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Como o Metoo coloca-nos, a nós mulheres, em risco.
Por estes dias mais um escândalo de alegado assédio sexual encheu páginas de jornais, em particular do Público, o que mais tem denunciado o caso, e que trata como acusação de "violação". No Facebook de Cristina Martins, e em dois artigos de jazistas Leonel Santos e Ricardo Fortunato - não conheço nenhum deles, nem dos envolvidos -, leio que o caso de "violação" é um pianista que terá marcado um encontro com uma DJ nas redes sociais, onde marcaram sexo consentido, e ele terá tirado o preservativo. Este é o caso de "violação". Ele não era professor dela no Hot Club, nem ela aluna de música. Não se conheciam.
Confesso que sou uma conservadora. Nunca na vida "marquei" sexo, muito menos na redes sociais. Sempre achei que o sexo nasce de desejo depois de um jantar a ver a lua. O mais libertário que li sobre sexo foi escrito por Alexandra Kollontai, no calor da revolução russa, 1917, e por aí me fiquei em matéria de teoria do sexo.
Quem já foi vítima de uma tentativa de violação, sabe que chamar a um encontro combinado para sexo "violação", dá vómitos. A violação é um dos mais hediondos crimes que existem. Num ano, segundo a PJ, mais de 300 mulheres foram violadas. É ignóbil usar-se o nome deste crime para situações que nem crime são. Podia ser crime tirar o preservativo, parece-me no mínimo uma canalhice, séria, mas não é violação. Ponto.
O grave já vem de longe. Boaventura Sousa Santos - de quem discordei sempre teoricamente - foi queimado em praça pública, com longos abaixo-assinados e nunca foi acusado ou julgado, teve aliás que pedir para ser constituído arguido para se poder defender porque não havia queixa alguma nos tribunais contra si. Não invalidou que uma mulher que diz que ele a convidou para jantar e para ir a casa dele, ela disse que não, ele insistiu, ela disse que não, e ele foi-se embora, isto foi tratado como tentativa de violação, chegando mesmo às televisões. Chegou também às redes sociais os emails dela para ele, que davam conta de uma troca amistosa dela sobre um jantar agradável e que lhe pedia dinheiro para financiar livros.
Porque tudo isto é gravíssimo? Porque Boaventura já foi retirado dos vários dos lugares que ocupava, de provas académicas, de júris, de comités científicos. O pianista acusado, sem a reforma de Boaventura, viu os seus contratos rasgados e quem sabe a carreira destruída. O Jornal Público perguntava mesmo neste caso, como noutros, porque os professores acusados ainda estariam a dar aulas?
Como!? Agora são os jornais que despedem trabalhadores? Não há um julgamento, provas, acusação e defesa? Estamos perante uma suspensão do Estado de Direito, promovida por quem acusa e pelos jornais.
Com o silêncio dos partidos e das instituições: onde está o MP, os sindicatos de justiça, a Ordem dos Advogados perante esta suspensão de direitos, liberdades e garantias dos acusados? Estão com medo e respondem à pressão das redes sociais e dos jornais em vez de assegurar a lei e a liberdade?
O delírio é total. Susana Peralta defendia, no mesmo jornal, que professores e alunos - adultos - deviam ser proibidos de ter relações nas Universidades e informar o Reitor. Alguém lhe terá dito que não faltam casamentos felizes entre ambos. E que - o mais importante -, depois do Pai e do Padre, não pode o Patrão, neste caso o Reitor, entrar na cama de dois adultos, porque a lei, felizmente não o permite. Só no mundo feudal e na ditadura fascista é que o Patrão decidia com quem as mulheres dormiam ou não.
A segunda razão porque tudo isto é gravíssimo: é que ao ler aqueles emails, sem indagarem a veracidade, se descredibiliza todas as mulheres. Porque o escândalo é feito em torno de um convite para jantar sem coação alguma, de um engate, ou de uma "marcação" para sexo. E os casos de violação - mais de 300 - são tratados com 3 linhas no Correio da Manhã.
Em breve, se continuarmos com estes escândalos, e calados com "medo" nenhuma mulher violada que apresente queixa vai ser levada a sério. A velha história do lobo. O Metoo, que dá corpo à luta pelas mulheres chegarem ao topo das empresas, depois da crise de 2008, quando as próprias empresas querem reduzir custos, põe-nos cada vez mais em perigo.
Todas as propostas para combater a violência sexual contra as mulheres passam por uma rede de bufaria puritana: caixas de denuncias, e em geral anónimas, claro, abaixo assinados que são autênticos pelourinhos, vigiar e punir. Um polícia e uma denuncia em cada mulher, enfim, é este o Metoo, mas só quando envolve lugares apetecíveis na academia, nas empresas e na cultura. Se é uma enfermeira ou uma operária a vir para casa às 4 da manhã, barbaramente violada, o assunto nem chega aos jornais.
O assédio sexual existe. Ele existe com e sem caixas de denuncias porque os locais de trabalho estão infestados de relações sem cooperação e sobretudo sem emprego. A economia portuguesa - capitalismo dependente - não absorve os quadros académicos e culturais. Não há emprego. Há uma luta de todos contra todos pelos poucos lugares disponíveis e pelo escasso financiamento. A denuncia individual em vez da luta colectiva pelo pleno emprego tem sido o mote.
Não quero viver numa sociedade repressiva que pede um polícia atrás de cada mulher e uma denunciante para cada trabalhador.
Uma política de extrema-direita pede caixas de denuncias, polícias, repressão e pelourinhos. Uma política de esquerda pede educação, cooperação, e transformação das condições de trabalho e vida. Uma política de medo, de acusação, sem julgamento é de extrema direita, mesmo quando é feita para salvar mulheres e tem o apoio do Metoo e muitas assinaturas.

