Jazz em Agosto

2012

Sunny Murray Trio

Aguardado com expectativa, o concerto do histórico baterista do free-jazz revelou-se uma decepção. Com 75 anos de idade, muito debilitado, o baterista de Albert Ayler e Cecil Taylor fez um concerto de pouco mais de quinze minutos.
Sunny Murray foi um vanguardista que questionou (estilhaçou?) as concepções rítmicas dos anos 60, e as suas inovações foram integradas no estilo e na forma de muitos bateristas mais radicais da actualidade.
Ironicamente, como uma alegoria, o concerto de Sunny Murray pareceu ser pouco mais que a demonstração em si mesma de uma forma desaparecida.
Depois de muita insistência do (entusiástico) público, Sunny Murray ainda regressou ao palco para um penoso encore.

Led Bib

Uma bateria e um baixo-eléctrico desinteressantes, um fender-rhodes desaproveitado e dois saxofones: o Led Bib vive da posibilidade do cruzamento do rock progressivo, free-jazz e experimentalismo (designação vaga para aquele tipo de experimentação que tem se tem a si mesma como objectivo), mas o Led Bib raramente foi capaz de apresentar ideias dignas de referência.

Misha Mengelberg & Evan Parker

O encontro de dois expoentes maiores da «música improvisada» (o que quer que isso seja) terá deixado os fans desiludidos, mas proporcionou uma noite que eu qualificaria de mais que agradável.
Encontro descontraído e despretrensioso, os dois músicos procuraram ouvir-se e tocar um para o outro ao invés de se exibirem. Música relativamente simples até, se considerarmos o universo dissonante que vêm explorando desde há várias décadas, Mendelberg e Parker improvisaram sem pautas, fiéis ao lema «o caminho faz-se caminhando». Música de alguma complexidade, construindo tímidas figuras rítmicas (que a necessidade de tocar um para o outro impunha) e ardilosas harmonias atonais, mas não descartando a possibilidade da melodia aqui e ali.
Se a noite não provou que Mendelberg e Parker são músicos de Jazz, ela bastou para revelar que são grandes músicos e que o Jazz não está afinal tão longe da sua memória quanto se têm esforçado por provar ao longo dos anos.

Nuova Camerata

Único grupo nacional convidado para o Jazz em Agosto 2012, o Nuova Camerata inaugurou as sessões do festival no Teatro do Bairro.
Projecto conceptual da associação Granular, a ideia, «o conceito», em Nuova Camerata precede a música: «este quinteto ... tem como fundamento compor no próprio momento da execução. Ou seja, tudo o que cria e ao público é improvisado».
A artificialidade da música marca todo o projecto como foi visível, e é a razão principal da sua debilidade. A improvisação sem referências e a ausência da noção de «combo» resultou com frequência numa progressão aleatória (o Jazz faz muita falta...) desconexa.
Tornou-se óbvio que a personalidade de Pedro Carneiro detinha as rédeas do quinteto (impunha as suas composições que os objectivos do grupo renegam) e, com excepção de Carlos Zíngaro (o segundo polo do grupo, que parecia amiúde mais esforçar-se por contrariar as possibilidades harmónicas sugeridas por Carneiro que tocar), os membros do grupo revelaram-se fracos improvisadores.
Ainda assim, eu creio que se o Nuova Camerata se libertar do preconceito dissonante e da «livre improvisação», ele poderá encontrar um imenso caminho nas composições de Pedro Carneiro.

Trio VD

Mesmo se é questionável a presença de determinados objectos num festival de Jazz, há coisas que precisam ser feitas e caminhos que necessitam ser trilhados. O Trio VD pouco tem a ver com o Jazz (mas isso sou a dizer, que gosto de Jazz, claro), mas este tipo de experiências teriam mais tarde ou mais cedo de surgir (como as desse outro grupo que passou pelo Jazz em Agosto, o Led Bib).
Produto evoluído do rock e da pop (também punk, electrónica, Jazz..), o Trio VD prima pela irreverência na utilização de materiais dispersos e na sua integração num formato que deriva do rock progressivo, mas que nele se não completa.
Este tipo de experiências teria mais tarde ou mais cedo de ser feita. Pronto, já está: podem seguir em frente.

