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30 anos de Cascais Jazz
Fez em Novembro passado trinta anos! Foi em 20 e 21 de Novembro de 1971.
Estava-se em plena “primavera marcelista”. Era Outono e por toda
a Lisboa não se falava noutra coisa! Alguns jornais, rádio e
mesmo a televisão interrompiam a costumeira verborreia institucional
para antecipar o I Festival de Jazz de Cascais! Em abono da verdade,
este era
de facto o segundo evento do género em apenas quatro meses. Que o Agosto
anterior tinha já visto reunir, num acontecimento não enquadrado
pela Mocidade Portuguesa, Nossa Senhora de Fátima, o futebol ou qualquer
instituição bafienta mais ou menos naftalinizada, mais de uma
dezena de milhar de jovens, em Vilar de Mouros, para um Festival de Música
onde os cabeças de cartaz eram os Manfred Mann e o (então) jovem
Elton John!. Apesar do sucesso, o Vilar de Mouros teria segunda edição
apenas dez anos depois.
Mas Vilar de Mouros era lá longe, no Norte, ao pé de Caminha
e Cascais era mesmo aqui ao lado da Capital do Império e a coisa auspiciava-se
incómoda.
A organização estava a cabo de um trio composto por Luis Vilas-Boas,
João Braga e Hugo Mendes Lourenço, mas inquestionavelmente Vilas-Boas,
o sócio n.º 1 do Hot Club de Portugal, era a cabeça do Festival.
O programa era de tal forma ambicioso, que fez dele o mais importante dos festivais
de Jazz de sempre, até hoje: o quarteto de Ornette Coleman (com Charlie
Haden, Ed Blackwell e Dewey Redman), o Jazz eléctrico de Miles Davis
(em septeto com Keith Jarrett e Gary Bartz), Joe Turner e Dexter Gordon, Phil
Woods And His European Rhythm Machine (Gordon Beck, Ron Mathewson e Daniel
Humair), os Giants Of Jazz (com Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Sonny Stitt,
Kai Winding, Al Mckibbon e Art Blakey) e ainda um quarteto nacional, “The
Bridge”, composto da vedeta Kevin Hoidale nos teclados, o contrabaixista
Jean Sarbib, um tal de Adrien Ransy na bateria e um saxofonista que dava pelo
nome de João Ramos Jorge, que mais tarde adoptaria o nome por que ainda
hoje é conhecido, Rão Kyao.
Para o público, aquela era uma festa de música mas, tão
importante quanto isso, era uma oportunidade única de contestação
ao regime decrépito que acabaria por cair dois anos e meio após.
A música e o Jazz apareciam na sua aparente total liberdade formal como
expressão dessa contestação aos valores culturais instituídos,
o fado – a desgraça do ser português – o folclore
purulento ou as touradas à portuguesa.
E só nesta necessidade de contestação primária
se poderá compreender um pouco algum mau comportamento do público,
a desatenção, ou as enormes vaias com que Luis Vilas-Boas era
brindado sempre que aparecia em palco e que muito o desgostavam.
Os
organizadores poderiam contar inúmeras histórias, as peripécias
rocambolescas do que significou realizar um Festival de Jazz em 1971. Umas
histórias contarão como os sponsors retiraram o apoio em cima
da hora, deixando o festival inteiramente a descoberto (apenas tendo sido salvo
pelo sucesso de bilheteira), ou como aparecia o fadista João Braga ao
lado de Luis Vilas-Boas na organização do Cascais Jazz.
Mas talvez que a mais contada da histórias seja a de Charlie Haden:
curiosamente o único músico branco do quarteto de Ornette Coleman,
o contrabaixista dedicou uma das composições aos movimentos de
libertação de Angola, Moçambique e Guiné. E mais
não foi necessário para se desencadear um enorme pandemónio:
era o momento por que aguardavam os militantes da extrema esquerda para encher
o pavilhão de panfletos contra a guerra colonial, enquanto os quase
dez mil assistentes se manifestavam ruidosamente. A polícia de choque
que estava estrategicamente colocada na rua ao lado do pavilhão achou
da mesma forma que esta era a sua deixa “para molhar a sopa” e
resolveu invadir o recinto. Felizmente o pavilhão estava cheio que nem
um ovo e àquela hora já ninguém conseguiria entrar nem
que tivesse bilhete!
No fim da noite, a PIDE aguardava Charlie Haden e Luis Vilas-Boas que se revolvia
a explicar que não tinha tido nenhuma culpa no sucedido e que tal se
não voltaria a repetir. Várias horas se passaram até o “Vilas” conseguir
autorização para a segunda noite do festival, com a promessa
de ser este o último festival de Jazz em Portugal (as coisas não
se passaram assim e em 1972 ocorreria a segunda edição). Entre
os vários argumentos, prevaleceu o bom senso: estavam em Cascais, literalmente
acampados, dez mil jovens, e iria ser muito complicado desmobilizá-los
da sua intenção de assistir ao concerto dos “Giants Of
Jazz”!
Quanto ao Charlie Haden, depois de umas horas no calabouço, valeu-lhe
a sua qualidade de cidadão norte-americano e a intervenção
da embaixada dos EUA que convenceram a PIDE a oferecer a viagem grátis,
com direito a escolta VIP, até ao Aeroporto da Portela. Charlie Haden
não mais entrou em Portugal antes do 25 de Abril de 1974, mas de qualquer
forma, não seria o Vilas que o contrataria, que por pouco lhe tinha
acabado o festival, logo no seu primeiro dia. Luis Vilas-Boas nunca mais quis
ouvir falar de Charlie Haden.
