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Jazz, música em conflito

 

O Jazz não é uma música de fácil definição. Nada do que é produção humana o é, nenhuma linguagem, nenhuma forma de arte, nenhuma cultura, mas o Jazz é de particular complexidade devido às contradições que lhe assistiram ao parto e à forma como se desenvolveu.

Se existe forma musical que se possa definir como multicultural, ela é o Jazz: o Jazz não é música negra ou branca; mas o Jazz também não é música popular ou erudita, o Jazz não é música improvisada ou música escrita ou, talvez melhor, pelo contrário, o Jazz é música negra e branca e popular e erudita e improvisada e escrita.

O Jazz foi marcado desde o primeiro momento pela própria sociedade particular onde nasceu, no sul dos Estados Unidos, num período conturbado que ainda tinha muito presentes as memórias do esclavagismo, num caldeirão de culturas onde se encontravam brancos e negros e crioulos de várias origens, que faz nascer uma música que se relacionava com todas as outras de forma conflituosa, apropriando-se dos seus elementos característicos de forma agressiva.
Nunca de forma pacífica, mas conflituosa, de forma que o próprio conflito faz parte da sua definição; conflito que é musical, mas também cultural e social.

O conflito é uma constante na evolução do Jazz, está presente em todos os momentos, na sua história, nas correntes que o atravessaram e o questionaram, entre as músicas com que se relacionou, que produziu ou que incorporou, questionando o passado e o futuro, a tradição e a inovação, a improvisação e a escrita, o individual e o colectivo, entre o popular e o erudito, entre o espectáculo e a arte, o Jazz e as outras músicas. O conflito é agente e estrutura; o conflito parece alimentá-lo: o Jazz contra o Jazz.

1.º Conflito: cultural/ étnico – branco X negro
O Jazz não é uma música negra ou uma música branca. A maioria dos indivíduos que a tocaram durante um largo período foram de facto negros descendentes dos escravos do sul dos Estados Unidos, mas a música que produziram não era verdadeiramente «música negra» (a música negra tradicional, ou o que se chama hoje de música de tradição afro-americana, sejam os blues, as worksongs e os espirituais - música religiosa de que os escravos se apropriaram).
Talvez que a melhor evidência dessa natureza multicultural do Jazz se encontre no nome dalgumas das mais importantes bandas desse período original: a Creole Jazz Band de King Oliver e Louis Armstrong, ou a The Original Creole Orchestra, que assumiam descomplexadamente a natureza «bastarda» do seu Jazz.
Inúmeros músicos eram de facto crioulos, e entre os mais conhecidos estão King Oliver e Freddie Keppard, Sidney Bechet, ou Sidney de Paris, ou ainda Jelly Roll Morton – Ferdinand Joseph La Menthe – cujo nome denunciava a ascendência francesa, ou ainda Duke Ellington ou a mulher de Louis Armstrong, Lil Hardin.
 Não se trata obviamente de uma questão de raça, mas de culturas. A cultura europeia é uma cultura de tradição escrita, visual, ou onde a escrita é predominante, e a cultura africana é uma cultura oral ou áudio-táctil.
O Jazz nasce deste conflito entre duas culturas: entre a tradição escrita e a tradição oral, táctil-física (que se reflecte na dança e no ritmo).
O Jazz vive pois num equilíbrio instável, num conflito que que é intercultural.

