Home

 

 

 

 

Guimarães Jazz 2020

 

Resiliência! A palavra entrou no léxico comum, e agora já ninguém é teimoso, perseverante ou resistente mas, talvez melhor que nenhuma outra, ela será capaz de exprimir a forma como o Guimarães Jazz superou adversidades e se cumpriu, malgrado a malfadada pandemia. Impossível de manter a programação internacional planeada, o Guimarães Jazz optou por convidar músicos portugueses e alguns estrangeiros a viver em Portugal: Andy Sheppard, Julian Arguelles; e ainda a banda holandesa Radiohead Jazz Symphony .

Por outro lado, e devido aos constrangimentos da pandemia, o público esteve reduzido a menos de metade, e implementando todas as regras de segurança, que se alargaram aos músicos e convidados, no que toca ao alojamento e refeições. Óbices que apenas o profissionalismo da produção tornaram possíveis resolver.

Também as jam sessions não foram possíveis, e os horários dos concertos foram antecipados, alguns para as manhãs dos dois fins de semana. E finalmente as workshops não contaram com um director estrangeiro e o concerto foi dirigido por um professor da ESMAE, Paulo Perfeito.

A situação de emergência, os constrangimentos, as regras de segurança apertadas, não condicionaram apenas a programação, mas ela contaminou o comportamento do público e dos próprios músicos, malgrado os esforços da produção. Ainda assim a maioria dos concertos correu bastante bem, com dois percalços.

O festival foi dedicado à memória do saudoso Manuel Jorge Veloso, que nos deixou em 2019.

Andy Sheppard Costa Oeste

O festival começou com o Andy Sheppard Costa Oeste, um quarteto que contava com Mário Delgado, Hugo Carvalhais e Mário Costa. A viver na Ericeira, e a tocar com uma banda nacional, o repertório contou com vários temas de inspiração portuguesa, «Dream Keepers of Bairro Alto», o tradicional «Passarinho da Neve», e «Sempre Contigo», de permeio com originais (com preitos a Coltrane/ Pharoah Sanders e Ornette) e o clássico «For All We Know» no encore.
Músico com uma história longa, ele tem tocado em Portugal à frente dos seus grupos ou ao lado de Carla Bley e Steve Swallow, e possui um som de saxofone muito pessoal, espiritual e melancólico. Essa melancolia e espiritualidade atravessaram todo o concerto, desde o primeiro tema, e foram acompanhados pela banda, apenas contrariados aqui e ali pela guitarra de Mário Delgado, o músico que mais marcou o concerto. Eu dira mesmo que, se a banda esteve sempre bem, interagindo correctamente com o saxofonista, eles nunca ultrapassaram essa correcção, e é pena. Por vezes o saxofone aproximava-se de Jan Garbarek, de outras era a espiritualidade de Trane que o fazia viver, e apenas a guitarra excêntrica de Delgado o contrariava. O «Passarinho da Neve», uma vez mais com Delgado a desenhar a melodia esteve em evidência, e o momento mais alto aconteceu em «Looking for Ornette»/ «Beyond the Dancing Sun», com um duelo bateria/ guitarra e o saxofone e o baixo a secundá-los, e terminando com a melhor intervenção de Mário Costa num excelente solo de bateria.
E enfim, um dos mais belas canções do cancioneiro americano, «For All We Know», arrastado, com o saxofone e a guitarra a desenhar a melodia. E se a composição se basta por si mesma, o quarteto soube «cantá-la» da melhor forma.

Demian Cabaud/ Gabriel Ferrandini/ João Barradas
Por razões de ordem pessoal, Peter Evans, que estava agendado para dois sets diferentes - um deles com Ferrandini e um segundo com Cabaud e João Barradas – não pôde vir, e o concerto foi reconvertido para um trio, com composições de, creio, Demian Cabaud. (Erro da organização: não havia nenhuma informação no exterior do Vila Flor anunciando a alteração da programação.)
«A morte é uma flor que só abre uma vez», poesia trágica de Paul Celan com que o concerto começou, revelou-se mais patético que trágico, e porque o trio não funcionava. Ferrandini é um músico que vem da chamada «música improvisada» e tudo o que ele faz é «improvisar». É-lhe indiferente que estejam mais músicos ao lado, porque ele tem uma coisa própria para fazer e as suas intervenções têm pouco a ver com a composição ou com o que os parceiros fazem. Ainda assim, nos três temas finais ele ainda tentou «ouvir» os companheiros e ensaiou um tímido e felizmente quase silente acompanhamento, deixando a perceber as intenções da música de Cabaud, inspirada pela poesia.
Barradas procurava seguir o contrabaixo, introduzindo alguns momentos interessantes com o acordeão, por vezes emulando o som de um órgão, mas pareceu muitas vezes perdido, e aparentemente apenas Cabaud sabia o que estava a fazer. Mas o concerto estava tragicamente fadado. Não correu bem.

