Publicado em All Jazz 6
Fevereiro de 2003

 

 

 

Raro privilégio, Pedro Abrunhosa recebeu a All Jazz em sua casa para o blindfold test que lhe propusemos. O entusiamo com que acolheu o nosso convite teve equivalente na simpatia, humildade e bom humor com que enfrentou o desafio.
E mais do que pelo número de respostas certas, a conversa com Pedro Abrunhosa revelou-se interessante pela pertinência e inteligência dos comentários.

Leonel Santos

DUKE ELLINGTON
“ Do nothin’ till you hear from me”
do disco “This One’s For Blanton”, Pablo/ OJC, 1972
Duke Ellington – piano
Ray Brown – contrabaixo

O tema é Duke Ellington. Não me lembro do nome. Quem toca... é mais complicado. O contrabaixista é espectacular. É top top. Mas não gosto do som do pianista, não gosto do ataque. Acho que é uma recriação. Embirro com o som do piano. Mas pelo som do contrabaixo... É um som tão madeira, tão puro. E o piano, soa a pianola. É estranho. Swinga é muito bem. O som é um som típico dos anos cinquenta.
Ah é mesmo o Duke Ellington? Com o Ray Brown? Bom, o Ray Brown passou-me pela cabeça... Mas reafirmo o que disse: o Duke Ellington nunca foi um grande pianista... É um grande compositor, mas pianista…. Enquanto o Ray Brown, cresceu sempre... Sem dúvida, é de facto o Ray Brown. São os dedos do Ray Brown, é o som dele.

CARLOS BICA
“ roses for You”
do CD “twist”, ENJA, 1999
Carlos Bica – contrabaixo
Frank Mobus – guitarra
Jim Black – bateria

Isto é contrabaixo tocado com arco. Muito bem tocado.
Isto é um trio. Contemporâneo. A tocar um tema que não reconheço, mas que pode ser um tema do cancioneiro até. Sei é que soa muito bem. Não faço ideia do que possa ser.
Guitarra, contrabaixo, bateria? Ah, o tema é bonito. Soa muito bem. Contrabaixo com arco assim, não sei. Não faço ideia.
É europeu. Não vou descobrir.
(Depois de ver)
Ah! Carlos Bica! Muito bom! Lamento não ter reconhecido o meu colega. Ainda por cima toca num disco meu...
Sobretudo lamento não conhecer o disco...

CHARLES MINGUS
“ Tijuana Gift Shop”
do CD “Tijuana Moods”, Bluebird, 1957
Charles Mingus - contrabaixo
Clarence Shaw – trompete
Jimmy Knepper – trombone
Shafi Hadi – saxofone alto
Bill Triglia – piano
Dannie Richmond – bateria

Deixa-me dissecar. Isto é um ensamble, trompete, trombone, sax...
É ambíguo. Pode ser uma coisa dos anos 50, mas não vou lá.
Charles Mingus? Só me dás contrabaixistas? Vais-me matar!

SONNY ROLLINS
“ Mona Lisa”
do CD “Sonny Rollins + 3”, Milestone, 1995
Sonny Rollins – saxofone tenor
Bob Cranshaw – baixo eléctrico
Tommy Flanaggan – piano
Al Foster – bateria

O tema é do Nat King Cole. O “Mona Lisa”. Não sei quem é o saxofonista. Mas posso fazer uma análise: é o melhor deles todos.
Acho o baixista fraco. Baixo eléctrico. Eu não gosto de baixo eléctrico.
Não reconheço o som do saxofonista. Mas gosta muito de Sonny Rollins.
Acertei? Uau!
Mas é o Sonny Rollins? Mas ele toca com músicos tão maus? Acho o baixista muito mau. Toca as tónicas...
Ah, é um disco recente? Pois é... anos noventa...


BILL FRISELL
“ Hard Times”
do CD “Bill Frisell with Dave Holland and Elvin Jones”, Nonesuch, 2001
Bill Frisell – guitarra
Elvin Jones – bateria
Dave Holland – contrabaixo

Não, isto não conheço. No início pareceu-me John Abrecrombie... Não é?
Mas é um grande guitarrista. Não sei.
Ah é o Bill Frisell? Não o reconheci.
O Frisell ... é um guitarrista que eu conheço bem. Mas nunca o ouvi a tocar acústica.
Por acaso eu fiz um seminário com ele em Lisboa. Na Gulbenkian, quando ele esteve cá... Mas isto não é aquela coisa típica que eu lhe conheço. Isto é um country. Não conheço esta faceta. Falta aquela coisa do bending, do gajo torcer o braço da guitarra...