Das Kapital Plays Hanns Eisler

Como o próprio nome do grupo sugere, o Das Kapital (O Capital, Karl Marx) possui um referencial temático político explícito. O grupo veio a Portugal tocar composições de Hanns Eisler, músico marxista contemporâneo de Shönberg, Anton Webern e Alban Berg. Eisler foi perseguido na Alemanha pelo nazismo e nos Estados Unidos, onde se refugiou, pelo macartismo; tendo vivido os últimos anos na ex-RDA.
Grupo minimalista na formação, o Das Kapital toca uma música pouco subtil, diria rude, de forma provocatória submetida à mensagem.
A crítica deverá pois tomar em conta a faceta «funcional» da música dos Das Kapital, mas creio que até pelo seu carácter excessivamente panfletário, que em Portugal acrescidamente se esvai de valor, os Das Kapital não lograram convencer.

Matthew Shipp Trio

O pianista Mattew Shipp é um músico de difícil classificação no seio do Jazz. Podemos encontrar-lhe referências, entre Andrew Hill, Lennie Tristano ou Cecil Taylor, mas um dia ele preferiu Bud Powell. Ele é um dos expoentes do piano Jazz «erudito», ao lado de Craig Taborn ou a Marilyn Crispell que também tocou nesta mesma edição do 29.º Jazz em Agosto, e ele é seguramente um dos mais singulares pianistas de Jazz da actualidade.
O trio que Shipp apresentou no Anfiteatro ao Ar Livre é composto de dois outros músicos que conhece bem: Michael Bisio (ctb) e Whit Dickey (bat), o mesmo grupo que gravou Elastic Aspects, já este ano.
Música angulosa e exigente, caracterizada por síncopes irregulares, figuras circulares que se sucedem a doces harmonias ou a turbilhões de notas como tempestades que se opõem a angustiantes silêncios, ou estes a rendilhados em cascata saídos dos dedos de Wolfgang Amadeus Mozart. Não exactamente atonal como Cecil Taylor, Shipp usa a atonalidade como usa figuras harmónicas clássicas, ritmos bop ou o silêncio; à tensão não se sucede necessariamente o repouso, a imprevisibilidade parece ser a única característica observável.
Músico singular, Matthew Shipp protagonizou o momento mais alto do Jazz em Agosto 2013

Marilyn Crispell & Gerry Hemingway

Escrevi há não muito tempo sobre o encontro de Crispell e Hemingway registado ao vivo para «Affinities». O concerto no Jazz em Agosto confirma a afinidade de princípios estéticos numa linha que decorre de Anthony Braxton (com quem ambos tocaram), Paul Bley ou Cecil Taylor, a par de influências que remetem para a música erudita.
Música com uma forte componente improvisada, os dois músicos dialogam, enfrentam-se, esgrimem argumentos, arriscam; e mesmo se nem sempre pareceram encontrar-se, as virtudes de uma música que privilegia a aventura esteve sempre evidente.

Ingebrigt Håker Flaten Chicago Sextet

Contrabaixista de origem norueguesa reuniu para a apresentação no Jazz em Agosto um quinteto de músicos de Chicago da área mais radical do jazz. Curiosamente o concerto revelou com frequência origens no hard-bop, mesmo se em estruturas pouco lineares e se ao longo do concerto fossem surgindo referências de um universo bastante vasto, que decorreu em grande medida das diferentes personalidades dos músicos (que foram da música folk no violino ao violento free do saxofone ao vibrafone ardiloso de Jason Adasiewicz).
O desafio de Ingebrigt Haker residia fundamentalmente na capacidade de construir um todo coerente com esses elementes díspares, objectivo nem sempre foi conseguido: a excessiva dispersão, que pareceu trazer, por exemplo, os Black Sabath (icónica banda rock pouco reputada no capítulo da subtileza), ou os despropositados solos noise (Mats Gustavsen???) do saxofone, não contribuiram para a consistência do som do grupo.
O balanço final foi, apesar das minhas observações, positivo, com Ingebrigt Haker a revelar ideias, e Jason Adasiewicz foi o músico mais interessante em palco.

