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Guimarães Jazz
2006
O Guimarães Jazz vem-se afirmando desde há anos o melhor festival de Jazz nacional. Pela programação – criteriosa e sabedora – à dimensão, entre concertos e eventos paralelos. No ano passado ganhou uma nova dimensão no novíssimo Centro Cultural Vila Flor, a rivalizar com as melhores salas de espectáculo nacionais.
Apenas assisti aos concertos da segunda semana, mas gostaria de recordar algumas das coisas escrevi como apresentação da primeira semana do festival no início de Novembro.

«A programação deste ano é verdadeiramente luxuosa. Na quarta-feira, tem lugar o concerto de uma das lendas vivas do Jazz, Wayne Shorter. Companheiro de Miles Davis e um dos seus compositores privilegiados, Shorter é também um dos mais influentes saxofonistas da actualidade, mesmo se ele nunca apareceu ao público como um músico de primeiro plano. Até ao ano de 2002 quando reuniu um quarteto de luxo para explicar ao mundo o porquê da sua autoridade entre os músicos de Jazz. "Footprints", como se chamou o disco, reuniu Danilo Perez no piano, John Patitucci no baixo e Brian Blade na bateria, numa recuperação que muitos pensariam impossível do Jazz mainstream dos anos 60, onde Miles Davis (pré-eléctrico) era figura maior. Escrevi na altura:
" Espírito do Jazz. Se existe essa coisa a que alguns dão o nome de 'espírito do Jazz', então ele passou por aqui. 'Footprints' é inequivocamente Jazz no seu estado mais puro e Wayne Shorter um dos seus mais dignos representantes. 'Footprints' foi gravado ao vivo por um quarteto em estado de graça, acústico, durante uma tournée de 2001 ... ".
Cinco anos depois e mais dois discos, Shorter "Footprints" – o quarteto e o projecto - toca (de novo) em Portugal. Em Guimarães (quarta, 8) e na Culturgest (quinta, 9). Imperdível.

Quinta também, em Guimarães toca o Tone Of A Pitch Colectivo, nome da activa editora de Jazz nacional, com três dos excelsos convidados do festival às workshops: John Ellis, Alan Ferber e Brad Shepik. A actuação do quarteto composto (este ano) por Nelson Cascais, Pedro Moreira, Jorge Reis e Bruno Pedroso inicia uma colaboração que se pretende frutuosa com o Guimarães Jazz.

Marc Copland é um pianista subtil e lírico, insinuante e impressivo. A sua forma mais reconhecida, a sua "especialidade" e a sua "marca" são os encontros, os duos ou trios, os diálogos. Tim Haggans, por exemplo, com quem se apresenta em Guimarães na sexta-feira, já protagonizou com Copland um dos raros discos de piano-trompete da história do Jazz, em 2000. Mas já tocou em trio com John Abercrombie (g) e Kenny Wheeler (t) e em duo com Gary Peacock (ctb) ou Greg Osby (sa), com Dave Liebman (ss, st), ou já este ano com Bill Carrothers, num lindíssimo duo de pianos.
Comunhão, afinidades, empatia, parece ser a obsessão deste grande pianista de Jazz. Com ele, Tim Hagans que tocou já este ano no Estoril Jazz, uma espécie de bopper inconformado, também como Copland capaz de se revelar lírico e apaixonado. A completar o quarteto um grande irreverente contrabaixista, Drew Gress e ainda o competente Jochen Ruckert na bateria. De referir que estes dois últimos músicos gravaram recentemente com Copland um disco com um nome significativo: Some Love Songs. Um concerto muito bonito em perspectiva. Na sexta.

Na tarde de sábado toca o Sexteto de Jazz da ESMAE - Porto, que ganhou o prémio do melhor combo na Festa do Jazz (S. Luiz, Lisboa), em 2006. Na boca de cena estarão os dois músicos que ganharam o prémio do melhor instrumentista: os saxofonistas Ivan Silvestre e João Pedro Brandão.

