Home

 

 

 

 

... coincidências

 

 

Deixem-me contar uma história, para este meu site não ser sempre um aborrecimento. É uma história verdadeira, aconteceu comigo, tem amizade, Jazz e coincidências e apetece-me contá-la. Tem um preâmbulo.

Tenho um amigo, digamos que se chama Pedro, que vive na Catalunha. Pois o Pedro, ao fim de vinte anos de uma promissora carreira nos impostos, conheceu uma catalã, apaixonou-se, desempregou-se e foi atrás dela prá Catalunha.

Algumas línguas viperinas dirão que a história ilustra bastante a atracção que a instituição tributária nacional pode exercer sobre os seus quadros, mas eu prefiro dizer que foi a força do amor que levou o Pedro. A verdade é que o meu grande amigo Pedro deixou os impostos e foi trabalhar para uma gasolineira numa aldeola do interior da Catalunha, não muito longe da fronteira já, a uns trinta kms de Girona e outros tantos da terra do Salvador Dali. A aldeia onde vive terá, no seu núcleo urbano, uns mil habitantes.

Enfim, poderia ficar aqui a falar sobre a minha amizade com o Pedro, ou sobre as suas qualidade e defeitos, mas para a história interessa que o conheci bem, e que a amizade perdurou sobre a distância. A nossa amizade já tem décadas, e foi sendo alimentada pelas visitas anuais do Pedro e pelo humor fácil das larachas via email.
Pois um dia meti-me a caminho e fui com outro amigo, digamos que o Zé, ter com o Pedro à Catalunha. Avião para Barcelona, comboio até Girona e o Pedro foi-nos buscar.

Dias divertidos. O Pedro faz sempre questão de nos passear, conhecemos os arredores, fomos a Figueres, e passámos muitas tardes na palheta, no pequeno terraço de sua casa, com a mulher do Pedro e alguns amigos. Comíamos por norma em casa do Pedro, ou ocasionalmente num tasco para conhecermos uma das iguarias locais, o arroz negro, os calçots, as sépias e o tamboril com mexilhões, as botifarras e outras.

Pois um dia, a história começa verdadeiramente aqui, fomos comer ao restaurante da aldeia que, talvez por se situar numa encruzilhada de estradas, costuma ser frequentada ao almoço. É um restaurante sem história, mas ao que percebi, o Pedro não costuma lá comer e nós nunca mais voltámos.

Pois antes ainda de começar a comer fui à casa de banho fazer as minhas necessidades e lavar as mãos. Estava eu virado de frente para o urinol, quando um cartaz me chamou a atenção: era um A3 coberto por uma placa plástica transparente, que me pareceu lá estar há algum tempo. O cartaz constava de um desenho estilizado de um saxofonista e uma extensa legenda de que não entendi patavina, para além de dois nomes que me chamaram a atenção: Joshua Redman e Charles McPherson. O outro urinol tinha um cartaz semelhante, mas nenhum nome conhecido.

Achei graça e chamei os meus amigos e o Pedro traduziu: o cartaz anunciava um concerto na praia de l’Estartit, algures na Costa Brava, mas não tinha referência ao ano em que tinha ocorrido embora, curiosamente, o dia do mês de Julho fosse o dia seguinte. Mas claramente a placa que cobria o cartaz já tinha anos.  

Ainda assim a curiosidade fez-nos pesquisar na internet e para nosso espanto o Pedro descobriu que Redman e McPherson iam tocar em l’Estartit no dia seguinte!

Era um pouco estranho, nem na aldeia do Pedro, nem nas localidades por onde passámos, nem em nenhum outro local para além da praia de L’Estartit encontrámos alguma referência aos concertos, mas lá fomos.

A praia de L’Estartit é uma baía que termina num promontório sobre uns rochedos. Nesse promontório foi montada uma estrutura metálica que suporta o palco e as bancadas onde se sentam uns duzentos. De um lado e do outro está o chape-chape do mar calmo do Mediterrâneo, bastante limpo, com uma iluminação que pode ser considerada pirosa, tipicamente praiana, com holofotes no mar escondidos por detrás das rochas. Enfim, a verdade é que funcionou muito bem como iluminação para o concerto. O primeiro concerto começou ainda antes do sol se pôr, com uma temperatura que não andou longe dos 30 graus.

