Publicado em All Jazz 1
Fevereiro de 2002

Norman Granz

Photo by Gottlieb

Morreu Norman Granz. Com o seu desaparecimento no passado dia 22 de Novembro, é mais um capítulo que se encerra na História do Jazz.
Nascido em Los Angeles em 1918, dedicou toda a sua vida ao Jazz a partir do início dos anos 40. Granz foi o mais importante produtor da História do Jazz. Ele foi o criador das etiquetas Verve, Norgran, Clef e Pablo, com milhares de títulos por si mesmo directamente produzidos, e foi igualmente o «inventor» do célebre Jazz At The Philharmonic (JATP).

Jazz At The Philharmonic
A sua ideia original era aparentemente simples, mas profundamente inovadora para a época: reunir num mesmo palco (do Philharmonic Auditorium de Los Angeles) músicos de diferentes escolas e estilos – se bem que predominantemente mainstream - em jam sessions que registava e editaria.
O primeiro concerto aconteceu na tarde de Domingo de 2 de Julho de 1944 e reuniu o sax tenor de Illinois Jacquet, o pianista Nat King Cole, Les Paul na guitarra, um outro saxofonista, Jack McVea, a trompete de Shorty Sherock, o portentoso trombone de J.J.Johnson, Johnny Miller e Red Callender em contrabaixo e Lee Young na bateria. Nem todos os músicos tocavam em todos os temas.
O sucesso da iniciativa levou o empresário a novas e novas reuniões, com resultados obviamente desiguais, pela própria noção de «jam session».
A fórmula foi criticada pela crítica de Jazz da altura (mas entusiasticamente aplaudida pelo público), pela perspectiva mais comercial que musical que determinaria a oportunidade e motivação dos concertos. A verdade é que a JATP haveria de ser testemunho de alguns dos encontros mais estimulantes da História do Jazz. E também é verdade que de outros menos interessantes. Entre monstros sagrados do Jazz e músicos de ocasião, reuniões impossíveis do tipo jovens boppers e veteranos do swing, entre o histórico e o questionável, tudo Granz levaria ao palco do Philharmonic Auditorium, até à alegada indisponibilidade da sala em 1946 por motivos pouco claros, que foram entendidos como reacção de contornos racistas perante a crescente miscigenação do público.
Granz decidiu então encetar uma tournée «permanente» da JATP que o levaria aos locais mais recônditos dos Estados Unidos, e depois pela Europa, Japão e Austrália. Alguns músicos tornaram-se «esidentes» da JATP, entre os quais a secção rítmica liderada por Oscar Peterson e a cantora Ella Fitzgerald. A JATP continuou a funcionar até 1967, um período algo conturbado para Norman Granz.

CLEF, NORGRAN, VERVE
Desde o início da aventura JATP que Norman Granz tudo registava. Com a ajuda de alguns amigos produziu os primeiros registos live da JATP. Tendo começado por trabalhar com a Mercury, para quem vendeu algumas das gravações, depressa se decidiu por editar ele mesmo os concertos que produzia. Foi assim que nasceu a Clef em 1946, a que se seguiriam a Norgran, a Verve e a Pablo; esta última já em 1973.
A etiqueta Verve surgiu em 1955 em simultâneo com o formato LP, o que lhe permitiu lançar-se definitivamente na edição integral dos concertos live da JATP (curiosidade: o seu primeiro concerto, de 1944, editado em 78 rotações, estava dividido em três partes por razões técnicas!!! ) Um dos motivos do enorme sucesso editorial da Verve, como das labels que lhe tinham antecedido, terá sido exactamente a adopção vanguardista das técnicas inovadoras da High Fidelity ao Stereo e o enorme incremento na minutagem dos novos formatos, até aí limitada aos três minutos.
O Jazz fervilhava nesses primeiros tempos da segunda metade do século. Nos anos seguintes a acumulação do património da Verve atravessou em diagonal todas as correntes do Jazz, embora com privilégio evidente para o mainstream.
Um dos seus mais geniais golpes de asa aconteceu com a arregimentação de Ella Fitzgerald, que arrancou das mãos da DECCA, para fazer dela bastante do rosto da JATP, ao lado do pianista de origem canadiana Oscar Peterson; verdadeiros heróis das plateias.

O ESPÍRITO VISIONÁRIO
O espírito visionário, que será também mercantilista, associado a um agudo sentido de oportunidade, levaria Granz bem longe: ele gravou para a Verve coisas tão distintas quanto o Jazz West Coast de Stan Getz, os trabalhos para cordas de Charles «Bird» Parker e algumas obras primas do bebop de Dizzy Gillespie com Parker e Thelonious Monk e os trios de Bud Powell, as incursões de Dizzy nos ritmos latino-americanos, as grandes orquestras de Count Basie e Duke Ellington, as masterpieces de Art Tatum, Billie Holiday que para ele cantaria durante cinco anos e enfim Lionel Hampton, Armstrong, Anita O’Day, Blossom Dearie, Benny Carter, Illinois Jacquet, Buck Clayton, Cannonball Adderley, Ben Webster, Coleman Hawkins, Johnny Hodges, e Lester Young, Roy Erldridge, Antonio Carlos Jobim, Gerry Mulligan e o encontro de Lee Konitz e Jimmy Giuffre de 1959. São centenas de títulos! A Ella Fitzgerald, Norman Granz fez gravar a totalidade dos repertórios de Gershwin, Cole Porter, Jerome Kern e Rodgers and Hart. Durante bastante tempo, o pilar financeiro da JATP terão mesmo sido as gravações do integral de Cole Porter acompanhada da big band de Buddy Bregman e «Porgy and Bess», onde Ella «contracenava» com Louis Armstrong.
O outro dos meninos queridos de Granz do período JATP/ Verve foi sem dúvida o excessivo Oscar Peterson que dirigiu a secção rítmica de um sem conto de registos de ocasião da label.

