Desde
o primeiro minuto (ou melhor dizendo, desde há muitos meses atrás quando pela
primeira vez o anunciei em primeira mão à comunidade jazzólica),
o concerto de Keith Jarrett estava perturbado pela emoção.
Isso mesmo eu alertava poucos dias antes, na minha Agenda: « Mas
se o regresso de Keith Jarrett transporta uma carga emocional que não é musical,
ela não deverá desviar as atenções dos melómanos
para a actuação de um dos maiores músicos de Jazz de
todos os tempos; eu diria mesmo o maior pianista de Jazz da actualidade».
Na altura contei a razão histórica dessa «perturbação»;
não vale a pena repeti-la que ela foi contada e recontada nos jornais
dessa semana, mas nos dias que antecederam o concerto ela foi relembrada por
tudo e todos, desde mim, claro, ao próprio CCB que alertava o público,
antes e até mesmo já poucos minutos antes do início para
a necessidade de o público não fumar sequer nos espaços
exteriores nem produzir quaisquer ruídos e até (!) evitar tossir
(!) sob pena de o músico abandonar o concerto. E o Expresso dava conta
do abandono de Jarrett de um concerto, em Paris, na semana anterior, por essas
razões.
Mas para os que não estiveram no CCB e pensam que exagero, refira-se
que Keith Jarrett interromperia por duas vezes a actuação
para reclamar de qualquer pormenor técnico. Bom, numa das vezes
um dos pratos da bateria de Jack DeJohnette estava solto…
Depois a audiência: ao meu lado uma senhora falava do piroso das calças
vermelhas de um qualquer bastonário de uma qualquer ordem profissional
e da roupa «tão tão casual» de um outro qualquer
presidente de uma qualquer comissão europeia que se sentou num lugar
tão normal (fiquei a saber que o CCB tinha lugares normais e supostamente
anormais, mas que a terceira fila era normal). Por todo o lado podia observar-se
que havia um número anormal de gente que iria ouvir Jarrett e talvez
mesmo Jazz pela primeira vez na vida, mas felizmente havia também os
fanáticos e os amantes que não perderiam um concerto de Keith
Jarrett por nada deste mundo.
Nunca
o silêncio tinha sido (tão) notado no CCB. Cortava. Os
três músicos entraram debaixo de uma salva de palmas (que parecia
procurar esconjurar o original pecado de há vinte e cinco anos atrás)
e atacaram logo o primeiro tema, Tonight, de West Side Story, curto e straight.
A inspiração foi crescendo (à parte uma das interrupções
referidas) até Bye Bye Blackbird que uma parte da audiência reconhecia,
para tocar um raro original de Jarrett, So Tender, que utilizaria como motivo
para um daqueles momentos de improvisação jarrettianos, hipnóticos;
apenas duas ou três notas repetidas com que vai jogando de forma única.
Jarrett vai alterando imperceptivelmente a disposição das notas,
a métrica, introduzindo efeitos com os pedais, obsessivos, colocando
peso numa ou noutra nota, prolongando ou encurtando o espaço.
Antes disso ainda houve tempo para um magnífico solo de Gary Peacock,
a confirmar (se tal fosse necessário!) a estatura de gigante do contrabaixo.
Ao contrário do que prenunciei na altura, o trio (enquanto forma) realmente
raramente revelou o triângulo equilátero de outrora, com o peso
a pender decisivamente para o lado do piano. Se Gary Peacock ainda teve ao
longo do concerto várias oportunidades para brilhar em cirúrgicos
solos, a maior parte do tempo a acção relevante esteve confinada
a Jarrett, com Peacock e DeJohnette relegados para o papel de acompanhantes,
sempre criativos é certo, mas longe do protagonismo que tiveram no trio
ao longo dos anos 90. Não tenho dúvidas que o «problema» se
deve ao crescente narcisismo neurótico do pianista e espera-se que tal
não prejudique a música do trio no futuro (mas estamos obviamente
a falar da actividade dos deuses...). Lamento especialmente a prestação
contida de DeJohnette, um baterista que aprecio especialmente e creio que algo
o trio ficou a perder.
Depois do intervalo e serenada a tensão inicial, a música escorreu
mais fluida, mas a intensidade da coda do final do primeiro tempo apenas se
revelaria com I Thought About You e depois com uma belíssima e original
interpretação de Round Midnight.
A sala quase ruía com as palmas que obrigaram o trio a regressar (!)
para dois raros encores (estávamos perdoados!): um entusiasmante blues
(quem foi que disse que Jarrett não sabe tocar Blues?) e um remate demolidor
com When I Fall In Love.
Enfim, ressalvadas as minhas pequenas observações – a deslocação
do centro de gravidade para o piano e a anormal tensão – este
foi um dos grandes momentos do ano.
E se a
minha votação para o melhor concerto do ano não
vai já directamente para o ele, é porque este ano houve realmente
outros grandes grandes concertos a rivalizarem com ele. Mas disso falaremos
noutro dia.
Keith Jarrett Trio, CCB, 12 de Novembro de 2006