À conversa com Carla Bley:
(Entrevista de Leonel Santos em 19 Novembro 2006)
«No meu próximo disco quero trazer de volta o tempo dos Night Clubs»
JazzLogical:
O concerto da Liberation de ontem à noite (concerto
da Liberation Orchestra Music de Charlie Haden em Guimarães)
foi lindíssimo...
Carla Bley: Foi tão forte! Tanto significado! E não foi tão
boa ideia tocar aquela música portuguesa, Grândola?
A noite passada no concerto eu senti-me como que numa marcha
pela liberdade…
JazzLogical: E a entrada dos tambores...
Carla Bley: Foi uma ideia fantástica de Matt Wilson,
ele e o Tony Malaby aparecerem assim dos lados a tocar tambor.
O efeito foi muito forte.
O engraçado é que ninguém se lembrava de como era a música
do Grândola...
JazzLogical: Mas está gravada pela
Liberation em The
Ballad Of The Fallen...
Carla Bley: Mas ninguém tinha o disco… No soundcheck nós
pensámos em tocar a música mas ninguém sabia sequer que
música era… Então o promotor foi à Internet e sacou
as chaves da música.
Eram cinco da tarde quando eu dei as notas para a banda ensaiar.
Eles olharam e disseram: Mas faltam imensas notas, o que é que vamos fazer?... E
eu respondi, não sei, apenas toquem a forma, toquem. E ensaiámos
e foi tão divertido e saiu bastante bem.
JazzLogical: É verdade. Mas todo o concerto foi incrível. Aqueles
músicos são fantásticos.
Carla Bley: Sim. Toda a banda. Eles são realmente fantásticos.
Havia mesmo alguns que eu não conhecia e que me surpreenderam...
aquela rapariga, como era mesmo o nome?
JazzLogical:
Carla, aquela era a orquestra de Charlie Haden, mas havia também
imenso de si naquela banda. Os arranjos são seus e por vezes
ela parecia realmente a sua banda.
Carla Bley: Shiiiu. Não diga isso a ninguém. Acho que Charlie
não gostaria de ouvir…
JazzLogical: Acha que é importante tocar esta música?
O que é que os músicos têm a dizer sobre política?
Carla Bley: Muitas vezes eu penso que é como pregar aos convertidos.
O pregador está na igreja e diz: Jesus vai salvar as vossas almas! E
os fiéis respondem: É verdade ele vai salvar as nossas almas!
Porque eles já acreditam nisso.
Quando estamos nalguns países a tocar canções políticas,
eles concordam connosco. Mas se estivesse a tocar essa música
na Convenção
Republicana, as pessoas odiariam. Se estamos a tocar para pessoas
que estão
de acordo connosco, é fácil… Não
vamos converter ninguém; eles já estão
convertidos. Donald Rumsfeld nunca vai ouvir essa música.
JazzLogical: Talvez que tenha razão.
Mas creio que é importante
sabermos que a América não é toda igual.
Que nem todos concordam com a intervenção no
Iraque ou a política ambiental americana. Claro que eu já era «um
convertido», mas para mim, e acho que para toda a gente
que lá estava,
foi importante sabermos em 1971 – quando aconteceu aquele
episódio
com Charlie Haden - que «lá fora» as pessoas
também
estavam como nós contra a guerra nas colónias
portuguesas…
Carla Bley: É o que Charlie diz e eu também compreendo. Isso
tornou-vos mais fortes. Espero que tenha razão.
JazzLogical: Mas a Carla também faz política. Looking
For America é um
disco político.
Carla Bley: À minha maneira, sim. Nós todos odiamos esta política.
Não conheço ninguém que esteja contente com esta situação. É embaraçador
ser americano. Charlie sempre foi muito envolvido politicamente e eu não.
Ele acredita que a música pode mudar o mundo. Eu sou um pouco mais cínica.
E céptica.
JazzLogical: A Carla é muito conhecida
em Portugal. Tocou por diversas vezes, com a Big Band,
em duo, em trio…
Carla Bley: E de todas as vezes que vejo
o meu itinerário, eu vejo Portugal….
Adoro o público português… Mas estou
cansadíssima! Ontem à noite eu estive por
mais de uma hora a dar autógrafos e a assinar discos…
JazzLogical: E o público aqui em Guimarães é especialmente
amigável…
Carla Bley: Oh, demasiado! Mesmo muito
entusiasmado! Mas eu gosto imenso de tocar em Portugal…
JazzLogical: Este concerto muito em particular… Charlie Haden é outro
músico muito conhecido em Portugal…
JazzLogical: Carla, eu creio que vai tocar
na próxima primavera de novo
em Portugal… Com a Big Band?