PABLO
Em 1960, Norman Granz venderia a Verve à MGM, embora tenha continuado à sua frente por algum tempo. Seria substituído por Creed Taylor.
Treze anos mais tarde, no entanto, Norman Granz regressa à actividade editorial na primeira pessoa com a criação da Pablo. De novo um frenesi se apossou de Granz, levando-o a registar e editar centenas de títulos; de novo arregimentando Ella Fitzgerald e Oscar Peterson, mas também Count Basie e Duke Ellington, e ainda Joe Pass, John Coltrane, Dizzy, Sarah Vaughan, Milt Jackson, Benny Carter e Zoot Sims, entre inúmeros outros. Gravou e editou os integrais dos festivais de Montreux de 1977 e 1979, adquiriu os direitos das gravações de Art Tatum dos anos 50, que viria a reeditar, e ainda da JATP.
Em 1987, incapaz de continuar devido a sérios problemas de saúde, vendeu o catálogo à Fantasy.
Os dois catálogos, Pablo e Verve, têm vindo a ser reeditados com regularidade. Enquanto a Verve/ Universal tem optado por luxuosas edições digipak remasterizadas, juntando gravações dispersas por vários LPs ou nunca sequer antes editadas, entre as quais algumas false starts ou versões alternativas, a Pablo/ Fantasy optou por manter os temas dos LPs originais, se bem que tratados com as técnicas digitais de 20 bits e igualmente em formato digipak.

APAIXONADO PELO JAZZ
Apaixonado pelo Jazz, como produtor ele foi durante muito tempo criticado pela intelligentsia pela suposta leviandade com que produzia os encontros/ concertos. Alguma verdade se poderá encontrar na afirmação quando comparada com a prática de outros produtores, mas a verdade é que esta sua atitude era em boa medida premeditada, e os resultados falarão por certo mais alto: a ele se devem alguns dos melhores concertos e gravações de toda a História do Jazz! E será difícil olhar para Granz e não observar o papel progressivo que cumpriu ao elevar o Jazz à categoria de forma de Arte.
Este é um dos grandes méritos de Granz. O produtor Norman Granz surgiu na cena numa conjuntura em que o Jazz adivinhava o encerrar de um capítulo, e ele ajudou a fazê-lo: se num primeiro momento o Jazz tinha surgido como música popular tocada e festejada por toda uma comunidade (New Orleans); no período imediato, com o advento do swing, ele transformou-se bastante em música de dança, e se bem que restringindo o leque dos produtores, mas alargando o auditório a toda uma comunidade branca sedenta de inovação. O swing era música com um elevadíssimo grau de qualidade formal, disfarçada de puro entretenimento (curiosamente um dos mais importantes músicos de sempre do Jazz, cujo reconhecimento ultrapassa unanimemente a músicas negra - Duke Ellington - considerava-se a si mesmo como um simples «entertainer»).

O FIM DE UMA ÉPOCA
Granz representa o termo dessa época. A partir da JATP, o Jazz passou a ser reconhecido como Arte. Quem queria ouvir Jazz, ia às mesmas salas de concerto onde também se executava música clássica. O Philharmonic Auditorium era uma sala paradigma. Os músicos de Jazz deixavam de ser selvagens risíveis para se tornarem respeitáveis artistas e executantes de nobre arte. Esta atitude para com o Jazz era acompanhada por um tratamento único com os músicos, que fez de Granz o mais querido dos empresários do Jazz: bons salários, bons hotéis, melhores restaurantes, escolha criteriosa de salas e de público, recusa de toda e qualquer discriminação racial. A América não estava preparada para isto.
E quando o Philharmonic encerrou as portas ao Jazz, em 1946 e a JATP rumou à Europa, Granz saboreou o gosto do sucesso da razão por que lutava: a Europa saía de uma guerra que a tinha ferido profundamente e ansiava também ela por novidades; mas, importante, por outro lado tinham triunfado – também nas mentalidades - as ideias anti-racistas, que o Jazz «culto» de Norman Granz satisfazia.
Nos últimos anos da sua vida Norman Granz fixou-se na Europa, o que não terá sido ocasional. O gosto pela cultura e a Arte, pelas coisas refinadas, e uma particular elegância na postura, levaram-no a cruzar-se com pintores, escritores, músicos e artistas de todos os matizes, com quem privava e com quem gostava de relacionar os fantásticos Artistas que representava.
Enfim, com o desaparecimento de Granz, é mais um capítulo que se encerra. Se será certo que o Jazz mainstream que Norman Granz encenava nos palcos da JATP se pratica ainda hoje em todo o mundo - em auditórios majestáticos ou salas de concerto, em pé de igualdade com as música eruditas - e mesmo se cultiva e estuda em escolas e universidades e é tema de seminários e conferências; a ideia de Jam Session que fez bastante do Jazz até aos anos 70, tende a ser substituída, mesmo no Jazz mainstream, por um Jazz conceptual que não tem mais lugar na rua, e que lentamente tende a dissolver o acaso, o fortuito e até mesmo a própria ideia de improvisação que tão intimamente está ligada à própria noção de Jazz.

Leonel Santos
In All Jazz n.º 1, Fevereiro 2002

(foto by Gottlieb)