2.º conflito: instrumental – Instrumentos tradicionais negros X instrumentos da música ocidental
Um segundo conflito assinalável, na instrumentação Jazz, decorre do primeiro, nos instrumentos que são tocados, e na forma como são tocados.
Os instrumentos tradicionais negros-americanos eram a guitarra, a percussão e a voz (blues, worksongs), mas também o órgão (spirituals).
O Jazz acrescentou os instrumentos de sopro, adoptou o banjo e criou a bateria e um pouco mais tarde o piano. Os instrumentos de sopro foram provavelmente trazidos da guerra da secessão (1861 – 1865).
As bandas de rua não tinham piano, introduzido/herdado (pelos pianistas de ragtime e boogie-woogie) quando o Jazz passou para as salas de concerto ou os bares.
Ao adoptar os instrumentos de sopro e o piano, o Jazz começou a deixar de ser um folclore.
Nesta adopção dos instrumentos ocidentais, o Jazz altera (ou prolonga, ou reinventa) a forma tradicional de como os instrumentos eram tocados, utilizando-os nos seus limites, percutindo-os, raspando, entre o zunido (e o silêncio) e o ruído, apropriando-se deles, desafiando as convenções e a própria noção do instrumento na forma como ele tinha sido concebido para tocar. A própria forma que os primeiros pianistas desenvolveram, percussiva e pesada, o stride piano, era tudo menos clássica e chocava com a forma tradicional de tocar. 

3.º conflito: Jazz - afirmação cultural/política X música, contra-cultura X integração 
Se o Jazz enquanto forma musical não pode ser definido em rigor como negra (por ter procurado noutras culturas algumas das suas componentes musicais estruturantes), o facto de ele ter sido tocado maioritariamente por negros ou, ainda que por crioulos, de alguma forma descendentes dos escravos negros americanos, levou-o a ser assumido como música sua. A própria América segregacionista distinguia o Jazz como música negra, mesmo quando não era tocado por negros, depreciando-a. O Jazz foi ao longo de muitas décadas a música que só quase os negros sabiam verdadeiramente tocar, os negros como cultura que orgulhosamente se distinguia contra a cultura ocidental.
Contraditoriamente, porque o Jazz exigia para si o reconhecimento de música séria que muitos lhe não atribuíam, mas ainda assim um largo sector da comunidade musical o compreendeu desde muito cedo (Leonard Bernstein), e claramente na Europa. Na América, genericamente, e pelo contrário, o Jazz apenas começou a ser tomado a sério depois de começar a ser tocado pelas orquestras de swing brancas, e mesmo assim como música de entretenimento, destinado a dançar.
Os clubes tinham sido alguns dos palcos privilegiados dos músicos de Jazz desde Storyville, e assim continuou ao longo dos anos 20 e 30, com as orquestras de swing, nas salas de baile, ou nos clubes e bares (por vezes misturado com os gangsters e a prostituição), onde por vezes o entretenimento se confrontava com a música; e apenas muito tarde as grandes salas de espectáculo abriram as suas portas aos concertos e aos músicos de Jazz. Mas o Jazz começava a aparecer no cinema, ainda que marginalmente, e o showbiz e a indústria fonográfica começou a partir dos anos 30 a interessar-se pelo Jazz, que se tornaria mesmo uma das suas principais fontes de rendimento.
A par do conflito música popular X música erudita, de que à frente falaremos, existia latente um conflito que era basicamente cultural, entre o Jazz como cultura, ou como componente da cultura negra, ou do que os negros se reivindicavam e como os brancos depreciativamente consideravam, e o Jazz que se pretendia apenas música ou forma de arte. Este conflito assumiu contornos políticos de afirmação identitária bastante claros no be-bop, mas principalmente nos anos 70 com os movimentos free, com Max Roach, Archie Shepp, Charlie Mingus ou Charlie Haden (e Duke Ellington: «Money Jungle»), acompanhando os movimentos radicais negros e os movimentos de contra-cultura americana , que se prolongaram pela literatura (Jack Kerouac), poesia (Amiri Baraka), à banda desenhada (Crumb), etc.
Sendo verdade que, mercê da aceitação universal do Jazz, ele tenha perdido muito deste conflito cultural/ político, seja curioso verificar, por exemplo, que uma boa parte da comunidade jazzística nova-iorquina seja constituída por judeus ou que o Jazz cigano tenha ganho autonomia como forma musical popular, ou que, por outro lado, continuem a surgir discos profundamente marcados pela política (Matana Roberts ou mesmo, um dos membros mais proeminentes do clã Marsalis, Delfeao, que fez em 2016 um disco anti-Trump).