Carla Bley: Eu não sei. Nunca sei. Mas não será com a
Big Band. Provavelmente será com Paolo Fresu. «The
Lost Chords meets Paolo Fresu». Mas eu não
sabia que ia tocar em Portugal.
JazzLogical: Que formação é?
Quarteto?
Carla Bley:
Não, quinteto. Cinco peças.
JazzLogical: Já existe um disco?
Carla Bley: Não. Ainda nem está escrito. Vou começar a
escrever em Janeiro. De Janeiro até Março ou Abril. E vamos fazer
uma tournée em Maio. Ainda nem comecei a escrever. Conhece um trompetista
chamado Paolo Fresu? É para ele que eu vou escrever. Ele está na
minha banda agora.
JazzLogical: E quem mais faz parte do quinteto?
Carla Bley: Andy Sheppard, Steve Swallow,
Billy Drummond. Vai chamar-se «The
Lost Chords meets Paolo Fresu». Eu conheci-o há pouco
tempo. Eu não conhecia a sua música e então
pensei: eu tenho de escrever para este tipo. É um músico
fantástico!
JazzLogical: Não vai ser um disco tão «politizado» como
o Looking For America?
Carla Bley: Nada disso. Vão ser apenas composições
minhas que eu vou escrever para Paolo Fresu.
JazzLogical:
Esse vai ser o seu próximo disco?
Carla
Bley:
Não! O meu novo trabalho vai sair já no próximo ano.
Estivemos a gravar no verão passado… Eu viajei com a Big Band
durante três semanas. Durante um ano eu escrevi música baseada
em canções
populares americanas dos anos 50. Tin Pan Alley e coisas dessas… porque
quando eu tinha 17 anos eu trabalhei no Birdland como cigarette
girl, outras
vezes como fotógrafa…
JazzLogical: Então isso não é uma
lenda? Toda a gente fala nisso…
Carla Bley: Não! Eu estava lá para
ouvir Count Basie, para ouvir Jazz e para aprender a ser
como eles. Ouvi-o centenas de
vezes! Vendi-lhe cigarros… Bom,
como era Count Basie eu dava-lhe os cigarros… Eu tinha
que o ouvir. E ouvia todas as outras big bands… Gil
Evans, tantas que já nem me lembro dos nomes.
Eles tocavam em night clubs. Podia ficar-se
mesmo a dois passos de pessoas como Joe Williams. As
pessoas não eram nada formais… riam, batiam
com os pés…entre
os sets falavam…bebiam, fumavam, falavam, tudo isso… e
agora quando vamos a concertos temos toda a gente sentada
nas suas cadeiras muito direita
e muito séria, por vezes parecem gado nos currais
muito alinhados e direitos. Há toda uma atmosfera
que se perdeu. Eu quero trazer de volta a atmosfera desse
tempo, dos Night
Clubs…
Então eu perguntei ao New Morning em Paris se podia
ter duas noites com a Big Band porque eu queria gravar
ao vivo, música que soasse como
nos anos 50. Então eu escrevi-a, e claro que não
soa como nesse tempo, mas tem esse sabor, daquelas canções
populares…
JazzLogical: Vai haver um disco disso...
Carla Bley: Foi gravado ao vivo. Tem
a participação da audiência… maravilhosa,
incrível. Parecia mesmo os velhos tempos. A mistura
que fizemos procurou obter a atmosfera desse tempo. Podemos
ouvir a audiência a falar, a banda
a falar, foram umas noites realmente descontraídas.
Nada de política
ou acção. Eisenhower era o presidente na
altura. Nós éramos
todos ignorantes.
Vai sair na próxima primavera. No final da primavera.
JazzLogical: Eu conheci a sua música
pela primeira vez com um célebre
disco, à frente da Jazz Composers Orchestra Association,
dos anos 60. Recorda-se disso?
Carla Bley: Uau! A sério? Isso
foi noutra vida!
JazzLogical: A sua música mudou imenso desde então. O que é que
mudou na sua música e no Jazz desde esses tempos
do Free Jazz?
Carla Bley: Todos mudámos. Mas eu não sei o que mudou no Jazz.
Eu faço o que faço, apenas. Eu estou muito mais conservadora.
Quando comecei eu queria mudar a música. Queria descobrir novas notas.
Queria ser importante. Conforme fui crescendo eu apenas queria ser boa naquilo
que fazia. E acho que fui conseguindo ser cada vez melhor. Mas deixei de querer
mudar a música. Agora eu sou tão conservadora
quanto se pode ser.