Devo confessar que nem sabia que Charles McPherson era vivo, e não me recordo de o ter visto antes. McPherson fez-se notar como o vigoroso saxofonista da banda de Charlie Mingus, e talvez o tenha visto tocar em Cascais, nos anos 70. Mas eu era muito novo e tenho uma recordação longínqua do concerto de Charles Mingus, e não faço ideia de quem tocava na banda por essa altura. Pois não é que o senhor Charles Mcherson fazia 80 anos em 24 de Julho de 2019 e foi comemorá-los na Costa Brava?!  

Foi um bom concerto. McPherson é um bopper vigoroso e não esqueceu. Não conheço os competentes baterista e baixista, mas o pianista era o ilustre Bruce Barth, a noite correu muito bem e no final cantámos os parabéns ao decano saxofonista. E a minha memória acaba aqui. Não sou capaz de me recordar o que o quarteto tocou; apenas que foi um bom concerto, despretensioso e bem disposto.

A noite caía quando o segundo concerto começou. O quarteto de Joshua Redman era constituído por Ron Miles* no trompete, o contrabaixo de Scott Colley e a bateria de Dave King, numa homenagem a Dewey Redman**, pai de Joshua.
Diria que a formação é até algo estranha: Dave King é o baterista dos The Bad Plus, Scott Coley é um monstro do contrabaixo, muito rápido, e Ron Miles é um trompetista sensível, embora áspero e intrincado. A ligar estas quatro personalidades estava Joshua Redman a tocar a música do pai, como ele saxofonista, que conhece bem; mesmo se se diria que (como saxofonistas) navegam em paradigmas distintos.  
E depois de tudo um concerto inspirado, mesmo se duro. E recordo que acabou por oferecer ao público o groove que ele precisava. Mas para isso estavam lá Colley e King e foi muito fácil conquistar o público.

Enfim, a minha história acaba aqui; há um ano que não vejo o meu amigo Pedro e tenho saudades (que isto das amizades é preciso alimentar). Para a minha memória ficou a coincidência de, por ter ido à casa de banho de um restaurante de uma aldeia da Catalunha, ter assistido a dois inesperados e excelentes concertos de Jazz. (Não terá assim tanta graça, mas apeteceu-me partilhá-la convosco.)

L’Estartit nem me parece nome de terra, mas tem um festival que renasceu depois da pandemia e este ano tocaram lá Charles Lloyd com Jacob Bro, Emmet Cohen, Chucho Valdés & Arturo Sandoval, Artemis, Lakecia Benjamin, entre outros músicos de Espanha e Catalunha: que é que se quer mais da vida?
Não esqueçam, se forem à Costa Brava em Julho, procurem o festival de Jazz: Sea Jazz L’Estartit. E já agora, reparámos, o ayuntamiento da aldeola e o turismo da Costa Brava organizam mais concertos de Jazz, clássica, folk, e outras coisas, que as cidade de Lisboa ou do Porto juntas…

(* Ron Miles faleceria em 2022 com uma variante rara de leucemia, com 58 aos de idade.

(** Dewey Redman foi o companheiro de Ornette Coleman e tocou no primeiro Cascais Jazz de 1971 com Ornete, Charlie Haden e Ed Blackwell

(*** E já agora, saído das minhas memórias longínquas: a primeira vez que Joshua Redman tocou em Portugal ele era a jovem estrela do grupo de … Elvin Jones. Corriam os anos 90 e nessa extraordinária noite aconteceu no Coliseu dos Recreios um outro concerto, de um outro baterista: Jack DeJohnette!
Isso mesmo, extraordinário! Dois concertos de dois grandes bateristas na mesma noite - Elvin Jones e Jack DeJohnette - e, já agora, o grupo de DeJohnete estreava em Portugal o igualmente jovem Ravi Coltrane!    

 

LS