4.º conflito: improvisação X escrita
Um terceiro conflito é o que opõe a improvisação à escrita, a composição e o arranjo; e poderíamos fazer uma conferência subordinada apenas a este tema.
A improvisação faz parte da definição do Jazz, mas o Jazz não é a única música improvisada. Muitos folclores são baseados na improvisação e alguma música contemporânea erudita introduziu a improvisação.
A improvisação é o acto de fazer música sem qualquer plano prévio, música que se realiza ou se inventa de repente sem qualquer preparação anterior, eventualmente sobre uma melodia ou um ritmo já existente, ou uma parte de uma composição.
Os músicos de Jazz não se limitam a tocar o que está escrito (de facto nos primeiros tempos muitos músicos nem sequer sabiam ler uma pauta), mas têm de saber tocar sobre a composição. Ao contrário dos músicos clássicos que procuram reproduzir fielmente o que está na pauta, os músicos de Jazz alteram-nas, inventam, interrogam, sublinham, acrescentam, suprimem, criam novas melodias, harmonias e ritmos.
Não se trata de fazer covers, não se trata de fazer versões, trata-se de reinventar a canção. Muitas vezes o tema é apenas o argumento, outras introduzir-lhe um arranjo que a reinventa, outra inventar ao longo do concerto.
A improvisação levanta muitas questões, nomeadamente em torno do que se chama hoje a música improvisada, ou a improvisação livre.
Música improvisada é um nome infeliz, porque demasiado abrangente, mas também a improvisação livre foge claramente da concepção de Jazz, em grande medida porque lhe falta o conflito que resulta da relação da improvisação com a escrita, resultando numa música pobre, porque improvisa sobre nada.     
O conflito improvisação – escrita é uma das fontes da riqueza do Jazz, e será também óbvio que o Jazz mais académico, que é Jazz apenas porque que obedece aos cânones do Jazz clássico ou reproduz os solos de outros, esquecendo-se de improvisar, é um Jazz mais pobre, exactamente porque não possui este elemento de conflito.
Mas o Jazz não é uma forma musical improvisada «pura» ou uma música escrita «pura», mas as duas coisas. Não a síntese da escrita e da improvisação, mas a escrita em conflito com a improvisação.

5.º conflito: tradição X inovação
Se num primeiro momento os temas de Jazz eram relativamente simples, e eram blues ou rags, a partir do qual os músicos improvisavam, logo com Duke Ellington, a composição e a orquestração passaram a ter papéis fundamentais. E Ellington será mesmo um músico paradigmático deste conflito permanente de que o Jazz se alimenta, entre a escrita e a improvisação. 
O passado e o futuro, a tradição e a inovação, o conflito entes eles, é outro dos elementos conflituais assinaláveis e distintivos do Jazz sobre as outras correntes e estilos musicais.
Este conflito, entre a tradição e a inovação, será mesmo porventura o mais evidente dos conflitos que desde sempre atravessou o Jazz, revelado em evidência pelos inúmeros autores que apaixonadamente escreveram sobre o Jazz, e na própria música, nas correntes musicais que o atravessaram, que se questionavam em busca do passado ou do futuro.
A erudição de Duke Ellington questionava o carácter mais popular do Jazz de New Orleans.
O bebop surgiu como salto evolutivo, mas também como contestação do Jazz «integrado» das orquestras de swing para onde o Jazz tinha desembocado.
Ora nos anos 50, no pico do bebop, em paralelo apareceu um forte movimento revivalista do Jazz de New Orleans.
O bebop aparecia como movimento (contraditório) recuperador do espírito do Jazz, mas desde logo foi contestado, e até pelos mesmos músicos, no nascimento do cool (como Miles Davis).
O west coast e o cool pareciam contestar a tradição Jazz (e o bop) ao privilegiar a escrita, a melodia e o arranjo. 
O hard-bop surge como recuperação da energia e do espírito do Jazz, com muito da tradição, contestando o Jazz mais melódico e escrito; e a new thing de Shepp e Coltrane vai também neste sentido.
Na actualidade os movimentos mais vanguardistas ou eruditos, John Hollenbeck ou Darcy James Argue, para dar dois exemplos orquestrais, têm como opositor o movimento de recuperação do Jazz de New Orleans a Lincoln Jazz Orchestra de Wynton Marsalis.

