar no Jazz: a esquizofrenia que lhe é atribuída revela-se no individualismo e na criatividade das suas intervenções. À frente de uma banda de primeira água Tom Harrell promete inaugurar da melhor forma o festival.
Essa mesma primeira noite completa-se com a coqueluche do festival: a Orquestra Angra Jazz que este ano tem como convidado especial Mário Barreiros. Mas não só porque a acompanhar a «improvável orquestra» também lá estarão no palco Mário Laginha, Pedro Moreira, Claus Nymark, Paula Oliveira, Zé Eduardo e Afonso Pais, que nos últimos anos foram os convidados de honra da orquestra.
A noite de sexta inicia-se com toda a energia do Jazz inequívoco do sexteto de Mário Barreiros e completa-se com um verdadeiro monstro do saxofone que é Bennie Wallace.
Bennie Wallace leva a Angra a música do disco de homenagem a um dos grandes saxofonistas da história do Jazz que foi Coleman Hawkins, e que marca o seu regresso aos lugares cimeiros da cena internacional. «Disorder At The Border», que será apresentado em Angra em noneto, numa formação próxima do original, e que conta com músicos tão extraordinários quanto Ray Anderson, seu amigo de longa data, ou ainda Jesse Davis ou Joe Magnarelli. Um grande concerto em perspectiva.
A noite de sábado abre com o Jazz sofisticado do trio de Bobo Stenson. Bastaria talvez dizer que ele foi durante largos anos o pianista de Jan Garbarek e Charles Lloyd para ilustrar a sua estatura, mas Stenson é também um autor e um líder digno desse estatuto, e desde há muito uma das grandes referências da etiqueta ECM.
O sábado termina com o Jazz de alto risco do sexteto de William Parker. “Raining On The Moon” é o sugestivo nome do projecto que irá apresentar, e que conta na formação com radicais como Rob Brown e Hamid Drake e ainda a cantora/bailarina Leena Conquest. Free Jazz erudito, Jazz progressivo, algures para lá dos Art Ensemble of Chicago e Sun Ra, música para os ouvidos e os olhos.
Dez anos é muito tempo e o Angra Jazz não deixa os seus créditos em mãos alheias: o novo Herbie Hancock Sexteto, com Terence Blanchard no trompete é grupo que encerra o festival deste ano. Depois do desvio pop de «River», este pode ser o regresso ao grande Jazz da velha raposa. Assim o esperamos. No domingo.

 

1 de Outubro de 2008