No sábado ainda, à noite, toca o trio regular de Abdulah Ibrahim, composto por Belden Bullock (ctb) e George Gray (bat). Será provavelmente um Abdulah Ibrahim mais Jazz que o que se apresentou em Março na Casa da Música o que tocará em Guimarães.
Relembro o que escrevi por essa ocasião: "Ibrahim dispensa apresentações: ele é um aclamado pianista de Jazz, sul-africano de nascença, por longos anos – até ao fim do apartheid – exilado. Ele possui uma sonoridade reconhecível, densa e quente, fortemente melódica, mesmo ‘dançável’, mas de forma alguma vulgar ou fácil. O percurso de Abdulah Ibrahim é longo, desde os tempos em que era influenciado por Monk (quando ainda dava pelo nome de Dollar Brand) até à pontuação grave da savana, religiosidade e serenidade (AI converteu-se ao islamismo) que hoje faz brotar dos dedos. Não será um Abdulah Ibrahim inovador que se irá apresentar no Domingo na Casa da Música, mas a sua música possui algo se mágico que é eterno."
Magia é uma vez mais o que se espera do concerto do grande pianista.

E o Guimarães Jazz continua para a semana. Mais ou menos, porque do que eu não falei foram das workshops dirigidas por Alexis Cuadrado, Alan Ferber,John Ellis, Mark Ferber e Brad Shepik a várias dezenas de jovens e que terminarão no final da próxima semana e ainda as lendárias Jam Sessions noite afora no Convívio. E mais não digo. »

Qua 8-Nov Guimarães Centro Cultural Vila Flor 22.00 Guimarães Jazz/ Culturgest Wayne Shorter Quartet - WS (st, ss), Danilo Perez, (p), John Patitucci (ctb), Brian Blade (bat)
Guimarães       8,9,10,11,16,17,18-Nov. - Jam Sessions . Alexis Cuadrado, Alan Ferber,John Ellis, Mark Ferber e Brad Shepik
Qui 9-Nov Guimarães Centro Cultural Vila Flor 22.00 Guimarães Jazz TOAP Colectivo - Nelson Cascais (ctb), Pedro Moreira (s), Jorge Reis (s) e Bruno Pedroso (bat) + John Ellis (st), Alan Ferber (trb), Brad Shepik (g)
Sex 10-Nov Guimarães C.C.Vila Flor   Guimarães Jazz Marc Copland Trio & Tim Hagans - MC (p), Drew Gress (b), TH (t), Jochen Ruckert (bat)
Sáb 11-Nov Guimarães C.C.Vila Flor 16.00 Guimarães Jazz Sexteto de Jazz da ESMAE - Ivan Silvestre (sa), João Pedro Brandão (sa, fl), António Pedro Saramago (g), Alexandre Dahmen (p), Carl Minnemann (b), Marcos Cavaleiro (bat)
Guimarães C.C.Vila Flor 22.00 Guimarães Jazz Abdulah Ibrahim Trio - AI (p), Belden Bullock (b), George Gray (bat)
Qua 15-Nov Guimarães C.C.Vila Flor 22.00 Guimarães Jazz Alexis Cuadrado (ctb), Alan Ferber (trb), John Ellis (st), Mark Ferber (bat) e Brad Shepik (g)
Qui 16-Nov Guimarães C.C.Vila Flor 22.00 Guimarães Jazz Geri Allen Trio - GA (p), John Herbert (ctb), Eric McPherson (bat)
Sex 17-Nov Guimarães C.C.Vila Flor 22.00 Guimarães Jazz Brussels Jazz Orchestra c/ Dave Liebman
Sáb 18-Nov Guimarães C.C.Vila Flor 16.00 Guimarães Jazz Big Band das Workshops conduzida por Alan Ferber
Guimarães C.C.Vila Flor 22.00 Guimarães Jazz Charlie Haden Liberation Music Orchestra -CH (ctb), Carla Bley (p), Miguel Zenon (sa), Matt Wilson (bat), Michael Rodriguez (t), Tony Malaby (st), Curtis Fowlkes (trb), Seneca Black (t), Steve Cardenas (g), Vincent Chancey (trompa), Chris Cheek (st), Joe Daley (tub)

Alexis Cuadrado, Alan Ferber, John Ellis, Mark Ferber e Brad Shepik

A segunda semana do Guimarães Jazz começou com o concerto dos músicos convidados para dirigir as Oficinas de Jazz deste ano: Alexis Cuadrado, Alan Ferber, John Ellis, Mark Ferber e Brad Shepik. Foi um concerto onde a surpresa este ausente, mas descontraído e competente. E como eu suspeitava os momentos mais interessantes foram protagonizados pelo guitarrista. Shepik mostrou toda a sua originalidade e fogosidade nos solos, e as suas intervenções no seio do grupo foram sempre oportunas.