César Cardoso Ensemble – Dice of Tenors

César Cardoso foi a Guimarães apresentar o último disco, já de 2020, «Dice of Tenors», uma homenagem pessoal a alguns dos grandes saxofonistas tenores da história do Jazz. Temas dos saxofonistas, ou por eles popularizados, César Cardoso invocou Benny Golson, Hank Mobles, Dexter Gordon, John Coltrane, Joe Henderson ou Sonny Rollins. 

A abordagem de Cardoso é sempre muita académica. Ele procura encontrar sempre as particularidades das abordagens dos músicos (e nisso algo se perderá da energia e da singularidade sonora que os marca; o que se tornou-se claro em St. Thomas ou Giant Steps onde os saxofones [de Trane e Rollins] não estiveram lá), e o mais interessante da sua música são os arranjos onde, se esse academismo está sempre presente, eles (os arranjos) procuram sempre uma nova perspectiva, que faz a sua marca. Dice of Tenors o disco que trouxe a Guimarães é talvez o seu melhor disco de sempre, revelador da sua mestria.
Jazz que gosta de ser Jazz, que nunca se questiona, mas saboroso.

Projecto Big Band ESMAE/ Guimarães Jazz
O Projecto Big Band ESMAE/ Guimarães Jazz que o festival apresenta todos os anos, é a resultante das workshops com os alunos da ESMAE, orientado por um músico estrangeiro convidado. Este ano, devido à pandemia as workshops não foram possíveis, pelo que o concerto foi dirigido por um dos professores, Paulo Perfeito.
O interessante do projecto é oferecer aos jovens alunos uma abordagem diferente, confrontá-los com novas possibilidades musicais, outros universos (eventualmente menos ortodoxos). O resultado é sempre diferente, e tem sido questionado, mas eu creio que é uma dos mais interessantes ideias do festival, e uma oportunidade única para os estudantes de Jazz.
O concerto foi portanto apenas uma apresentação do que os alunos da ESMAE aprendem, mas o apenas é dizer pouco, porque a orquestra revelou um nível de profissionalismo, comprovando o que se sabe: que estes jovens estão bem entregues.
Paulo Perfeito dirigiu os seus alunos com acerto e humor, apresentando composições e arranjos dele, de Telmo Marques, Ricardo Formoso, Carlos Martins, Abe Rabade e outros, professores, músicos e estudantes, num animado concerto.

Projecto Porta-Jazz/ Guimarães Jazz: «Sons da Imperfeição – Concerto Desenhado»

Outra colaboração do Guimarães Jazz, com a Porta-Jazz, tem levado à Black Box do CIAJG alguns projectos multidisciplinares que dificilmente seriam apresentados noutro local. A «carta branca» foi dirigida em 2020 a Hugo Raro, que se fez acompanhar por Miguel Amaral em guitarra portuguesa, Rui Teixeira em clarinete baixo e saxofone barítono, Alex Lázaro em bateria e percussões e ainda o artista JAS em cenografia e desenho em tempo real.               
Foi um concerto muito bonito, musical e visualmente. Diferente de outros, a articulação musical e visual foi bastante conseguida, mesmo se partindo de uma ideia relativamente simples: enquanto a música fluía, JAS ia desenhando linhas de motivos florais ou edifícios em uns quadros transparentes que pendiam do tecto, num jogo de luzes que projectavam sombras que se cruzavam.
Música composta de originais (simplesmente Part I a VII), executada por uma formação atípica (visualmente motivante também, em grande medida pela performance de Alex Lázaro), ela não necessitaria do elemento visual, mesmo se ele a comple(men)tava. As composições construíam-se basicamente das linhas cruzadas entre o piano, o clarinete/ saxofone barítono e a percussão, que se combinava com o suplemento tímbrico da guitarra portuguesa, e mais do que o elemento harmónico o compositor soube construir, com a singularidade tímbrica/ visual – piano/ palheta/percussão/ guitarra/ luz/ linhas/ sombras.
Muito conseguido.