Uma política de esquerda é uma política de criar condições para as pessoas serem livres nas relações. É preciso gestão democrática nos locais de trabalho com hierarquias eleitas, redução do horário de trabalho. Acabar com o topo das Empresas, ocupadas por mulheres ou homens, é o super poder que tem que ser posto em causa. É urgente acabar com o trabalho nocturno não essencial. Criar bairros seguros em vez de dormitórios, a duas horas do trabalho. E claro, bairros humanizados, com livrarias, um teatro e um café aberto para que todos possam dançar, tocar-se, ouvir jazz, e não terem que marcar sexo pelas redes sociais, que são o contrário da sociabilidade, creio sinceramente que ia ajudar relações mais iguais e livres.

https://www.facebook.com/story.php/?story_fbid=1129163805241254&id=100044429346547&_rdr

26 Novembro 2024


De que crime ao certo se está a falar e quem está a ser vítima ou agressor? É a dúvida que me surge ao acompanhar as notícias sobre o movimento de denúncia do machismo predador no mundo do jazz.
Feminista, de esquerda e frequentadora desde jovem desse meio, reconheço o sentido global desta mobilização. A dominação masculina nesta como noutras comunidades artisticas e académicas deixou um rasto de mágoa e de injustiça: os abusos de poder sobre mulheres pedem uma reparação histórica. É justo.
O problema aqui, e grave, é que este movimento é engendrado a partir de uma queixa, numa rede social, sobre um nomeado jovem músico, usando a palavra violação, repetida nos títulos de vários jornais, violação essa que não existiu, na descrição da própria queixosa: um facto que só ficamos a saber quando lemos os artigos até ao fim. Esta descreve o encontro sexual consentido entre os dois jovens e um incidente nesse acto em que se sentiu lesada (e logo no momento mostrando a sua zanga, conversando entre eles e até partilhando tristeza, aparentemente mútua...). Incidente esse que em pleno direito veio agora, depois do post no instagram, colocar na justiça e cujo apuramento jurídico é legítimo, mesmo não sendo crime na lei portuguesa. Mas seguramente não é uma violação. Porque é que esta palavra continua nos títulos dos jornais?
A mesma jovem fez um apelo nas redes sociais a outras denúncias sobre o mesmo rapaz, e aquilo que se encontra são queixas de mensagens, por vezes insistentes, e o ter colocado muitos likes nas suas fotos ou histórias, e isso causar desconforto. Não existe um único relato que configure assédio, alguma forma de agressão ou de coacção, e os testemunhos até o sublinham.
A escola do Hot Club confirmou que o músico de 31 anos não teve nenhuma queixa de assédio ao longo da década em que foi professor, ao contrário de outros dois que foram dispensados da função por esse motivo. Alvitram-se outros nomes e casos de assédio na mesma comunidade, mas um só nome, o deste pianista, continua a surgir nos jornais, sem que, repito, exista um só indício de crime, na leitura desses jornais.
Mas este julgamento em praça pública, numa correia de justiça popular, já fez sangue suficiente: os danos da acusação de se ser um violador, o cancelamento imediato de todos os trabalhos e tournées próximas, uma brilhante carreira em risco, o pavor que podemos imaginar que será o de voltar a um palco e olhar o público de frente.
Catarse coletiva em torno de um bode expiatório fácil? É tudo o que isto parece. Sede de vingança em massa, desejo cego de um poder destruidor triunfal rápido?
Feminismo, desejo de igualdade e direitos humanos não são feitos desta matéria emocional volátil que não deixa lugar ao pensamento. A passagem ao acto do ódio e a facilidade com que ele viaja nas redes sociais extermina a racionalidade e o apuramento da verdade, o diálogo e a justiça. E a comunicação social segue o rastilho sem pestanejar.

