A Baronesa, Hannah Rothschild 2016 (2012)
Tinha 11 anos de idade quando Hannah Rothschild ouviu pela primeira falar da tia-avó, Pannonica: «Toda a gente lha chama Nica, mas não sei mais do que isso. Nunca ninguém fala dela», respondeu-lhe o pai.
Havia uma névoa em torno da personagem da tia-avó, e toda a gente se escusava a falar dela, o que apenas contribuiu para a sua curiosidade de criança. As pessoas sussurravam:
É conhecida como a “Baronesa do Jazz”. Mora com um negro, um pianista. Pilotou bombardeiros Lancaster durante a guerra. O Charlie Parker, aquele saxofonista viciado em drogas, morreu no apartamento dela. Teve cinco filhos e morava com 306 gatos. A família deserdou-a (não deserdou, não, refutou alguém). Escreveram 20 musicas para ela (não, foram 24). Fazia corridas com o Miles Davis na Quinta Avenida. Sabes das drogas? Ela foi para a cadeia para que ele não tivesse que ir. Ele quem? O Thelonious Monk. Foi uma verdadeira história de amor uma das maiores de sempre.
Um dia, com 22 anos, foi a Nova Iorque e quis conhecer a tia. Encontraram-se na baixa, num clube de Jazz. Impossível enganar-se; à porta estava (mal) estacionado o Bentley da tia.
O primeiro encontro não foi fascinante. Hannah encontrou uma mulher idosa, não especialmente bem vestida, o casaco de peles nas costas da cadeira, fumando de uma enorme boquilha, deslocando-se à vontade num meio que se poderia pensar que lhe fosse estranho. Não procurou seduzi-la.
Hanna encontrou-se com a tia-avó ainda algumas vezes, nos anos seguintes, em Nova Iorque ou Londres, e criaram alguma relação; Pannonica oferecia-lhe discos e escreviam-se. Um dia, em 1984, quando se deslocava para Nova Iorque em trabalho (Hanna fazia documentários para a BBC) e se preparava para a visitar, soube que tinha falecido, vitimada por um acidente cardíaco.
Pannonica não era propriamente proscrita na família; mas não era querida e simplesmente não se falava dela; o que mais intrigava Hannah. O projecto de a compreender e fazer a sua biografia nasceu aí, e prolongou-se por uma vintena de anos.
Para compreender com o que é que Pannonica tinha rompido com a família, Hannah teve que começar por investigar as origens dos Rothschild, desde o século XVIII. A história da Europa, da política à economia (e à banca) dificilmente poderá ser contada ignorando os Rothschild; e interessou à jovem Hannah observar como o clã tratava as suas mulheres: um clã de características falocráticas onde, por imposição do fundador Mayer Amshel, em 1812, os lugares de direcção estavam absolutamente vedados às mulheres.
Hannah sabia muito pouco da sua própria família, como descobriu, e decidiu começar pela pequena rua, na Alemanha, onde tinha nascido o fundador da dinastia Rothschild, em 1744. Mas não lhe foi fácil conhecer a infância de Nica; ela descobriu que a família não se orgulhava dela, e mesmo o projecto biográfico não era aplaudido.
Hannah percorreu os lugares de infância de Nica e lentamente foi compondo o puzzle, a partir de fotografias e conversas, a escola e a juventude, peça a peça, mas depois as informações escasseavam na família mais próxima, no que tinha sido o marido - o barão Jules de Koenigswarter - e os cinco filhos. Ainda assim descobriu que Pannonica nunca deixou o contacto com os filhos e dois haveriam de ir viver com ela.
O período da guerra não foi simples. Kathleen Annie Pannoniva de Rothschild, já casada, agora baronesa de Koenigswarter, recusou-se a ficar em casa com os nazis e fascistas apostados em destruir a Europa e varrer os judeus da face da terra, e muitas terão sido as peripécias que viveu, entre Londres, onde integrou o exército da France Libre, e África , onde se juntou ao marido, e depois sózinha: «Lutei de Brazzaville ao Cairo, de Tunes à Turquia, e até consegui chegar à Alemanha para ver os últimos dias do Reich», contou Nica em entrevista. Muita da informação que Hannah recolheu resulta do cruzamento de notícias na imprensa, registos militares, depoimentos vários sobre outros temas por inúmeros personagens, Jules ou outros membros dos Rothschild, e até de informação oral; e uma boa parte será lenda ou pecará por defeito.
Em busca da tia, Hannah buscava-se a si mesma e ao seu passado: «somos o produto do nosso passado e da nossa família», disse-lhe a tia. E nessa história, Pannonica era uma singularidade.