Geri Allen Trio

A «solução de recurso» encontrada para substituir o lendário Andrew Hill, Geri Alen fez um excelente concerto. Allen chegou a Guimarães na tarde de quinta, quando conheceu os dois músicos que a iriam acompanhar, o baterista e contrabaixista do grupo de Hill, e apesar de apenas terem tido algumas horas para ensaiar o repertório, o grupo demonstrou ao vivo o que são três verdadeiros músicos de Jazz a funcionar. Notaram-se por vezes algumas discretas indicações da pianista ao baterista e baixista e num ou outro tema ela teve que recorrer à pauta – afinal ela fez questão de interpretar algumas das composições de Andrew Hill -, mas ainda assim, aquela era a sua música. Jazz puro, quero eu dizer, na sua versão mais erudita. Como eu referi na apresentação de Allen, a pianista possui toda a história do piano Jazz nos dedos, do bebop a Cecil Taylor. O seu estilo é voluptuoso e elegante, orquestral e impressivo. Erudição, erudição, era a palavra que me soava no cérebro enquanto me deliciava com a inteligência das suas soluções. Espantoso era observar como os três reagiam aos estímulos mas subtis dos companheiros, como pareciam tocar juntos desde sempre, de como as mais complexas linhas delineadas pelo piano eram replicadas ou completadas. Já tinha ouvido Geri Allen e a sua música não me surpreendeu, como também não me surpreendeu a habilidade e energia criativa do baterista Eric McPherson, mas não me recordo de ter alguma vez visto o contrabaixista actuar. John Herbert foi uma boa surpresa. Mas mais do que a prestação das três personalidades, o espectáculo foi observar a empatia que se foi criando entre eles ao longo das duas horas. Um grande concerto!

Brussels Jazz Orchestra com Dave Liebman

Guimarães já tinha visto no ano passado o grande saxofonista que é Dave Liebman. Apesar disso, a dúvida sobre a eventual «artificialidade» da reunião Dave Liebman Liebman / Brussels Jazz Orchestra era de certa forma legítima: não são raros os exemplos mais ou menos oportunistas deste modelo, associando orquestra com «vedetas». Não foi de todo o que se passou em Guimarães e o mérito cabe em igual medida a ambas as partes. Liebman surgiu aos olhos (ouvidos) do público como um verdadeiro membro da orquestra! O entendimento foi sempre perfeito mercê também da maleabilidade da orquestra - uma espécie de organismo vivo a funcionar como um instrumento de onde pontualmente saíam solistas – e do elevadíssimo nível das prestações dos músicos, como membros da orquestra ou solistas, da alegria que comunicavam, do rigor e da inteligência dos arranjos. A noite foi assim quase quase perfeita. Quase quase: achei a prestação de Nathalie Loriers, a pianista, algo contida (ao contrário da fogosidade do resto da orquestra) e toda a secção rítmica poderia ser um pouco mais interventiva. Outro aspecto que acabou por prejudicar o concerto, e até porque ele se prolongou bastante, até pelo entusiasmo dos participantes e do público, foi o a incidência excessiva de Liebman no saxofone soprano.
Ainda assim o nível do concerto foi sempre elevadíssimo, com uma orquestra a funcionar quase sem director (que se relegava para o papel de simples instrumentista). Perfeição na execução, força, engenho e fulgor na interpretação de orquestrações de grande complexidade, naturalidade na adaptação do «elemento estranho», um naipe de instrumentistas de grande gabarito, à altura - nos solos e nos duelos – do convidado.
Dave Liebman foi simplesmente fabuloso (à parte o meu senão «técnico»). Como me diria Carla Bley no dia seguinte «provavelmente o melhor saxofonista da actualidade». E notável também, além das suas artes como instrumentista, a capacidade de interagir com outros músicos (o que explica a profícua e diversa produção artística em combos dos mais diversos formatos, do intimista ao orquestral), que o revelou como o solista perfeito e um verdadeiro membro da Brussels.
O repertório percorreu autores e arranjadores tão distintos quanto Hermeto Pascoal, Vince Mendonza, George Gruntz, Dave Holland, Duke Ellington ou o próprio Dave Liebman.