Queimar fotografias do músico numa espera organizada junto a um bar onde iria atuar? Sinto um certo cheiro a fogueira e o regozijo das massas sob o pelourinho. Infelizmente é um ambiente social que aparece em linha com outras barbaridades desta época, e de outras épocas de má memória. O mal-estar, a náusea e a confusão que me geram é que ideologicamente estariam no polo oposto, e aqui se unem na violência e no ataque à liberdade de pensar.

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15 Novembro 2024


O #metoozinho do Jazz Português

Ricardo Fortunato

Nov 13, 2024

À semelhança do putativo escândalo sensacionalista que envolveu supostas formas vagas de assédio e abuso sexual no Centro de Estudos Sociais na Universidade de Coimbra, problemática que abordámos em devido tempo, voltamos aqui a tentar separar o trigo do joio num caso recente de denúncias semelhantes em relação não apenas a um músico em específico, mas mais vastamente em relação a todo o mundo do jazz português.

Em primeiro lugar, é importante sublinhar que se trata de mais uma situação em que se coloca a hipótese de professores terem relações próximas, de amizade ou de carácter erótico e amoroso, com alunos. Esclareçamos primeiramente que isto não é crime, que depende das instituições em específico terem regulamentos internos explícitos contra essas situações — e grande parte não têm — e que, curiosamente, noutras décadas em que o espírito cultural do ocidente tendia para um maior liberalismo dos costumes, nomeadamente a nível de relações sociais e amorosas, tal possibilidade não era de todo vista no binómio oprimido/opressor e nas relações de poder, tendo até originado em muitos casos uniões duradouras, tanto de professores com alunas como de professoras com alunos. Um caso recente é o de Agnes Callard.

Em segundo lugar, o presente estado, que parece já lunático e muito afastado de qualquer critério realista e credível, quanto à noção de assédio ou abuso sexual abarca, para certas alminhas com interesses directos ou indirectos num estado de pânico moral quanto ao assunto, situações e práticas tão díspares que vão desde o piropo, passando pela mão no joelho, pela insinuação de interesse amoroso, até aos desentendimentos dentro de relações íntimas já estabelecidas — pode ser esse aqui o caso — chegando por último à violação tout court. São fenómenos estes que só dentro de cabeças muito tendentes à neurose ou à psicose podem ser agrupados dentro da mesma categoria uniforme: mas não há quem falte a jurar que a distância entre um piropo e uma violação bruta é muito pouca. São categorizações que não merecem qualquer importância e pertencem provavelmente ao caixote de lixo da psiquatria.

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Em terceiro lugar, é importante analisar ponto a ponto as informações levantadas na imprensa, combatendo o impulso sensacionalista que estes assuntos convocam. Acima, encontramos um trecho da peça do jornal Público sobre o assunto, uma de várias. Pelo que pudemos apurar até agora deste #metoozinho do jazz português, resume-se ao seguinte: (1) uma rapariga, Liliana Cunha, escreveu de impulso um relato nas redes sociais sobre, basicamente, um sujeito, João Pedro Coelho, que é professor de jazz e que terá tirado a proteção a meio de uma relação sexual; (2) foi impulsionada pelas amigas a indicar o nome, e fê-lo; (3) de seguida, começam a chover denúncias de que esse professor é mulherengo e vai beber café com as alunas; (4) o professor reage alegando que o primeiro facto relatado é falso e que irá avançar para queixa judicial; (5) ao saber disto, e só depois, a rapariga resolve avançar também para queixa judicial, embora já tenha prescrito o prazo para apresentação da mesma (factos confirmados aqui); (6) de resto, o canal de denúncias entretanto constituído por mais um grupo espontâneo ou não-espontâneo que, como as gaivotas, sempre vem à tona quando vê peixe fresco (e que curiosamente é quase sempre dominado por pessoas de nacionalidade brasileira ligadas às academias de estudos sociais e/ou às artes), já recebeu inúmeros relatos reportando tanto à mesma pessoa como a outros professores e músicos de jazz, relatos esses que, pelo que se lê na imprensa, se resumem a episódios e comportamentos do tipo mulherengo, e não propriamente a violações, abusos sexuais concretos (além desse primeiramente referido) ou sequer a casos numerosos, relevantes e credíveis de assédio ou abusos de outros tipos (há dois confirmados por uma escola, o Hot Club de Portugal, que tiveram consequência — o afastamento dos professores; ou seja, caso resolvido).