A crítica

À margem da programação dos concertos, o Jazz em Agosto organizou um debate debate subordinado ao tema "A Crítica de Jazz HOJE", moderado pelo director do festival, Rui Neves, e tendo como convidados o director da Jazz.pt, Rui Eduardo Paes (REP), e vários críticos estrangeiros convidados para o festival.
Começo por notar que o Jazz em Agosto excluiu dos convites toda a crítica de Jazz nacional. Até poderia compreender que não me convidasse a mim (quem sou eu?), mas creio que haveria alguns históricos da crítica nacional que talvez devessem figurar na mesa.
Mas enfim, a mesa redonda decorreu até bastante bem: as perguntas - muito pertinentes - tinham sido todas elaboradas por REP e a elas os críticos internacionais respondiam invariavelmente: «About that I have nothing to say». Pelo contrário, que bem que REP respondeu às questões!
Reflexo do ... hum... pacovismo ... que grassa no seio do Jazz nacional, entre programadores, crítica e até músicos, o Jazz em Agosto também não escapa à tentação de privilegiar e promover os (a)críticos que apenas dizem bem de si...
E o debate em torno do papel da crítica de Jazz ficou adiado...

Sex 3
Agosto
Lisboa Fundação Gulbenkian - Anfiteatro ao Ar livre 21.30 Sunny Murray Trio Sunny Murray (bat), John Edwards (ctb), Tony Bevan (st)
Sáb 4 Agosto Fundação Gulbenkian - Anfiteatro ao Ar livre 21.30 Led Bib Mark Holub (bat), Liran Donin (b-el), Toby Mclaren (f-r), Pete Groan (sa), Chris Williams (sa)
Dom 5 Agosto Fundação Gulbenkian - Anfiteatro ao Ar livre 21.30 Misha Mengelberg & Evan Parker Misha Mengelberg (p), Evan Parker (st)
Ter 7 Agosto Teatro do Bairro 22.30 Nuova Camerata Pedro Carneiro (mar), Carlos Zíngaro (v), João Camões (viola), Ulrich Mitzlaff (celo), Miguel Leiria Pereira (ctb)
Qua 8 Agosto Teatro do Bairro 22.30 Trio VD Christophe De Bézenac (sa, elec), Chris Sharkey (g-el), Chris Bussey (bat)
Qui 9 Agosto Teatro do Bairro 22.30 Das Kapital Plays Hanns Eisler Daniel Erdmann (st), Hasse Poulsen (g), Edward Pérraud (bat)
Sex 10 Agosto Fundação Gulbenkian - Anfiteatro ao Ar livre 21.30 Matthew Shipp Trio Matthew Shipp (p), Michael Bisio (ctb), Whit Dickey (bat)
Sáb 11 Agosto Fundação Gulbenkian - Anfiteatro ao Ar livre 21.30 Marilyn Crispell & Gerry Hemingway Marilyn Crispell (p), Gerry Hemingway (bat, vib)
Dom 12 Agosto Fundação Gulbenkian - Anfiteatro ao Ar livre 21.30 Ingebrigt Håker Flaten Chicago Sextet Ingebrigt Håker Flaten (ctb), Dave Rempis (s), Jason Adasiewicz (vib), Jeff Parker (g), Ola Kvernberg (v), Frank Rosaly (bat)