JazzLogical: A Carla é uma compositora
e tem algumas temas que são
verdadeiros standards de pianista. Mas a maior parte
das vezes o que produz são trabalhos sobre coisas
que já existem. Sobre músicas que outros
escreverem.
Carla Bley: Agora mesmo eu estava a escrever
sobre canções de
Natal no meu quarto lá em cima. Para um concerto
na próxima semana
na Alemanha. Tem razão: eu escrevo sobre coisas
que outros compuseram. Eu pego nelas e transformo-as, arranjo-as.
O mesmo se passa com Charlie (Haden), por exemplo «America
the Beautiful»... E acredite: é mais fácil
do que escrever originais. É diferente sentarmo-nos
em frente a uma página em
branco ou sentarmo-nos em frente a «God Bless America» ou
outra coisa qualquer. Hoje acabei «Oh Holly Night».
Para um quinteto de sopros. É verdade, eu faço
isso. Não sei realmente
porquê. Talvez porque eu tenha medo de não
ter nada. Bom, com Paolo Fresu eu não tenho nada.
JazzLogical: São só originais?
Carla Bley: Não. É impossível para mim em quatro meses
escrever duas horas de música. Eu apenas serei capaz de escrever talvez
quatro novas peças. O resto serão arranjos
de coisas velhas.
JazzLogical: Jazz standards?
Carla Bley: Oh que boa ideia!
JazzLogical. Nunca toca standards…
Carla Bley: Por acaso no novo álbum com a big
band eu toco «I
hadn't any one till you» (Carla Bley trauteia). Mas acho que os standards
com o Paolo serão uma óptima ideia…
JazzLogical: Uma última pergunta. Disse que não sabia o que era
o Jazz actual. Não ouve Jazz?
Carla Bley: Eu nunca ouço música
nenhuma a não ser a minha. Porque
eu estou sempre no meu quarto. A escrever. Mas eu vim cá a
noite passada ao concerto com Dave Liebman com a big band.
Eu simplesmente não podia
acreditar: ele é um verdadeiro mestre. Ele nem sequer
precisa de instrumento. O homem simplesmente é a
música. Ele é sobrenatural. Eu
não consigo pensar em ninguém melhor neste
momento do que ele. Quem é melhor que Dave Liebman?
Eu não sabia isso até há duas
noites atrás. Porque eu acho que nunca o tinha ouvido
tocar. Steve Swallow toca imensas vezes com David Liebman,
mas eu não vou a concertos. Eu
não tinha ideia que ele fosse tão grande.
Bom, realmente eu não vou a concertos. E também não ouço
discos porque estou sempre ocupada a trabalhar. De certa
forma eu estou sempre no meu pequeno mundo…
JazzLogical: Não é nada o que transparece da sua música;
do que ouvimos sente-se um conhecimento muito vasto de todas as músicas.
Carla Bley: Mas é verdade. Acho que isso se deve ter passado quando
era nova… Acho que absorvi tudo durante … vinte anos. E agora é só deitar
para fora, para fora…
Mas
há sempre três meses por ano em que eu ouço música.
O ano passado ouvi tudo o que Count Basie fez e no ano anterior eu ouvi tudo
o que Beethoven fez e no ano anterior eu ouvi o que o grande moderno compositor
americano Charles Warren fez. Oh, e ouvi a Gerry Mulligan Big Band. Eu estudo
música três meses por ano. Mas no resto do
ano eu apenas escrevo.
Entrevista de Leonel Santos em 19 Novembro 2006
Looking For America
The Carla Bley Big Band
Looking For America
(Watt)
2003, rec. New York, 2002
Class: 5/5 (*****)
Carla Bley é uma das grandes senhoras do Jazz contemporâneo. "Looking For America" composto (e gravado) no rescaldo do 11 de Setembro é um olhar crítico sobre a América conservadora, retrógrada e incendiária. Era perigoso questionar os porquês do 11 de Setembro em 2002. Hoje as coisas são mais claras. "Looking For America" é um retrato também musical da América, com referências a tudo, desde o Star Spangled Banner às brass bands, à folk e ao country e à pop, envolvidos num turbilhão de ideias e formas sempre em mutação; humor e surpresa atrás de surpresa. "Looking For America" é um olhar lúcido sobre as américas política, social e musical dirigido por uma genial compositora. Depois a orquestra: os músicos da orquestra de Carla Bley são la crème de la crème, mas também eles revelam a líder que Carla Bley é. Eles são aqueles músicos e os arranjos que ela produz destinam-se exactamente a eles, à boa maneira ellingtoniana.
Uma das grandes obras de Carla Bley!