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A alegação quanto à remoção de protecção, cujo relato se encontra acima, da peça do Público, e que, no fundo, é a única base sobre a qual a denúncia inicial se alicerça, configura um abuso de confiança grave mas não constitui necessariamente, à luz da lei portuguesa, violação à letra, embora o possa ser noutros países. Uma peça razoável do jornal DN sobre o assunto pode ser lida aqui. É importante também notar que a situação pode provir de mal-entendidos, comuns entre pessoas que se conhecem mal e no entanto logo se encontram em interacções sexuais íntimas e complexas — o que nos lembra como é problemático criminalizar coisas difíceis de provar como a remoção de proteção a meio de uma relação. Importa ainda assinalar que esse acto inconsentido é pontualmente comum com alguns homens, por motivações variadas, e que é inteiramente censurável, mas que também é fundamental a existência de uma discussão tanto sobre o porquê de o fazerem como também sobre o que sucede para que mulheres e homens tão displicentemente se vejam em situações em que tal pode acontecer. Fosse como fosse, o procedimento sensato a partir do momento em que tal imprevisto sucede, como alegadamente terá sucedido, seria tentar o entendimento com a pessoa ou partir de imediato para uma queixa judicial, preferencialmente sem a necessidade da chicana pública — queixa essa que, mesmo que não tivesse resultado sancionatório prático, teria certamente o condão de deter futuros actos semelhantes da parte da pessoa.

Mas quanto ao restante rol de informações veiculadas na imprensa, é fácil depreender que, por enquanto, não existe realmente nenhuma alegação concreta de abuso sexual grave à luz da lei portuguesa, ou então essa informação seguramente já teria sido divulgada. Quantas alegações credíveis de assédio ou abuso foram realmente até agora reportadas — além das duas de assédio que não mereciam qualquer reporte extraordinário pois já tinham sido, e bem, encaminhadas internamente e com resolução positiva — não sabemos. São-nos indicados números que, a crer no critério lasso que parece aqui presente, tanto podem envolver convites para beber café, toques excessivamente íntimos, até eventuais insistências no âmbito da proximidade que possam passar o limite do admissível. Porém, a contar com o padrão que podemos dizer já vir a conhecer, tanto do caso do CES de Coimbra como de rumores que possam surgir em geral no meio académico, antevê-se o resultado do costume: a existência de professores que gostam de mandar charme, que alimentam ou podem alimentar ligações de proximidade com pupilos, envolvendo trocas de mensagens, cafés, conversas por vias variadas que podem evoluir para relações de amizade e quiçá de carácter amoroso ou erótico. Com forte probabilidade é isto e só isto que emergirá do movimento. E se for só isto, qual é realmente a opinião pública maioritária sobre a sua importância?

Ora, nada disto é crime, nada disto é necessariamente “assédio” — e convém que as pessoas tenham maturidade suficiente para o distinguir, maturidade essa que parece estar ausente, de forma notória e preocupante, em muitas pessoas de gerações mais novas. Não parece admissível que se confundam tão facilmente, por um lado, o mundo dos entendimentos e desentendimentos das relações sociais e amorosas, e, por outro, o mundo dos crimes de assédio e do abuso — sendo que a existência de hierarquias laborais ou lectivas, diferenças de idade ou de estatuto não configuram necessariamente o segundo caso. Certo é que não parece viável passar a trazer-se para a esfera pública do escândalo, da perseguição e em muitos casos da difamação, que podem envolver destruições de reputações e de carreiras, episódios que mais facilmente caberiam no mundo complexo dos desentendimentos inter-pessoais do que no mundo do crime — e não parece também que misturar um mundo com o outro não acabe por ter a consequência de menorizar verdadeiros exemplos de abuso. No final deste artigo, poderão encontrar uma galeria de comentários, retirada de um perfil social de uma das responsáveis pelo movimento — o que significa que levam todas estas queixas, algumas delas de evidente puerilidade, igualmente a sério e as enquadram todas na mesma categoria de gravidade —, de várias pessoas do mundo da música jazz em Portugal que, por agora confirmam não só as suspeitas de confusão muitíssimo perigosa entre ambiguidades de relações sociais e assédio dirigido, como também um eventual problema de maturidade emocional em termos de capacidade de reagir a esses avanços com vista a relações inter-pessoais de amizade ou de carácter amoroso, e as confusões e desilusões que podem daí advir.