6.º conflito: indivíduo X colectivo, a improvisação colectiva, a competição
A música pode ser tocada por um indivíduo ou por vários. Espera-se que quando vários indivíduos toquem em conjunto, se coordenem, se ouçam, e que o objecto seja apenas a composição, ou que pelo menos (nalguma música popular) possuam algum elo de ligação; mas sempre que ajam colectivamente.
Nas músicas populares, os solitários tocavam uma música ou cantavam, mas se eram acompanhados – o termo é «acompanhados» - tocavam todos a mesma música de forma coordenada.
As música populares estavam e estão também associadas a rituais ou a objectivos, como a dança, onde outros indivíduos que não músicos se associavam (ao ritual ou à dança).
Nas músicas clássicas e eruditas o objecto é a composição (a interpretação da composição), é o objectivo, e os músicos intérpretes dissolvem-se no todo.
No Jazz o indivíduo detém um papel crucial.
Se na música clássica os únicos músicos citados são praticamente sempre os compositores, os autores das obras, e os membros das orquestras são quase sempre anónimos intérpretes, eventualmente conhecidos dentro do meio, no Jazz todos sabem o nome de cada músico e as bandas têm quase sempre o nome do líder. Desde sempre King Oliver, Louis Armstrong, Charlie Parker, Thelonious Monk, John Coltrane, mas também ainda hoje se sabe o nome dos músicos do quarteto de Coltrane ou o quinteto de Miles e mesmo da orquestra de Duke Ellington, e os especialistas-fanáticos fazem notar cada substituição na banda, ou o mau humor de um ou outro músico.
As orquestras clássicas têm o nome das instituições, e sabe-se o nome apenas do maestro ou quando muito do solista convidado. Mas o maestro muda e poucos sabem.
Ora no Jazz os combos têm quase sempre o nome do líder.
Na pop music os grupos (os «conjuntos») têm um nome colectivo: os Beatles, os Rolling Stones, etc… e se o rock ainda assim herdou um pouco da tradição do Jazz, ninguém sabe o nome dos músicos dos Doors, para além de Jim Morrison, ou do baterista dos Oasis, ou do baixista dos Queen, e normalmente conhece-se apenas o nome do vocalista. No Jazz metade da sala conhece todos os músicos que tocam num concerto.
O Jazz é música individualista por excelência. Todos os críticos e historiadores notaram «Os Grandes Individualistas», como os músicos que se notaram pelas explorações instrumentais, pelas composições ou interpretações, e pelo cunho que cada indivíduo empresta ao todo.
Nas orquestras de Jazz, o nome dos músicos vêm em todos os discos e sabe-se sempre quem tocou com quem e aonde.
Ora se o Jazz é uma música de personalidades, individualista se diria, os músicos trabalham sempre para um todo: nenhuma música é também tão colectiva. Os músicos treinam-se, não apenas para ler o que está escrito, mas para se ouvir e desafiar colectivamente, pare se completar, para reagir ao milésimo de segundo ao que o parceiro toca. Não lhe basta conhecer a composição ou treinar a leitura, o músico de Jazz treina-se como músico activo de um colectivo que parece não obedecer à regularidade, reagindo não apenas aos acidentes da leitura, mas às improvisações dos seus companheiros. Ninguém pode ser músico de Jazz sem ser um bom ouvinte e sem ser um eficaz membro do colectivo, e os melhores são os que afirmam a sua personalidade musical nesse todo.
O conflito personalidade – colectivo é uma permanente no Jazz; o colectivo a sobrepor-se às personalidades e cada personalidade a interferir e a completar o todo.
O Jazz é uma música individual colectiva, o Jazz vive desta oposição que não pretende resolver, ou que apenas almeja resolver em cada concerto.
 
