Home

2009

A diversidade no Jazz (e em Angra do Heroísmo)

Bastante de acordo com a linha de força do discurso do jornalista e crítico do Jazz Magazine Thierry Quenun que observava que a característica principal do Jazz contemporâneo é a diversidade, eu creio (apesar de nem sempre de acordo com as suas observações) que a palavra que melhor define a edição 2009 do Angra Jazz seja exactamente «diversidade». É verdade que o Angra Jazz tem procurado desde sempre a diversidade, mas este terá sido o melhor exemplo dessa realidade: seis concertos, seis propostas estéticas tão diferentes que observadas por outra perspectiva, melhor se diriam adversas. Em primeiro lugar uma orquestra portuguesa (e insular) que pratica o Jazz mais tradicional e conservador e pró-americano do que foi possível observar. Em segundo uma cantora americana – Jane Monheit – numa fuga acelerada para fora do Jazz, num movimento há muito sugerido por muitas cantoras (e cantores) que oferecem a técnica e maneirismos jazzy ao canto pop ligeiro. Num outro patamar, um grande pianista – Mário Laginha –, que cruza o lirismo e a vertigem de Bach, a música popular (um pouco de Brasil também) e o fascínio por Keith Jarrett. Chano Dominguez, outro grande pianista, andaluz, que introduz num discurso tipicamente jazzístico elementos estranhos do folclore flamenco. Henri Texier, contrabaixista gaulês que – na tradição do Jazz comprometido de Charles Mingus – leva a política ao Jazz, sob uma forma de composições pouco ortodoxas (de Jazz falando) que transportam consigo a virulência do free jazz, mas também os olores das mais insuspeitas paisagens de um mundo globalizado. E finalmente Charles Lloyd, um dos últimos moicanos do saxofone, um verdadeiro guerreiro que vai beber a sua inspiração à derradeira fase mística de Coltrane; um músico ímpar na entrega, intenso e emocionante.
De diversidade falando, estaremos conversados; mas o Angra Jazz 2009 mereceu a observação pela criteriosa selecção, mesmo se nem tudo corre sempre pelo melhor.
O momento menos interessante foi protagonizado, como antecipei, pela voz de Jane Monheit. Não que ela cante mal; bem pelo contrário. Mas o repertório trânsfuga, o aligeiramento das formas e alguns tiques raiando o piroso realmente incomodaram com frequência estes olhos e ouvidos. Acredito que numa audiência mais intimista a cantora opte por uma temática mais jazzy, mas resta saber se não esqueceu.
É sempre um prazer regressar à menina dos olhos do festival, a Orquestra Angra Jazz. O solista convidado deste ano, Hugo Alves, integrou-se à perfeição no tutti instrumental, e alguns dos arranjos preparados, muito em especial logo o primeiro, o clássico Freddie Freeloader, foi executado de forma particularmente conseguida.
Já toda a gente referiu os problemas da insularidade da orquestra; mas deverá ser questionado se não será altura de repensar o modelo que vem sendo sustentado, já que apesar do seu razoável nível, ela não parece evoluir substancialmente (e tudo o que não evolui tem tendência a estagnar, dizem). Apesar da evolução, falta à orquestra uma secção rítmica condutora, faltam solistas e falta alguma dinâmica que apenas o confronto quotidiano com outros músicos e outros conceitos estéticos podem resolver. O reportório excessivamente bop não ajuda.
Escrevi no ano passado e gostaria de me repetir: «Com o diagnóstico completo, a solução seria óbvia: é necessário pôr os músicos a tocar com outros músicos e a trabalhar com outros professores (se possível até estrangeiros), em regime de tempo inteiro.
E já que Maomé não vai à montanha… Não será fácil porque a orquestra é constituída em grande medida por músicos não profissionais e porque as deslocações e outras despesas associadas não são irrelevantes, mas uma primeira solução será começar a trabalhar no sentido de organizar workshops de duas ou pelo menos uma semana, duas ou três num ano, organizado pela escola do Hot ou outra, onde os músicos, todos de uma vez ou rodando, possam tocar nas condições que referi: trocar experiências e trabalhar intensivamente com outros professores e músicos. É uma aposta cara e eu estou a falar sem saber números e se realmente será possível. Mas é necessário.».
Melhor correu como era esperado o concerto de Mário Laginha. Laginha tem desde há muito a minha admiração e o trio que dirige é uma máquina imparável, mas a formação que Laginha levou a Angra estava acrescida da guitarra de Sérgio Pelágio. Não haverá nenhum reparo à guitarra; apenas que ela me pareceu com frequência redundante: os arranjos estão feitos para o trio de piano-baixo-bateria e a guitarra pareceu com frequência sobrar. Laginha cresceu muito desde há dez anos e a sua música não parece admitir um outro instrumento harmónico, a não ser que ele se reinvente. A forma muito Jim Hall de Pelágio não me parece a adequada.