CHARLIE HADEN
“ Turnaround”
do CD “The Montreal Tapes”, Verve, 1989
Charlie Haden – contrabaixo
Paul Bley – piano
Paul Motian – bateria

Parece-me um tema do Monk.
Isto é um trio, na senda do DeJohnette e do Keith Jarrett.
Muito bom. Mas não vou lá.
Seja lá o que for, vou comprar este disco.
Há bocado ia dizer que era o George Mraz, mas ele é mais melódico.
Ah é um Charlie Haden?
Deixa-me fazer um comentário: não acho isto um Charlie Haden típico. Porque o Charlie Haden típico é um músico com uma ideia de espaço, aquele conceito de espaço e de silêncio. É mais modal. Toca “horizontalmente”.
Além de que tenho desculpa: O Charlie Haden aqui está a acompanhar. O Paul Motian é um tipo que “ocupa muito espaço”. E o Paul Bley também. Se eu tivesse ouvido um solo de contrabaixo, acho que acertava.

MILES DAVIS
“ Pharaoh’s Dance”
do CD “Bitches Brew”, Columbia, 1970
Miles Davis – trompete
Wayne Shorter – saxofone soprano
Lenny White/ Jack DeJohnette – bateria
Bennie Maupin – clarinete baixo
Chick Corea, Joe Zawinul, Larry Young – piano eléctrico
Harvey Brooks – baixo eléctrico
Dave Holland – contrabaixo
John Mclaughlin – guitarra eléctrica.

Ah! Isto é Miles!
Isto é o “Water Babies” ou assim. É desse período. Eu tenho este disco em vinil. Isto é Keith Jarrett a tocar Rhodes. Isto agora é o som do Miles. Ah, é o Chick Corea?
De qualquer maneira, fiquei um pouco baralhado antes do Miles entrar. Mas é Miles. Eu tenho isto. Já não ouço há trinta anos...

RAY ANDERSON
“ Don’t Mow Your Lawn”
Ray Anderson – trombone, vocais
Lew Soloff – trompete
Gregory Jones – baixo
Jerome Harris – guitarra
Frank Colón – percussão
Tommy Campbell – bateria

Não conheço. Mas deixa-me dizer-te que isto é um funk um bocado pobre. É a minha opinião. O James Brown fez isso trinta anos antes. E inventou essa cena de pôr toda a gente a cantar o mesmo coro, a mesma frase, o ostinato. Jamais diria que estava aí o Lew Soloff no meio disso tudo. Mas para funk é mau.
Depois do James Brown fazer aquilo tão bem feito... Não seria um disco que eu teria para ouvir. Enquanto o do Charlie Haden, vou comprar. E o do Frisell, também.

STAN GETZ
“ East of the Sun (And West of the Moon)”,
do álbum “West Coast Jazz” – Verve, 1955
Stan Getz – saxofone tenor
Conte Candoli – trompete
Lou Levy – piano
Leroy Viniegra – baixo
Shelly Manne – bateria

Isto não é o “West of the Moon”?
Conheço mal esta fase destes altos. Lee Konitz?
Soa muito bem. Swinga bem. Músicos que sabem o que é que estão a fazer.
Isto é clássico. Anos 60. É o que é.
Os meus neurónios é que já não são o que eram.
(passa para “Four”)
Ah, isto é o “Four” (trauteia). Toquei tantas vezes isto!
Soa tão bem...
Ah! É o Stan Getz! Não chegava lá. Curioso o Stan Getz a tocar o “Four”... Não fazia ideia.
Cometi aqui um erro de palmatória... Ele toca nos agudos e soava-me a alto.
Não percebo nada disto: quando via os “blindfold test” da Down Beat, eu tinha aqueles discos. Tu só tens coisas esquisitas...


ORNETTE COLEMAN.
“ Street Blues”,
do CD “Tone Dialing”, Harmolodic, 1995
Ornette Coleman – saxofone
Badal Roy – percussões e tablas
Al MacDowell – baixo eléctrico
Ken Wessell, Chris Rosenberg – guitarra
Dave Bryant – teclados
Denardo Coleman - bateria

Não me é estranho o som.
Eu conheço isto. É muito bom isto. Mas não sou capaz de me recordar o que é.
(depois de ver)
Ah! Ornette Coleman, eu tenho este disco. É o disco com o filho a tocar bateria, não é? Por acaso, não é grande baterista.
Ornette! Vou-te dizer mais, jantou aqui em minha casa. E pior, eu tenho este disco mesmo autografado por ele.
Este disco é engraçado. Mas eu conheço melhor o Ornette dos primeiros tempos com o Ed Blackwell, o Charlie Haden, o Paul Motian, com Don Cherry, que esta fase dele que eu acho mais desinteressante. Embora o som esteja lá.