Notável é o que se denomina de «improvisação colectiva», e onde se torna evidente o conflito indivíduo X colectivo, em que vários músicos improvisam sobre um mesmo objecto, desafiando-se, competindo e, simultaneamente, complementando-se. Em especial nas jam sessions, a partir de um argumento simples, um standard ou um trecho de uma composição, os músicos são levados a apresentar todos os seus conhecimentos e todos os seus recursos estilísticos e técnicos e simultaneamente a sua personalidade, com um objectivo que é inequivocamente colectivo.  

7.º conflito: Música popular X música erudita – espectáculo X arte
O Jazz é a mais popular das músicas eruditas e a mais erudita das músicas populares.
As músicas populares ou folclóricas são por definição simples na construção e na interpretação, com frequência de tradição oral, destinando-se por norma também aos indivíduos com menos formação musical académica/ intelectual. Dirige-se para as massas, pertencendo a uma cultura que se pretende «popular» (ou pop ou folk), do povo para o povo.
Pelo contrário a música erudita é realizada por indivíduos de maior formação musical e destina-se a uma elite de indivíduos de maior formação «intelectual», a um auditório conhecedor.
A música erudita vale normalmente por si mesma, assumindo-se como uma arte, não sendo destinada à dança, ou à participação do público, mas simplesmente à apreciação.
O Jazz vive desde os seus primórdios uma contradição. Por um lado, o Jazz de New Orleans é claramente popular, porque era vivido e dançado por uma larga faixa da população negra, mestiça e crioula, mas alguns dos seus mestres eram indivíduos que sabiam música e que viviam da interpretação, relativamente eruditos. Mas apesar dessa erudição, ele era primordialmente uma música popular, «funcional», epidérmica, muito participada, ritmada e dançável e dançada.
Num período imediatamente posterior, o Jazz introduziu de forma clara a escrita na composição e nos arranjos, sendo o exemplo mais notável o de Duke Ellington. Mas poderíamos citar o nome de quase todas as orquestras de swing, e o que se chamou de «jazz branco», entre Paul Whiteman e Glenn Miller, que é por um lado o adocicar das melodias, burilando as arestas do Jazz, mas é também o privilégio da escrita sobre a improvisação. O swing alargou o auditório para o público branco, mantendo a pressão rítmica, mas em grande medida era música feita para dançar e divertir.
Se o be-bop contestava a integração do Jazz no show-business, num retorno ao espírito do Jazz (o que quer que ele fosse), as inovações estéticas que introduziu, no ritmo e na harmonia, e na própria instrumentação, vulgarizando as dissonâncias (que irritavam muitos músicos de Jazz mais conservadores) e revolucionando as plataformas rítmicas com a introdução da polirritmia, que foi possível através da inovação do instrumento bateria e da evolução da aproximação ao instrumento que exigia a independência absoluta dos quatro membros, revelam uma contradição e um conflito, que era também entre o espírito original do Jazz «popular» por definição e a erudição que o atirava para as caves dos bares (onde uma parte do Jazz aliás tinha nascido), para um público restrito, que não dançava, e apenas podia aplaudir, como uma obra de arte.
Podemos historiar o Jazz: às inovações do bebop sucederam-se as inovações do cool jazz, do west coast jazz e da third stream, não apenas oferecendo ao arranjo uma importância sem precedentes, como «amaciando-o» e introduzindo toda uma série de elementos caros à música clássica e uma complexidade que ele ainda não tinha experimentado, com a excepção talvez para Duke Ellington. Mas Lennie Tristano, Lee Konitz, Gil Evans, Jimmy Giuffre, John Lewis, bem diferentes entre si, possuíam formação clássica e foram capazes de introduzir inovações conceptuais no Jazz que lhe modificaram a face.
Se o Jazz se tornava «audível» para muitos ouvidos ocidentais (Modern Jazz Quartet), as inovações de Tristano, Giuffre ou Gil Evans escandalizavam os puristas, mas abriam caminho para o futuro.
Ao hard-bop sucedeu-se o free-jazz, que não é verdadeiramente uma corrente do Jazz, mas uma verdadeira explosão em todos os sentidos: no sentido da música pop e da música erudita ou contemporânea, no sentido do rock, no sentido dos folclores do mundo, no sentido de África, e ao mesmo tempo no sentido de si mesmo e das suas origens, no sentido do passado como no sentido do futuro; verdadeiramente em todos os sentidos.
Claramente Miles Davis foi uma estrela pop, e muito do que fez foi verdadeiramente música pop (mesmo sendo Jazz), mas eu diria que Bitches Brew na sua concepção é uma obra de uma erudição insuperável. Não falando do já caso do Sketches of Spain, onde interpretava Joaquin Rodrigo e Manuel de Falla.
Mas Keith Jarrett que toca Bach e Beatles, é um músico no fio da navalha, entre o músico de Jazz mais vendido de sempre (daí um músico pop) e a erudição que lhe reserva as melhores salas de concerto do mundo.
Nas antípodas está Wynton Marsalis, que pretende fazer da música de New Orleans a música clássica da América. Através do movimento nacional que ensina Jazz – técnicas e história – alterou a concepção como de se faz e se ouve Jazz, transformando-a numa música erudita, tornando-se o alvo privilegiado dos que consideram o Jazz uma música popular e dos que lhe observam que neste processo ele impede o Jazz de evoluir - ambos com razão.
Já nos anos 30 e 40 algumas orquestras faziam duas partes nos concertos. Curioso é que o mais erudito dos músicos de Jazz (Duke Ellington) se considerasse a sim mesmo um simples entertainer.
Já se disse que o bop alterou tudo, quando o Jazz passou a ser tocado por uma elite, e bastaria a velocidade para impedir uma maioria de músicos de conseguir tocá-lo, mas também não era já música construída para dançar, e quando passou para os bares e clubes e o público mudou também.
O bebop pretendia-se agora deixar de ser uma música popular (o que é uma contradição porque procurava recuperar o espírito do Jazz que se tinha perdido com a massificação operado pelo swing) e almejava o estatuto de arte.
Isto foi compreendido na Europa melhor que nos Estados Unidos, não sem grandes polémicas.
Este conflito entre o Jazz que se pretende popular e espectáculo, e o Jazz que se pretende arte, prosseguiu e permanece: Art Blakey ou Jimmy Smith eram músicos populares e o acid-Jazz e o funky procuravam praticavam um Jazz que gerou o soul e o funky e o rock’n’roll, enquanto Jimmy Giuffre praticava um Jazz «de câmara» .
O Jazz não pode ser definível como música popular, devido à sua complexidade e aos seus protagonistas, mas também não é uma música erudita porque se pretende espectacular e porque as suas referências são afinal populares. Mas também o Jazz não está no meio, ele é de facto a mais popular das músicas eruditas, a mais erudita das músicas populares.
Há cinco anos o trio de Keith Jarrett tocou standards de Jazz no CCB e exigiu o mesmo silêncio da audiência que se exige para os concertos de música clássica.