Chano Dominguez esteve excelente. A singularidade de Chano (mais uma vez parecendo confirmar a teoria de Quenun que afirma a riqueza e a diversidade do Jazz europeu a partir da procura das origens folclóricas remotas dos músicos) advém da integração feliz do flamenco no Jazz. A bateria sem bombo nem tímbalos substituídos pelo cajón explicitava a fonte, mas o discurso fluente e sincopado do pianista andaluz é verdadeiramente jazzístico. Chano realmente não inventou nada; é conhecida a atracção de Miles, por exemplo, pelo flamenco. Chano Dominguez apenas vem explorando com felicidade e engenho a fórmula.
Quase não se notou a ausência do trombonista no Strada Sextet transformado em quinteto de Henri Texier. Sob a batuta do veterano contrabaixo, o grupo confirmou-se como um dos mais poderosos e estáveis grupos da Europa. As raízes do Jazz de Texier reportam ao free jazz e ao hardbop dos anos 60 e 70, mas também à tradição clássica europeia, aos folclores do mundo e à pop anglo-saxónica. O reportório do concerto incluiu alguns temas antigos de (V)ivre, alguns do novo CD Alerte à l'eau e alguns originais. Talvez menos provocador e politizado que em digressão anterior a que assisti, ainda assim a música do Strada é volumosa e intensa, e assim foi também em Angra.
Sem surpresas Charles Lloyd fez o melhor concerto do festival; ele que já tinha feito também o melhor disco de 2008, com esta formação, com a única substituição do baterista de Eric Harland por Nasheet Waits.
O som de Charles Lloyd é verdadeiramente caloroso e expressivo. Não sendo propriamente um original, ele soube matizar um saxofonismo que era o mainstream dos anos 70 com motivos folclóricos que sugerem um desejo de oriente e que se revela com mais clareza na utilização da flauta e do tarogato. Nos últimos anos, como foi evidente em Angra, a música de Charles Lloyd revela enfim a sua verdadeira influência, e que não é outra que o saxofone derradeiro espiritual e místico de John Coltrane. Por detrás do som enorme está uma figura frágil e sensível, que parece revelar-se cada vez mais. Essa sensibilidade fá-lo chorar em palco pela partida do amigo Billy Higgins, mas revela-se também na forma como reage aos aplausos do público e que o fez tocar duas horas seguidas em Angra. A música de Charles Lloyd toca-nos como poucos são capazes. Ao lado dele estiveram três grandes músicos: um Jason Moran que é tudo menos um mero sideman e que revela toda a sua grandeza de igual forma na subtileza das intrusões ou nos solos; um jovem Reuben Rogers que parece crescer todos os dias, absolutamente irrepreensível; e Nasheet Waits que é só um dos grandes bateristas da actualidade.
Um última palavra para a conferência de Thierry Quenun: já referi estar de acordo com o crítico quanto à característica principal do Jazz contemporâneo: a diversidade, que alguns outros melhor denominam talvez de fragmentação estética, e que advém da própria natureza do Jazz que o faz absorver características, sinaléticas e linguagens de outras correntes musicais; tornando mesmo qualquer definição de Jazz transitória. Mas Quenun que bem observa que o Jazz se soube apropriar das referências estéticas de outras culturas, sugwer que o centro da «vanguarda» do Jazz se terá mudado para a Europa, a partir da maior diversidade cultural europeia. Pondo de lado a hipótese da arrogância gaulesa que se gosta de colocar no centro do Universo, e reconhecendo que essa arrogância existe de igual forma do outro lado do Atlântico onde os velhos boppers se intitulam os donos do Jazz; eu creio que o discurso de Quenun revela uma parcial observação dos factos, já que ignora por exemplo as correntes revivalistas que recuperam para o Jazz valores considerados acabados, mas que persistem em oferecer ao Jazz a emoção e a criatividade que a anopsia intelectual gosta de ignorar. Que se revela na colaboração entre músicos mainstream e vanguardistas, mas por vezes também entre músicos clássicos e pop que a crítica pura e simplesmente desconhece; e também os movimentos centrífugos e centrípetos que o Jazz gera desde os primórdios. Prova da vitalidade do Jazz é igualmente o bop evoluído de Miguel Zénon, os desvios country de Bill Frisell, a interpretação de Monk pelo Kronos Quartet, o Jazz pop dos nórdicos EST e o Jazz pop dos The Bad Plus, os inúmeros projectos de Dave Douglas, o poderoso saxofone de Donny McCaslin e o Jazz clássico de Uri Caine, a erudição de John Taylor e Maria Schneider, John Hollenbeck, Joe Lovano, Bill Carrothers, e claro o Jazz sublime e emotivo de Charles Lloyd, a par do flamenco de Chano Dominguez, o bop da Orquestra Angra Jazz, o lirismo de Mário Laginha, o poderoso Jazz europeu de Henri Texier e enfim também o Jazz que já esteve na voz de Jane Monheit. O Jazz é uma música em movimento e a diversidade que é sua característica é também a sua força. O centro? O Jazz não tem centro.
Uma organização irrepreensível, uma feira do disco, uma conferência, a gravação do concerto pela televisão e a reportagem em directo pela RDP, e ainda a presença da imprensa, contribuíram para fazer do 11.º Angra Jazz um dos melhores de sempre; mas confirmou-se uma outra vez como um dos grandes festivais nacionais.
21 Outubro 2009