Do que passaste, conhecia 50%. Mas o que eu conheço, no caso do Charlie Haden e do Bill Frisell que são os exemplos que mais me ficaram, mesmo tendo errado e sentindo-me mal por ter errado, eu creio que se deve sobretudo ao facto de achar que eles não estão a tocar aquilo que se chama “música agógica”.
Gostei muito do Charlie Haden e muito do Frisell. Não gostei do Ray Anderson, que achei uma imitação do James Brown e dessa onda funk. Gostei do Miles. Embora não seja a minha fase preferida do Miles. Eu tenho duas fases que prefiro. Primeiro, o “Kind of Blue”, que é talvez o melhor disco de sempre jamais editado. Entre pop, rock, blues, jazz, fado, funk, “Kind of Blue” é O disco de eleição. Mas a fase do “We Want Miles”, a seguir ao regresso, o “Tutu”, o “Doo Bop”, a fase contemporânea, gosto muito. A fase dos anos 70 interessa-me menos. É um bocado experimentalista de mais para o meu gosto. E seria difícil reconhecer se ele não entrasse. Embora a onda do DeJohnette e do Keith Jarrett, seja fascinante. Mas há ali uma parede de som que é um bocado contraditória com a própria postura do Miles. Que é um tipo que tem uma respeito com o silêncio, fantástico. Nomeadamente com a fase do Mike Stern e o Bill Evans saxofonista. Mesmo quando eles constróem a wall of sound, e ele vem por cima e põe aquilo tudo no sítio, no “My man’s gone now” com três notas (trauteia). E este disco é ao contrário: muito volume, muita presença, e quando Miles entra, é outra coisa. Sem o Milesé um disco conceptual.
Este do Frisell, achei fantástico. Não conhecia. E achei sobretudo fantástico o aproach dele à guitarra acústica. Mas era mais difícil ainda. Puseste o Frisell a tocar Nashville.
Este do Charlie Haden, eu tenho a certeza que era capaz de reconhecer um solo dele às três primeiras notas. Decididamente, tu és mau.
Mingus. É um bom contrabaixista, mas é sobretudo um músico de grupo. É como o Ellington. É melhor orquestrador e compositor que instrumentista. Tem um conceito de construção quase arquitectónico da música. Melhor que como contrabaixista que não aprecio. Poucas notas. Mas tinha um grande som e uma grande projecção de som fantástica e uma concepção de grupo. Tive pena de não acertar.
Também tive pena de não acertar no Bica. E no Ray Brown. Pensei nele. O Duke Ellington, não é um disco que eu ouviria como pianista. O Duke Ellington para mim é o maior compositor de Jazz a seguir ao Miles. Mas não é grande pianista.
O Ornette. Só o facto de eu estar destreinado é que não te disse que era o Ornette. Como te disse, eu tenho o disco e ele jantou aqui em minha casa. Eu fui buscá-lo ao hotel e tocámos um bocadinho no meu estúdio. Ele é um tipo muito simpático. Comeu feijoada. E adorou. Acompanhou com leite. Dizia assim: “This is soul food, man”.
Stan Getz, conheço mal. Ele tem esta coisa de tocar nos agudos parecendo um alto, mas no que tu mostraste, ele tocou sempre lá em cima, não desceu no registo. Mas é muito bom.
Vou-te dizer uma coisa: não me trouxeste nada que eu dissesse assim à primeira: “Ah, eu tenho isto”. Aquelas coisas, tipo “Conference of The Birds” do Dave Holland, que eu acertasse às três primeiras notas. Tu foste mau. Tu gostas de torturar os músicos.
Enfim, sabes que eu nos últimos dez anos, infelizmente até por razões profissionais quase deixei de ouvir jazz. É por isso é que eu estou “destreinado”. Mas mantenho excelentes relações com músicos de Jazz, como de funk. Muito próxima. E esta casa já presenciou grandes “desbundas”. Toquei com o James Brown, toquei com o Maceo, toquei com o Pee Wee Russell, toquei com o Fred Wesley, toquei com o Prince. E com os músicos todos do Prince, menos o Prince. Aqui em minha casa. O Prince tocou comigo, mas nunca veio a minha casa. E esta é a minha cena nos últimos dez anos. Esta casa já presenciou grandes concertos! Mas não penses que só toco funk: apesar do pouco tempo livre que tenho, sempre que posso encontro-me com amigos para tocar Jazz. Menos vezes do que eu gostaria...