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Funchal Jazz 2019

 

No sexto ano da nova direcção, o Funchal Jazz teve em 2019 a sua programação mais dirigida para o grande público, como se tornou óbvio no alinhamento de dois cantores, Gregory Porter e Dianne Reeves. Dois nomes repetentes, também – Terence Blanchard e João Barradas -, dois casos bem sucedidos, como veremos, e ainda dois notados saxofonistas, Ben Wendell e a jovem Melissa Aldana.

Ben Wendell Seasons Band
O festival arrancou com a Ben Wendell Seasons Band.
Composta ao longo de quarto anos, a música de Seasons (CD de 2018) fez virar para si a atenção da crítica e do público. Longamente maturado, Seasons é o produto de experiências e colaborações, que contaram entre outros com Joshua Redman, Mark Turner, Eric Harland ou Ambrose Akinmusire, e onde se também incluem os membros da Seasons Band que estiveram no Funchal Jazz. A dúvida residia na possibilidade e capacidade de Gilad Hekselman, Aaron Parks, Matt Brewer e Kendrick Scott estarem à altura da interpretação de música tão personalizada.

Inteligentemente Ben Wendell terá reescrito uma boa parte das composições para aquela banda, e eles são todos músicos de excepção. Terá sido um outro Seasons o que ouvimos, mas ele foi desde o primeiro momento um grande concerto. Desde o primeiro momento que o som de Wendel me sugeriu um dos nomes maiores do saxofone dos anos oitenta, o portentoso Michael Brecker mas, como em tudo, é nos detalhes que as coisas se revelam, e a banda, quero dizer, tanto cada um como o todo (como deve ser assim sempre no Jazz), em pouco quase nos fez ignorar a marca de Brecker, numa música de grande modernidade e generosidade. Os meses desfilavam um após outros, as estações e os seus meses, e Wendel revelava algumas das suas inspirações, Aaron Parks ou Brewer ou outros motivos, estabelecendo pontes com os diferentes membros. Com a guitarra de Hekselman, em inusitados uníssonos que transformavam o som dos dois instrumentos e lhes estimulava os solos, com o piano ou o baixo, fazendo deslocar o tema de um para outro instrumento. E uma secção rítmica de luxo, irrequieta e engenhosa; Parks, Brewer e o mais que eficiente Kendrick Scott (a substituir Eric Harland).

Gregory Porter
Um dos «meus» problemas com as vozes, é que elas tendem a concentrar em si os holofotes, deixando pouco espaço para os músicos. Isso tornou-se ademais evidente com Gregory Porter, onde a banda nem sequer esteve ao nível do excepcional concerto de há dois anos, sendo que a ele acresce que não é um verdadeiro cantor de Jazz. Porter é um cantor soul, discípulo da grande tradição de cantores negros norte-americanos, e ele é um monstro no género. O que fez do concerto de há dois anos um grande concerto foi a banda e o Jazz. E quando se acrescenta Jazz num concerto, as hipóteses de correr bem crescem.

No concerto deste ano, o espaço foi reduzido. Ainda assim, e mesmo sem repertório novo, Porter ganhou com facilidade um público menos treinado (a ouvir Jazz) mercê dos seus extraordinários dotes vocais. Mesmo nos graves ele passa por cima do saxofone com uma facilidade que impressiona, e ele possui toda a generosidade da música soul, uma música de características populares, mas que ali começa e ali acaba.

Leio as minhas palavras e pergunto-me se não estou a ser excessivamente duro: afinal eu gostei do concerto e seria difícil não me deixar envolver na força e no encanto e na simpatia daquela música, a que apenas faltou… Jazz.

João Barradas
A segunda noite contemplou dois regressos, o primeiro dos quais João Barradas como emérito representante do Jazz nacional.

João Barradas é um jovem extraordinário improvisador, original na abordagem ao acordeão, um instrumento raro no Jazz, muito pelas suas características excessivamente melódicas. O que o virtuoso João Barradas tem feito é explorar o instrumento adoptando uma linguagem Jazz que lhe coarcta um pouco esse pendor melódico, ou através de sintetizadores que lhe permitem tirar o som de um órgão ou ainda utilizar noutros contextos o acordeão midi e electrónicas.  

Músico profícuo, ele tem experimentado várias possibilidades e formações, ora introduzindo um vibrafone, ora tocando com duas guitarras, um power trio com baixo e bateria, ora em quinteto com um saxofonista. O quinteto «internacional» que apresentou no Funchal contava com Simon Moullier no vibrafone, Luca Alemanno no contrabaixo, Naíma Acuña na bateria e, como convidado, o saxofonista Ben van Gelder. Como saxofonistas, Barradas já teve como convidados Greg Osby, com quem tocou neste mesmo palco em 2017 e, já este ano, e com a mesma formação, com Mark Turner. Mas devo dizer que, dos três, este, van Gelder, foi o que melhor compreendeu a música de Barradas e melhor se entrosou no grupo. Ele teve mesmo uma prestação excepcional no Funchal.