(JazzLogical esteve em Angra do Heroísmo a convite do Angra Jazz)

Sex 2-Out
Angra do Heroísmo
Centro Cultural e de Congressos
21.30
Angra Jazz
Orquestra Angra Jazz + Hugo Alves
Pedro Moreira (dir), Klaus Nymark (dir), Hugo Alves (t), Luis Sousa (sa), Rui Borba (sa), Rui Melo (st), Davide Corvelo (st), Francisco Leal (sb), José Pires (cl), Márcio Cota (t), Paulo Borges (t), Anthony Barcelos (t), Bráulio Brito (t), Roberto Rosa (t), Manuel Almeida (trb), Paulo Aguiar (trb), Evandro Machado (trb), Nuno Mendonça (trb), Antero Ávila (tu), Paulo Cunha (g), Eduardo Ornelas (ctb), Nuno Pinheiro (bat),
Jane Monheit Qrt
Jane Monheit (voz), Michael Kanan (p), Neal Miner (ctb), Rixck Montalbano (bat)
Sáb 3-Out
Mário Laginha Qrt
Mário Laginha (p), Sérgio Pelágio (g), Bernardo Moreira (ctb), Alexandre Frazão (bat)
Henri Texier Strada Quintet
Henri Texier (ctb), Sébastien Texier (sa, cla, cl), Manu Codjia (g), François Corneloup (ss, sb), Christophe Marguet (bat)
Dom 4-Out
Chano Dominguez Trio
Chano Dominguez (p), Mario Rossi (ctb), Israel Suarez (bat)
Charles Lloyd Qrt (c/ Jason Moran)
Charles Lloyd (s, tarogato), Jason Moran (p), Reuben Rogers (ctb), Nasheet Waits (bat)

 

A décima primeira edição do Angra Jazz principia com a prata da casa, quer dizer, a Orquestra Angra Jazz, que este ano tem como convidado Hugo Alves, um homem habituado a escrever, e a dirigir, (para) grandes formações, ele que é o mentor da activa Orquestra de Jazz de Lagos.
E a terminar a noite de 2 de Outubro teremos a elegante e sensual voz de Jane Monheit.
O segundo dia começa bem, logo a partir do Quarteto de Mário Laginha que conta com a guitarra de Sérgio Pelágio, além dos insubtituíveis contrabaixo e bateria de Bernardo Moreira e Alexandre Frazão; recuperando um quarteto que não se reunia há dez anos. Por muitos o melhor pianista português, Laginha deverá apresentar em Angra «material novo».
Mas a noite promete ainda emoções fortes com a apresentação do Henri Texier Strada Sextet. Henri Texier é um dos mais sólidos músicos de Jazz europeus, contrabaixista, compositor e líder desde há mais de quarenta anos. As raízes do Jazz de Texier remontam ao hard bop, pois claro, mas cruzam com o free jazz que acompanhou de perto e ainda uma miríade de influências que vão da tradição clássica europeia ao rock e às músicas folclóricas, mas também à política. Nos últimos anos tem sido notada a crescente presença de motivos exóticos, «orientais», na música de Henri Texier.
O Strada Sextet que já roda há perto de uma década fez-se notar como um «pianoless combo»: dois saxofones, trombone, guitarra, contrabaixo e bateria. O Strada, que vi tocar em 2006 em Portalegre, pratica uma música voluptuosa e irresistivelmente modernista. O Strada é composto de seis irredutíveis gauleses, ou melhor cinco gauleses e um búlgaro (o trombonista Gueorgui Kornazov). O concerto que o Henri Texier Strada Sextet fez em Portalegre foi considerado pela crítica nacional reunida em JazzLogical o melhor concerto (ex aequo com Keith Jarrett no CCB) de Jazz de 2006.
O elevado nível do festival prossegue até ao fim com o concerto do trio de Chano Dominguez. Chano Dominguez é um virtuoso e um singular pianista andaluz com um discurso que cruza a vertigem bop com o peculiar stride de Thelonious Monk e o flamenco. Aqui tão perto, não se percebe porque é que Chano Dominguez não é mais ouvido em Portugal. Angra do Heroísmo parece querer corrigir esse erro.
Pouco haverá a dizer de Charles Lloyd que não tenha já sido dito; ele que é um dos últimos guerreiros do Jazz, que viu passar ante si várias gerações de músicos, que viveu intensamente os últimos 50 anos do Jazz, e que tudo isso transmite, por vezes de forma sofrida, no seu «saxofonismo». Este quarteto que irá tocar no Angra Jazz é composto dos melhores músicos do mundo: Charles Lloyd, Jason Moran, Reuben Rogers e Nasheet Waits; e é o mesmo que fez Rabo de Nube, o disco que a crítica nacional e JazzLogical considerou o melhor CD de 2008.
Inequivocamente o 11.º Angra Jazz promete ser um dos melhores de sempre.
12 de Setembro de 2009