Uma nota lateral, mas importante, sobre a actual doutrina jurídica no ocidente quanto ao abuso sexual, é também aqui relevante. Actualmente, segundo convenções internacionais, o estabelecimento de abuso sexual não requer provas físicas que o distingam de maneira minimamente categórica de uma relação sexual de mútuo consentimento — provas de resistência, por exemplo. Ou seja, depende apenas da palavra da testemunha. Isto pode ser problemático: este tipo de leis empodera os queixosos com um tipo de poder que, julgam eles, não vão abusar; mas a subjectivização imanente nas relações humanas, a sentimentalidade e o sensacionismo pode convencê-los e confundi-los. Uma má noite sexual, na sua cabeça, pode rapidamente saltar para violação; mal-entendidos para abusos; recordações ou retrospeções que revisitam o acontecimento à luz de outros critérios subjectivos, de repente transformam um mau encontro num programa de violação e destruição corporal e mental propositados. É totalmente ingénuo não reconhecer os problemas por detrás desta subjectivização da lei.

Dizem-nos, de resto, que é um facto que os músicos de jazz, no mundo e em Portugal, são “frescos” ou têm essa reputação do sentido da inclinação para o envolvimento próximo, amoroso ou meramente sexual. Se assim é, não quebram aquela que sempre foi a tradição do género — que, se agora for sujeita a critérios morais mais pudicos, se pode dizer ter ficado “aburguesada”. Estranhas assim são reacções da revista jazz.pt e do músico Filipe Melo — reacções tão solenes quanto dramáticas, de certo modo revelando uma certa covardia institucional ou profissional perante a voz das turbas, e não referindo uma única vez o princípio de presunção de inocência, o ditame sagrado da prova judicial nos estados de direito, e o cepticismo das pessoas inteligentes e não primeiramente emotivas face à complexidade de assuntos em que obviamente não basta o clamor das multidões, tantas e com tanta força vezes erradas, para estabelecer o que quer que seja de credível e concreto. Por isso damo-nos à liberdade de acusar aqui o seguinte: instituição ou pessoa pública que venha a referir apoio automático a este tipo de movimentos sem mencionar o princípio da presunção da inocência e o primado da lei e das provas concretas está a incorrer num exemplo de covardia.

Assim, a reflexão sobre o que se terá passado na educação familiar, no desenvolvimento psicológico ou no momento cultural das pessoas, denunciantes ou entusiastas deste fenómenos, pessoas que vivem neste comprimento de onda mental, onde tão facilmente se transformam episódios de desencontro nas relações humanas em falhas morais e legais graves, é uma reflexão que tem de ser feita: em Portugal e na maior parte do ocidente, de acordo com os quadros legais, a autonomia sexual atinge-se aos 16 anos, e a maioridade cívica plena aos 18. Se atingidas estas marcas as pessoas não se encontram em plenas capacidades funcionais para lidar com o mundo complexo das interacções interpessoais, inclusive aquelas de carácter erótico e amoroso — ou seja, se, na prática, não sabem lidar com investidas de terceiros nesse sentido e imediatamente as caracterizam, muita vezes abusivamente, como “assédio” — então há que tirar conclusões quanto ao que falhou ou, então, alterar ao nível da lei as idades em que essas maioridades se atingem.

É possível que uma parte significativa da população infantilizada ou entusiasta da infantilização progressiva da jovem idade adulta creia que, por exemplo, as idades mais adequadas no presente momento para a maturidade fossem algo por volta dos 18 ou mesmo até 22 para a autonomia sexual, e 25 para a maioridade cívica. Se assim é, fortes discussões podem e devem ser tidas quanto a isto — inclusive, e aqui queremos tocar, para concluir, num ponto que mais nos é próximo, perceber como é que a universidade e o ensino superior em geral, com a sua frequência hoje cada vez mais tendencialmente universal, funciona em parte como um prolongamento rasca, inútil e perdulário do ensino secundário e do estado de adolescência mental, social e cívica que o mesmo impõe aos seus discentes. Fica para reflexão.

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https://www.revistaminerva.pt/o-metoozinho-do-jazz-portugues/

13 Novembro 2024