Projeto Sonoscopia/Guimarães Jazz
O projecto da Sonoscopia não é um projecto musical e não sei se o pretendia ser. Será plástico, performativo, espectáculo, ou outra coisa qualquer, mas ele foi, de qualquer perspectiva, lamentável.
Dois computadores a produzir qualquer coisa próxima do «ambiental» e uma percussão esparsa e irrelevante, acompanhados de uns efeitos visuais recuperados daqueles players de media dos anos 90 a desenhar figuras geométricas que dançavam aos nossos olhos, e uns quadros de luzes a piscar, revelaram apenas uma modernidade pretensiosa e imaturidade.
Penoso.

Radiohead Jazz Symphony & Orquestra de Guimarães

Não sou um fã deste projecto do Guimarães Jazz que tem reunido em anos anteriores a Orquestra de Guimarães com um músico ou um projecto externo, mas o concerto deste ano surpreendeu-me.
A Radiohead Jazz Symphony é uma banda de Jazz holandesa que tem trabalhado a música dos Radiohead com a Nordpool Orchestra, fundada por Reinout Douma, o director que dirigiu as duas formações; e as orquestrações foram concebidas para a orquestra.
A Orquestra de Guimarães não é uma orquestra de Jazz e como tal ela «limita-se» a tocar o que a pauta lhe dita. E nesse sentido o concerto vive sempre das composições e dos artifícios das orquestrações, estando a despesa das improvisações a cargo dos convidados. Também a música dos Radiohead, uma banda pop bastante popular, não está entre a minha música preferida, mesmo se lhes reconheço alguns temas.
Daí a minha surpresa. A Radiohead Jazz Symphony (RJS) tratou a música da banda de forma bastante habilidosa, nunca se limitando ao vulgar, e os arranjos foram, também eles, muito artificiosos. Depois, a Orquestra de Guimarães revelou-se soberba na sua interpretação, superando os engulhos que são próprios de uma orquestra clássica a interpretar Jazz, revelando uma desenvoltura surpreendente e uma elasticidade tímbrica que, se ditada pelos arranjos, ela fundiu-se na perfeição com o septeto. Notável mesmo o equilíbrio entre as cordas (surpreendentemente ágeis) e os sopros. O concerto foi crescendo com o melhor das intervenções solísticas a ganhar força com e a revelar um saxofonista old school (Steven Sluiter), poderosos e ágeis trombone (Vincent Veneman) e trompete (Kurt Weiss) e um piano luminoso (Douma); sempre enquadrados e fundidos no mesmo todo orquestral.

Julian Arguelles «Aqui e Agora»

Saxofonista veterano, Julian Arguelles apresentou-se em Guimarães à frente de um sexteto de estrelas nacionais, João Mortágua, André Fernandes, João Pereira, João Almeida, Eduardo Cardinho, António Quintino e João Almeida.
Alegoria da situação que a humanidade vive, composto para o festival, «Aqui e Agora», balançou entre sentimentos de angústia e melancolia, ou raiva e inquietude.
A guitarra rock de Fernandes irrompeu enérgica num primeiro tema («Mole People»), mas logo a seguir a canção «Nitty Gritty» pareceu uma chamada à realidade. Ao lamento ao saxofone de Arguelles seguiram-se solos ou diálogos contrabaixo-guitarra, saxofones alto e tenor, de toda a banda, mas sempre tocados pela melancolia. Sucederam-se «Catalunya» e «Triple Ripple» e uma homenagem a Evan Parker em modo saxofone free, mais uma balada, «Sweetie», e a energia retornou em «Triality».
A banda ainda retornou para dois encores colados: um primeiro, curioso «Circularity», movimentos circulares a partir de curtos elementos harmónicos, e «Lardy Dardy».
Claramente esta não era a formação de Arguelles, mesmo se a banda esteve sempre bem, individual e colectivamente. Concerto muito bonito, o repertório não estimulou o septeto e a melancolia que atravessou o concerto impediu-o de voar. Malfadados tempos estes que vivemos!
Nota: ainda soubemos que Arguelles gravou recentemente um disco com Mário Laginha e Helge Andreas Norbakken; a mesma formação que gravou «Setembro» em 2011.

Pedro Melo Alves Omniae Large Ensemble
Aclamado em 2016 pelo arrojo da composição, Omniae Ensemble projectou o jovem Pedro Melo Alves para a notoriedade na cena Jazz nacional, mesmo se o Jazz eras lateral na obra. O Jazz é apenas um dos motivos que fazem mover o baterista, como o rock e a pop, a electroacústica e a música contemporânea, e isso transparece nos vários projectos e colaborações que alimenta.