Não que não houvesse transgressores, mas muito do transgressão da família Rothschild era loucura, suicídios, neuroses; provavelmente motivados até pelos casamentos consanguíneos e pela obsessão de manter a fortuna na família. A carga nas mulheres era pesada. As mulheres Rothschild eram bem tratadas, mas viviam numa gaiola doirada; e foi contra essa gaiola que Pannonica se foi rebelando, sem qualquer premeditação ou elaboração, como foi descobrindo a sobrinha-neta.
Os sinais da rebeldia já se faziam sentir na juventude e no casamento, e quando desobedeceu a todas as regras, e mesmo ao marido, quando partiu para África ao encontro de Jules; mas ela não se ficou por aí e, no turbilhão da guerra, também entre malária e desinterias, muita da história da vida de Pannonica ficará por contar.
Um dia, já depois da guerra, Jules e Nica tinham sido condecorados como heróis do exército francês, e deveriam voltar para a família, em Nova Iorque ou em França, mas Nica já não voltou.
A baronesa, como ficou conhecida, contava que recebeu o seu chamamento depois de ouvir o Black Brown and Beige de Duke Ellington, em 1943, e o rastilho da rotura se incendiou quando ouviu ´Round Mignight.
Hannah persegue os passos da tia-avó em Nova Iorque em busca de Thelonious Monk e de como ela se foi introduzindo nos meios do Jazz. Hannah pergunta-se se a sua tia-avó foi apenas uma groupie ou é a música e a rebeldia que moldou a sua rotura, e a resposta ia sendo adiada. Hannah teve de se procurar mais fundo para perceber quem era a Pannonica e porque é que ela se tornou a protectora dos músicos de Jazz.
Hannah soube que Nica tina ido viver para um hotel, depois outro; foi expulsa por incomodar os outros hóspedes e ter vistas e dar festas até madrugada, até que adquiriu uma casa no centro da cidade. Toda a comunidade jazzística passou pela casa de Pannonica, mas Thelonious Monk teve, a partir de determinado momento, lugar reservado. Hannah foi acumulando informação, mas muita era do conhecimento geral, e fazia parte da lenda da protectora do Jazz.
A biógrafa não procurou contar a história de Pannonica de forma linear, mas dar pistas para a compreender e nem sempre é simpática com a tia-avó; como o não tinha já sido com a família que também era a sua. Também não procurou contar a história do ponto de vista do Jazz; ela vinha de fora, e essa história ela não saberia bem contá-la e, como disse, fazia parte da lenda.
A extravagância de Nica levava-a a ser acusada, como ou sem proveito, de promiscuidade, de ter dormido com Art Blakey ou Monk ou outros; mas isso realmente interessava? Pannonica era acusada de perdulária e ter gasto dinheiro muito para além do razoável, mesmo com os padrões de vida que ostentava - e seria verdade (Hanna conta que a tia tinha recorrido à família qu ando os fundos se tinham esgotado); e Hannah em dada altura pergunta-se de quantas mulheres teriam podido romper com a família e o passado e ir viver faustosamente no Bolivar Hotel? - Sim, Pannonica fazia-o, também porque podia (e podemos nós perguntar se seria escandaloso que um homem o tivesse feito...). Mas fê-lo, indiferente ao que a sociedade e a família lhe impunham, e pagou por isso. Seria amor, seria paixoneta de groupie ou seria paixão? Pelo Jazz ou por Thelonious Monk?
A paixão da tia-avó por Monk era absoluta, descobriu a jovem Hannah. Num dos episódios que relata, a polícia mandou parar o carro onde seguiam e acusou Monk de posse de drogas proibidas. Monk era um consumidor e já tinha estado preso, e Pannonica não hesitou em se acusar. Claro, uma vez mais, ela sabia que para uma Roschild a prisão não era o mesmo que para um junkie. Mas fê-lo, ainda assim, e foi presa e teve direito a capa dos jornais, como já tinha sido capa quando Charlie Parker, uns anos antes, lhe tinha ido morrer a casa.
O que é que tinha feito Kathleen Annie Pannoniva de Rothschild, baronesa de Koenigswarter, rebelar-se com a gaiola dourada que lhe estava destinada? A resposta, está, claro, em ser uma gaiola. Mas mesmo assim a biógrafa foi mais longe, com tanto de desencanto como admiração. Pannonica foi uma mulher num mundo de homens, irreverente, provocadora, extravagante, promíscua, talvez, esbanjadora, apaixonada, protectora dos músicos de Jazz, mas principalmente fez sempre o que quis (e pagou por isso, também), e pôde.
É uma biografia inesperada, para um amante de Jazz, mas um olhar muito interessante sobre A Baronesa.
A edição é da Asa, de 2016 (2012 no original) mas, como não foi um sucesso de vendas, não é fácil de encontrar no mercado.