À frente de uma formação muito equilibrada e coesa, com frequência emulando um órgão no acordeão (que bom organista Barradas dará!), este foi um dos melhores concertos a que lhe assisti (melhor que no Funchal 2017), onde tudo correu bem. Quase quase a explodir para outro patamar, bons momentos improvisados e muito bons duos, entre acordeão e baixo, entre acordeão e vibrafone, uma bateria proficiente e um baixo indiscreto, um saxofone omnipresente e inspirado, um grande momento de Jazz no Funchal Jazz 2019.
     
A/B Squared: Terence Blanchard
Se no concerto de 2015 eu mostrei algumas reservas, foi com expectativa que eu aguardei pelo concerto de Terenche Blanchard, até pela homenagem declarada a Art Blakey, com quem o trompetista tocou, enquanto membro da porventura mais consistente escola de Jazz de sempre, nos anos 80, os Jazz Messengers.

Com dois baixistas, um eléctrico e um contrabaixo, alternando-se, o preito a Blakey ficou-se pelo meio, mas a força da música do grupo impôs-se, acabando por este ser o momento mais alto do festival.

A simples alternância do baixo fazia mudar a música, entre o Jazz mais acústico (Blakey) e o impulso funky que é muito de Blanchard (e que foi a sua opção em 2015), mas nas duas fórmulas o grupo esteve sempre muito alto, para o que contribuíram as prestações individuais dos músicos. Um dos principais responsáveis foi Jeff “Tain” Watts, um monstro da bateria, incansável, sempre empurrando a banda para a frente, e ela funcionou sempre como uma eficiente máquina, com um Jazz muito comunicativo, que obteve uma fácil adesão do público. Um a um, poderíamos ir citando os músicos ou as intervenções, mas a banda funciona de facto como um colectivo eficiente.

Poderíamos falar um pouco do Jazz-pop de Miles, de que Terence Blanchard parece reivindicar-se também mas, como em Miles, soberbamente construída. O impulsivo trompete de Blanchard, quase sempre com pedais ou sintetizado, competindo com a guitarra do inexpressivo Charles Altura (impressionante o rosto glacial de Altura projectado no enorme ecran ao fundo do palco, mesmo quando constrói os solos mais atordoadores) e o piano/ teclados do genial Gerald Clayton, o saxofone mais lírico de Jean Toussaint, os dois baixos nos seus distintos papéis, e a omnipresente bateria “Tain” Watts, um após o outro, dialogando ou competindo, construindo o todo, uma máquina de levar tudo à frente, arrasadora.

O final e o regresso de Art Blakey, e o primeiro encore do festival, após quase quatro horas de música.

Melissa Aldana Quartet
O terceiro dia do festival começou com uma boa surpresa. A tocar um instrumento raro numa mulher, o saxofone tenor, a chilena Melissa Aldana confirmou (depois da excelente Naima Acuña que acompanhou João Barradas na bateria no segundo dia) que não há instrumentos proibidos, e que elas podem competir lado a lado com os homens num género considerado “másculo”.

(Não gostaria que as minhas palavras fossem entendidas como uma qualquer forma de paternalismo ou condescendência. A verdade é que logo no final do concerto eu ouvi comentários como «falta de personalidade» ou «falta de originalidade», quando ninguém andou à procura de tais atributos nos outros músicos. Do que ninguém poderá falar é de quaisquer predicados femininos na forma como toca, sólida e suasiva.)

Melissa Aldana tocou música do CD de 2019 Visions, embora nenhum dos músicos que tocaram na gravação tivessem estado presentes no Funchal, e mesmo o pianista foi substituído por um guitarrista: Lage Lund. Visions é dedicado à memória da pintora e artista mexicana Frida Kahlo.

Com um som poderoso, muito duro, sem quaisquer referências folclóricas (como seria talvez de esperar da sua origem chilena) creio poderem observar-se no seu discurso notas de Joe Henderson e talvez de Wayne Shorter e Mark Turner. A ausência do pianista não prejudicou a saxofonista e alguns dos momentos mais altos do concerto estiveram nos seus diálogos com o guitarrista, o excelente Lage Lund; ele que também protagonizou um dos melhores solos.

Esperaria mais talvez de Kush Abadey, que nunca ultrapassou a competência, e diria que o concerto de Melissa Aldana foi prejudicado por três motivos: a banda, diferente do disco, como já referi; a curta duração do concerto, creio que menos de uma hora; e o alinhamento: tendo começado muito forte, ela deixou duas baladas para o fim, o clássico Polka Dots and Moonbeams e um original da saxofonista cujo nome não retive. 

Um bom concerto, a deixar água na boca. Espero assistir a um novo concerto de Aldana brevemente. Gostaria.