8.º conflito: Jazz X outras músicas
A relação do Jazz com as outras músicas foi sempre conflituosa. Já vimos como o Jazz se relacionava com as suas origens populares e com a música ocidental – os standards e Hollywood -, mas depois desse primeiro momento, o conflito alargou-se a outros folclores e a outras músicas.
Exemplos notáveis são o latin jazz, que é assinalável em Dizzy Gillespie e no Jazz cubano, em África, nas orquestras etíopes, em Abdullah Ibrahim ou Hugh Masekela, cigano – Django Reinhardt, no third stream com a música clássica e erudita, no funky, na soul e no rock’n’roll, no samba-jazz e na música brasileira e, a partir dos anos 60, com a globalização, com o Jazz de influência indiana (Miles e Ravi Shankar) e mais contemporâneo, Rudresh Mahanttappa, árabe – Anouar Brahein ou Rabih Abou-Khalil, rockjazz-rock – Miles Davis, Mahavishnu Orchestra, Weather Report; as músicas pop urbanas – rap e hip-hop – Dave Douglas, Steve Lehman, clássica e erudita – Roland Kirk – John Cage ou Uri Caine; portuguesa – João Barradas.
Mas se Frank Zappa, King Crimson os Soft Machine ou Joni Mitchel, dos anos 70, são claramente influenciados pelo Jazz, o Jazz vocal contemporâneo é notavelmente marcado pelo Jazz, mas também Sting ou Paul Simon, ou Jamiroquai ou os Thrievery Corporation, e o Jazz produziu sub-produtos como o cool-jazz ou o smooth-jazz.
Dir-se-iam processos centrífugos e centrípetos combinados, que trazem para o Jazz elementos externos próprios de outros centros «etnográficos», oferecendo-lhes por outro lado elementos que lhe são próprios, e que vão dos instrumentos (poucas orquestras clássicas ainda mantêm a secção rítmica tradicional, que substituíram por uma bateria) à improvisação. 
O Jazz é uma música híbrida - vai buscar elementos a todas as músicas, e por outro lado as outras músicas vão buscar elementos ao Jazz; levando a movimentos de contestação e purificação (Wynton Marsalis) e ao Jazz mais académico, mas diria que nunca procura uma síntese, preferindo o fio da navalha, o equilíbrio instável, o conflito. 