Para a maior parte da assistência, maioritariamente jovem, estes dois
dias foram o seu baptismo no Jazz. O que ali se passou marcaria de certa forma
os gostos de toda uma geração. Entre Ornette, Miles Davis, Giants
of Jazz e Pilll Woods, a música de Miles leva claramente vantagem pela
aura de misticismo e modernidade que a envolvia, embora seja de admitir que
poucos terão percebido verdadeiramente o que ali se tinha passado. Este
não era claramente público do Jazz, mas o Jazz colheu aqui a
simpatia de muitos milhares de jovens.
Vale a pena notar como a escolha de Luis Vilas-Boas era bastante criteriosa
e mesmo audaciosa, ao pretender realizar um festival que espelhasse as diversas
tendências do Jazz que se fazia na altura. Por outro lado, uma relação
próxima com George Wein, o patrão do Newport em digressão,
facilitava-lhe a tarefa da programação.
A primeira noite foi dedicada ao Jazz moderno, enquanto a segunda alinhava
mais pelo mainstream.
O Jazz “eléctrico” de Miles Davis tinha surgido apenas dois
anos antes com “Bitches Brew” e a formação que tocou
em Cascais continha ainda uma componente “africana”, com dois percussionistas
além do baterista. Keith Jarrett foi fantástico! tocou rodeado
de teclados e a cabeleira enorme foi o contraponto às intervenções
de Miles. A figura de Miles passeou-se lentamente pelo palco vestido de reflexos
prateados e suor. Mesmo para quem já alguma vez tinha ouvido o som de
uma trompete, aquela coisa era mesmo muito estranha! Miles era a personificação
da modernidade do Jazz e o público assim o entendeu.
Ornette era o profeta do Free Jazz e a intervenção de Haden estava
de acordo com os ideólogos que ligavam intimamente o advento do Free
Jazz e a Revolução iminente (“Free Jazz/ Black Power”,
Philippe Carles, e Jean-Louis Comolli). Provavelmente pouco da assistência
terá compreendido o que se passou (de música falando) no palco
da intervenção do quarteto de Ornette Coleman, Mas isso também
não era muito importante. Ornette foi caótico, demolidor, free!
Mas o final de Sábado ainda reservaria a Cascais uma boa surpresa com
a actuação de Dexter Gordon, que tocou acompanhado de um grupo
português composto por Marcos Resende no piano, Jean Sarbib e Manuel
Jorge Veloso na bateria.
A seguir foi a vez do hard-bop peculiar da “European Rhythm Machine” de
Phil Woods que contaminou o pavilhão com o seu ritmo avassalador. Músicos
como Daniel Humair fazem sempre a diferença e Woods estava auge da sua
energia.
Poucos se terão apercebido de que pelo palco do segundo dia do festival
passavam verdadeiras lendas do Jazz. E se o bop tinha já 30 anos, Dizzy
Gillespie continuaria a fazer bons discos e os Messengers de Art Blakey seriam
ainda por muito tempo a fábrica de talentos que haveria de gerar, por
exemplo, os irmãos Marsalis. Mas Monk retirar-se-ia das lides pouco
depois e o bebop pertencia, de facto, já por essa altura, à história.
Os “Giants of Jazz” eram de certa forma o canto do cisne do bop.
Devo confessar que, também no que me respeitava, o festival era uma
verdadeira overdose para quem ouvia Jazz pela primeira vez na vida (de tudo,
aliás, e não apenas de Jazz). Da noite de Domingo, dos “Giants
Of Jazz”, recordo as bochechas e a alegria de Dizzy Gillespie e a energia
contagiante de Art Blakey, mas ignorei quase inteiramente Thelonious Monk ou
Sonny Stitt.
A ajudar a impaciência do público, os concertos começavam
sempre tardíssimo e entre cada grupo mediava com frequência uma
hora, que a organização aproveitava para fazer passar alguma
publicidade. As mudanças de equipamento eram um desastre e o público
não poupava nos assobios. Comparado com o profissionalismo e a velocidade
com que hoje qualquer anónima banda muda todo um palco, aquilo era mesmo
o paleolítico...
Do lado da plateia e das bancadas imperavam os coloridos, as barbas, as jeans,
os charros e o álcool, os panfletos, ruído, irreverência,
amor, juventude e uma alegria muito grande. Os bancos eram duros e frios (cimento)
e o fumo coabitava com o barulho. Nas duas noites passaram pelo Pavilhão
do Dramático Cascais mais de quinze mil pessoas! O pavilhão,
esse, era um mastodonte frio e surdo, de acústica deficiente. E a acrescer às
condições acústicas, havia a impossível situação
visual de uma boa parte da assistência que estava colocada numa das bancadas
por detrás do palco. Se se souber que a parafernália do septeto
do Miles Davis tinha vários metros de altura de colunas e aparelhagem
de toda a espécie, poderá perceber-se o que (não) viu
essa fatia da assistência...
Com tudo isto, quatro grupos por noite, confusão, entusiasmo, histórias
rocambolescas e atrasos intermináveis, a hora de acabar o festival era
muito próxima das cinco da manhã... Mas a organização – previdente – tinha
providenciado um comboio especial de regresso à capital. E acreditem
que era mesmo muito estranho, em 1971, passear por Lisboa às 6 da manhã!
Fez
em Novembro passado 30 anos! Irrepetível e inesquecível,
ele foi o mais importante festival de Jazz de sempre em Portugal! E
se é verdade
que o Hot Club de Portugal tinha já por essa altura 20 anos de idade
e que a rádio passava até, desde 1966, cinco minutos de Jazz
por dia, o I Festival Internacional de Jazz de Cascais foi verdadeiramente
o primeiro
encontro do (grande) público português com o Jazz.
Leonel Santos