Charlie Haden Liberation Music Orchestra

O encerramento do Guimarães Jazz 2006 esteve a cargo da Liberation Music Orchestra de Charlie Haden. Charlie Haden é «um amigo de Portugal». Faz parte da História a sua «conturbada» participação no 1.º Cascais Jazz de 1971, onde acabou por ganhar uma viagem de borla para o aeroporto escoltado pela PIDE. Mas também o igualmente histórico concerto de Haden com Carlos Paredes, o duo com Paul Motian no disco Closeness em «For a Free Portugal» (com uma introdução com a gravação do momento em que em Cascais dedicou a sua composição «Song For Che» aos movimentos de libertação de Angola, Moçambique e Guiné) e ainda a interpretação pela Liberation em 1982 do Grândola Vila Morena de José Afonso, registado em The Ballad Of The Fallen (Haden veio a Portugal por diversas outras vezes).
O concerto de Charlie Haden em Guimarães, exactamente 35 anos após a sua participação no 1.º Cascais Jazz estava por tudo isto carregado de expectativa, mas também emotividade.
A renovada Liberation Music Orchestra integra alguns dos melhores músicos de New York, entre os quais gostaria de destacar Chris Cheek, Miguel Zénon, Tony Malaby, Matt Wilson e Steve Cardenas. Cheek esteve em destaque; ele possui um fraseado e uma sonoridade característicos, com um vibrato muito peculiar que o torna distinto. Zénon que «conhecemos» no Seixal Jazz 2005 é já uma certeza entre a nova geração de saxofonistas. E seria displicente falar de cada um dos músicos da banda, todos eles escolhidos a dedo por Carla Bley de entre a nata dos músicos de New York, creio que quase todos.
Este é outro aspecto assinalável na Liberation: a omnipresença de Carla Bley, já que esta quase poderia ser a sua orquestra. Claro que o projecto é de Haden e esta é a sua música; mas são dela os arranjos, é dela a direcção, ela escolheu os músicos, a sua já longa amizade e colaboração com Haden acabou por influenciar o contrabaixista. A própria concepção «vampírica» de composição e orquestração de Carla Bley é desde há muito partilhada por Haden (ou será afinal o contrário?) e ela não pode ser ignorada na sua música.
O repertório do concerto baseou-se fundamentalmente no disco da Liberation Not In Our Name, que é também o lema dos opositores à intervenção americana no Iraque. De notar que o disco apenas contém temas escritos por compositores norte-americanos, numa forma de afirmar que na América nem todos estão de acordo com a política da administração Bush. Pat Metheny, Lyle Mays, Davis Bowie, Bill Frisell, Ornette Coleman ou os próprios Carla Bley e Charlie Haden passaram por Guimarães pela música da Liberation que terminou com um emocionante «Grandola/ We Shall Overcome».
A emoção marcou todo o concerto desde o primeiro minuto. Esse é mesmo um dos cunhos da música de Haden, seja no repertório que procura a provocação no enfoque militante às músicas populares do mundo, no tratamento orquestral excitante, diria épico, e que termina no próprio walking denso característico do seu contrabaixo. Em Guimarães o tom emotivo não parou de subir até ao último momento do concerto e isso era notório na forma entusiasmada como o público aplaudia. E eu mesmo fui apanhado de surpresa quando, já no encore, Tony Malaby e Matt Wilson surgem dos dois lados do palco a tocar o Grândola nos tambores. Confesso, aqui que ninguém mais nos ouve, que as lágrimas me explodiram nos olhos e não mais parei de chorar até ao fim do concerto. Eu sei que é completamente estúpido porque de certa forma eu já sabia que eles não poderiam deixar de tocar o Grândola. O que me perdeu foi talvez a forma dramática (lindíssima, e forte; Haden tem realmente jeito para dramatizar) como os dois músicos entraram em palco marcando de forma pesada o Grândola e depois como prosseguiu até se transformar no significante e cantável We Shall Overcome. Devo estar velho que me emociono com facilidade, mas reconfortei-me quando à saída observei outros velhos tontos como eu a fungar disfarçadamente.
Enfim, a emoção também faz parte da música e do Jazz muito em especial, sempre pensei. E o concerto que encerrou o Guimarães Jazz 2006 teve tudo: grandes composições, grandes músicos, grandes prestações e muita muita emoção.

(JazzLogical esteve em Guimarães a convite do Guimarães Jazz)

2006 (15.ª edição)
Wayne Shorter Quartet, Featuring Brian Blade, John Patitucci & Danilo Perez
Projecto TOAP/Guimarães Jazz : Jorge Reis, Nelson Cascais, Bruno Pedroso e Pedro Moreira c/ John Ellis, Alan Ferber & Brad Shepik
Sexteto da ESMAE
Marc Copland Trio c/ Tim Hagans
Abdullah Ibrahim Trio
Alexis Cuadrado, John Ellis, Alan Ferber, Mark Ferber & Brad Shepik
Geri Allen Trio
Brussels Jazz Orchestra, featuring Dave Liebman
Charlie Haden Liberation Music Orchestra, featuring Carla Bley