Dianne Reeves
Curiosamente muito se passou de semelhante ao de Porter, no concerto de Dianne Reeves, mas por outros motivos. Dianne Reeves é uma genuína cantora de Jazz, mas que se deixou levar há muito pelo show buziness. Ela mantém as características da tradição das cantoras Jazz, e em termos vocais as suas capacidades em nada ficam atrás de Gregory Porter. A facilidade com que ela sobe e desce escalas é verdadeiramente inacreditável, como talvez apenas Ella Fitzgerald. O «meu» problema (de novo) com Reeves é que ela fecha as composições numa forma canção que coarta as prestações dos restantes músicos. A excepção é quase apenas o guitarrista, o brasileiro Romero Lubambo, um virtuoso que toca tudo, entre a guitarra brasileira, o flamenco e o rock, mas não Jazz. O violão, e a simpatia, de Lubambo, fornece sempre mais show, mais espectáculo à música, mas nada acrescenta em Jazz. E o Jazz estava lá: nos dedos atentos de Peter Martin, relegado para alguma discrição, e para o portentoso baixo de Reginald Veal, que teve enfim oportunidade de se revelar já quase no final do concerto.     

Com tais músicos e nela própria, sempre contida na explosão que por vezes parecia ir eclodir, Dianne Reeves poderia, se quisesse, se não tivesse tolhida pela forma que escolheu, ter feito um concerto memorável. Nada que tenha impedido os aplausos do público generoso do Funchal Jazz.

Jam sessions
As jam sessions do Funchal Jazz são desde sempre um must do festival. Para elas Paulo Barbosa procura levar ao Funchal músicos capazes de contracenar com os monstros do Jazz que por lá passam. Em 2019 os escolhidos foram o Triotanic (nome fortuito para uma banda nascida das jam sessions do Titanic, em Lisboa) com o saxofonista João Mortágua. O Triotanic era constituído por Nuno Ferreira, António Quintino e Luis Candeias, três/ quatro nomes de autoridade reconhecida no Jazz nacional.

O local das jams é o Scat, um clube localizado num local idílico em frente ao oceano, que permite, até pela localização, que elas se prolonguem toda a noite

Uma jam é, pelas suas próprias características, imprevisível, mas uma boa banda de suporte é fundamental. E depois quando a ela acorrem os músicos das bandas de Terence Blanchard ou Bem Wendel, ou de João Barradas, ou até os músicos da ilha (referência merecida para Francisco Andrade), ou quando Dianne Reeves até lá vai dar «uma perninha» (infelizmente o microfone quebrado impediu a cantora de prosseguir), o espectáculo está garantido. E quando a banda residente tem músicos como Nuno Ferreira ou João Mortágua, ou António Quintino ou Luis Candeias, bom… o problema reside na nossa capacidade de resistência. Porque nós saímos e os músicos continuam noite fora.

Últimas notas: para o som que se manteve excelente, magnífico, diria mesmo, em todos os concertos em todo o recinto do festival, um jardim onde couberam mais de dois mil assistentes. Para a produção, irrepreensível, que consegue fazer começar os concertos a horas (com tudo o que esse simples facto tem por detrás). E enfim para a simpatia e eficiência dos incansáveis trabalhadores dos transfers, do restaurante (Scat), e do Hotel (o magnífico Casino - Pestana desenhado por Oscar Niemeyer). 

Leonel Santos

(Leonel Santos esteve no Funchal Jazz a convite do festival)

(Todas as fotos por Renato Nunes)

Qui 11 Funchal Parque Santa Catarina 21.30 Ben Wendel Seasons Band Ben Wendel (st), Gilad Hekselman (g), Aaron Parks (p), Matt Brewer (ctb), Kendrick Scott (bat)
Gregory Porter Gregory Porter (voz), Tivon Pennicott (st), Albert 'Chip' Crawford (p), Jahmal Nichols (ctb, b-el), Emanuel Harrold (bat)
SCAT 24.00 TrioTanic feat João Mortágua Nuno Ferreira (g), António Quintino (ctb), Luis Candeias (bat), João Mortágua (sa)
Sex 12 Funchal Parque Santa Catarina 21.30 João Barradas
«Portrait»
feat. Ben Van Gelder
Ben Van Gelder (sa), João Barradas (aco, aco-sint), Simon Moullier (vib), Luca Alemanno (ctb), Naíma Acuña (bat)
Terence Blanchard
A/B Squared
A Tribute To Art Blakey
Terence Blanchard (t), Charles Altura (g), Fabian Almazan (p, tec), David Ginyard, Jr. (b-el), Oscar Seaton (bat)
SCAT 24.00 TrioTanic feat João Mortágua Nuno Ferreira (g), António Quintino (ctb), Luis Candeias (bat), João Mortágua (sa)
Sáb 13 Funchal Parque Santa Catarina 21.30 Melissa Aldana Quartet Melissa Aldana (st), Lage Lund (g), Pablo Menares (ctb), Kush Abadey (bat)
Dianne Reeves Dianne Reeves (voz), Romero Lubambo (g-ac, g-el), Peter Martin (p), Reginald Veal (ctb, b-el), Terreon Gully (bat)
SCAT 24.00 TrioTanic feat João Mortágua Nuno Ferreira (g), António Quintino (ctb), Luis Candeias (bat), João Mortágua (sa)

 

 

 

 

 

Programador/ Director Artístico PAULO BARBOSA
Iniciativa CÂMARA MUNICIPAL DO FUNCHAL