O Omniae Large Ensemble que apresentou em Guimarães é «apenas» o alargamento orquestral (para vinte e dois elementos) da obra original, oferecendo-lhe uma paleta tímbrica ampliada, mas curiosamente oferecendo também mais espaço para a improvisação. Uma primeira suite de quase quarenta minutos e mais uma segunda de quinze, a revelar as capacidades e as possibilidades da obra e do autor, motivaram a plateia que não regateou aplausos à ousadia de Pedro Melo Alves. Ousadia, e erudição numa obra de fôlego e grande modernidade.
Relegado para as 10.30 da manhã de domingo, o Ominae Large Ensemble de Pedro Melo Alves encerrou bem a 29.ª edição do Guimarães Jazz, em 2020, no ano da pandemia.

 

Resiliente: «Que tem a capacidade de recuperar após um revés ou de superar situações de crise, adversidade ou infortúnio»; «Guimarães Jazz».

Leonel Santos

(Leonel Santos esteve no Guimarães Jazz a convite do festival)

 

Programação:
Ivo Martins

Produção/ Organização:
Município de Guimarães, Oficina, Convívio

Guimarães Jazz 2020, 12 a 22 de Novembro de 2020

Qui 12 Guimarães Centro Cultural Vila Flor
(GA)
19.30 Andy Sheppard
«Costa Oeste»
Andy Sheppard (st, ss), Mário Delgado (g), Hugo Carvalhais (ctb), Mário Costa (bat)
Sex 13 Guimarães Centro Cultural Vila Flor
(GA)
19.30 Gabriel Ferrandini, João Barradas, Demian Cabaud Gabriel Ferrandini (bat), João Barradas (aco), Demian Cabaud (b)
Sáb 14 Guimarães Centro Cultural Vila Flor
(GA)
10.30 César Cardoso Ensemble César Cardoso (st), Luís Cunha (t), José Soares (sa), Massimo Morganti (trb), Jeffery Davis (vib), Óscar Graça (p), Demian Cabaud (ctb), Marcos Cavaleiro (bat)
Dom 15 Guimarães CIAJG/ Black Box 10.30 Sombras da Imperfeição/ Concerto Desenhado Hugo Raro (p, comp), JAS (cenografia e desenho em tempo real), Miguel Amaral (g-pt), Rui Teixeira (clb, sb), Alex Lázaro (bat, per)
           
Ter 17 Guimarães Centro Cultural Vila Flor
(GA)
19.30

Projecto Big Band ESMAE/ Guimarães Jazz

Paulo Perfeito (dir), Telmo Marques (dir)
Qua 18 Guimarães Centro Cultural Vila Flor
(PA)
19.30 Projeto Sonoscopia/ Guimarães Jazz Gustavo Costa (per), Miguel Carvalhais (comp), Pedro Tudela (comp), Rodrigo Carvalho (visuais)
Qui 19 Guimarães Centro Cultural Vila Flor
(GA)
19.30 Radiohead Jazz Symphony & Orquestra de Guimarães Radiohead Jazz Symphony:
Reinout Douma (dir, p), Steven Sluiter (s), Kurt Weiss (t), Vincent Veneman (trb), Elmer Bergstra (bat), Allard Gosens (g), Ruud Vleij (ctb)
Sex 20 Guimarães Centro Cultural Vila Flor
(GA)
19.30 Julian Arguëlles
«Aqui e Agora»”
Julian Argüelles (ss, st), João Almeida (t), João Mortágua (sa), André Fernandes (g), Eduardo Cardinho (vib), António Quintino (ctb), João Pereira (bat)
Dom 22 Guimarães Centro Cultural Vila Flor
(GA)
10.30 Pedro Melo Alves' Omniae Large Ensemble Pedro Melo Alves (bat, comp), José Diogo Martins (p), Filipe Louro (ctb), Mané Fernandes (g), João Miguel Braga Simões (per), João Carlos Pinto (elec), José Soares (sa), Albert Cirera (s), João Pedro Brandão (sa, f), Clara Saleiro (f), Frederic Cardoso (cl), Álvaro Machado (fag), Gileno Santana (t), Xavi Sousa (trb), Ricardo Pereira (trb), Fábio Rodrigues (tu), Luís José Martins (g-cl), Luís André Ferreira (celo), Alvaro Rosso (ctb), Mariana Dionísio (voz), João Neves (voz), Diogo Ferreira (voz), Pedro Carneiro (dir)