9.º conflito: Jazz X Jazz
Pela sua natureza e complexidade, pelas contradições, pela sua diversidade e história, pela conflitualidade que o atravessa, não é possível uma única definição de Jazz – tanto que se defina do ponto de vista técnico-musical, como cultural social ou histórico.
Hughues Panassié apresentava a sua definição de Jazz verdadeiro suportando-se na tradição e, nos antípodas, Jorge Lima Barreto afirmava: «O único Jazz vivo é o anti-jazz». Confrontado enfim com a sua diversidade, mais do que um género, uma corrente ou um estilo, Manuel Jorge Veloso define o Jazz como um «domínio».
Nenhum outro género musical possui tanta diversidade e contradição, levando a que o Jazz possa ser entendido de forma leiga como tudo o que não se pode definir como outra música qualquer. Ricardo Toscano toca um Jazz que se reivindica da tradição de Parker e Coltrane, mas um dos mais interessantes grupos nacionais – o Ensemble Super Moderne – toca música erudita; inúmeros músicos surgem indiferentemente incluídos em projectos de vanguarda ou tradicionalistas (Kirk Knuffle ou Jon Irabagon), e enquanto muitos músicos de Jazz não se consideram músicos de Jazz, mas apenas músicos, outros reivindicam-se da herança inequívoca do Jazz.

Conclusão
O conflito não define o Jazz, mas só através do conflito se pode compreendê-lo e a sua história, desde logo como nasceu no início do século XX na sociedade multicultural de New Orleans, como se relacionou com as outras culturas e como se construiu como cultura, como se questionou em cada momento, nas correntes que o atravessaram em conflito consigo mesmo, a sua história e o futuro, a tradição e a (contra a) vanguarda, entre as músicas com que se relacionou, que influenciou ou aonde foi beber, no equilíbrio instável entre a improvisação e a composição e o individual e o colectivo, forjando-se como música erudita e popular, a música-arte versus a música-espectáculo, o Jazz cultura, o Jazz contra o Jazz, o Jazz como utopia: só o conflito permite compreendê-lo.
O conflito funciona no Jazz, não apenas como agente, como catalisador, mas ele faz parte da sua pele, como agrega os elementos contraditórios que o constituem.
O conflito faz parte da definição do Jazz, está presente na sua natureza e é o seu motor e a fonte da sua riqueza; elucida a sua diversidade.

Leonel Santos

 

Texto de sala da
Conferência: Jazz, música em conflito

Funchal Jazz, 12 de Julho de 2017

 

 

 

 

 

 

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