Sassetti no Ronnie Scott’s

 

António Curvelo

Um dia depois da estreia britânica de Chico Buarque (apesar de uma carreira vizinha dos trinta anos nunca tinha cantado na Grã-Bretanha!) e quase à mesma hora em que o trio Joe Henderson- David Holland-Al Foster concertava no Royal Festival Hall, Bernardo Sassetti tocava uma página histórica do jazz nacional. Pela primeira vez, um músico de Portugal inscreveu o nome entre os cabeças de cartaz do Ronnie Scott’s, talvez o mais popular clube de jazz da Europa.
À porta do 47 da Frith Street, a confusão informativa aconselha a necessidade do Ronnie Scott’s investir num “copy-desk”. Sassetti é sucessivamente publicitado como dirigindo o seu quarteto ou quinteto e um dos cartazes vai mesmo ao ponto de discriminar individualmente os nomes dos quatro músicos que constituem o Bernardo Sassetti’s Quintet...

Mas em matéria de artes à portuguesa, não foi só Sassetti a conquistar o direito à entrada no “Time Out” da semana de 21 a 28 de Julho. Perdido na página 155, lá vem o destaque para o filme no Channel Four: “Hard Times” de João Botelho, “an exemplary, very cinematic adaptation of Dicken’s novel (...). Arguably the finest literary adaptation of the latest decade, the film’s a masterpiece, and not to be missed”. Quanto a Sassetti, a confusão no “Time Out” é ainda maior. Toda a semana de 19 a 24 a tocar no Ronnie Scott’s integrado no quarteto do saxofonista Jean Toussaint, ei-lo transferido para compromissos diários noutros clubes (Vortex, 606 Club) antes de ser devolvido ao palco da Frith Str. como parceiro da Pee Wee Ellis Assembly.

Quem não se atrapalhou nesta pequena floresta de enganos foi o próprio Sassetti. Nome já popular entre o “staff” do clube, Bernardo aproveitou bem a semana com Jean Toussaint para sentir e aprender a tratar os segredos de uma casa cujo público varia como o tempo londrino.

Nas noites de sexta e sábado não foi fácil tocar num Ronnie Scott’s a pagar o tributo da popularidade, centro de passagem de yuppies e outras estrelas cadentes que se exibem, ruidosamente numa busca permanente da atenção das suas não menos exibicionistas companhias, numa sucessão de mesas em que a música, tocada ali a dois passos, não chega a ser pretexto, quanto mais texto. De Jean Toussaint a Sassetti e Mark Mondesir (o baterista do quarteto) todos se queixam : Mas todos enfrentaram o problema sem concessões, tocando a “sua” música e não a música que mais facilmente poderia interromper ou sobrepôr-se ao barulho das vozes, dos copos e dos pratos. Nos segundos “sets”, Toussaint nunca deixou de entregar o palco “to our pianist Bernardo Sassetti” que, corajosamente, se abandonou às sensualidades líricas de duas baladas superiormente cantadas no teclado (“Yesterday” e “I Thought About You”).

A estreia de Sassetti como lider na noite de 26 foi prometedora. Quando escrevo estas primeiras linhas (escassas seis horas depois do regresso ao hotel), tudo indica que a semana de Bernardo tenderá a crescer. Em primeiro lugar porque a partir da noite de 27 (3ª feira) poderá contar com o seu baterista habitual, Ralph Salmins (indisponível para a noite da estreia devido a compromissos televisivos), o que trará uma muito maior coesão rítmica ao quarteto, já que o seu substituto (Mark Taylor) desconhecia a estante de originais do pianista, forçando-o a adaptar um reportório mais “consensual”, à volta de temas de Monk, Wayne Shorter, McCoy Tyner. E depois, porque à medida que o jogo vai andando (e as actuações de Sassetti vivem muito dessa ambivalência preciosa da entrega e do prazer lúdicos que o jazz foi perdendo e nunca devia ter perdido) os jogadores vão-se conhecendo melhor e as jogadas tornaram-se mais criativas e eficazes. Este processo de dupla empatia (no palco e entre o palco e a sala) foi, aliás, visível na noite de segunda-feira, em que o quarteto arrancou num segundo “set” muito mais alto e comunicativo, sabendo beneficiar de um público surpreendentemente numeroso (a sala chegou a estar cheia) e atento às notas e que, no final, se despediu de Sassetti com calorosas ovações.

Quanto às presenças individuais, poucas surpresas mas algumas certezas. Peter King é hoje um dos maiores saxofonistas (altos) europeus. (Jean Toussaint confessou-nos isso mesmo, lamentado a sua subavaliação pelo público inglês). Ter um músico como Peter King como hóspede é uma honra para qualquer grupo. Sassetti já mostrou que merece esse privilégio e King não esconde o prazer que sente neste(s) encontro(s). Wayne Batchelor, que tocou em Maio no Festival Jazz Europeu no Porto, (des)integrado na banda de Courtney Pine, é um contrabaixista de grande segurança, praticando uma economia de notas que se tornou rara na montra contemporânea do instrumento, e Mark Taylor, embora certo, esteve naturalmente menos à-vontade do que os seus parceiros de ocasião.

Falta Bernardo Sassetti, um músico que, cada vez mais, é difícil apanhar em falta — precisamente porque começa a dominar (a sabedoria da experiência!) o modo de fazer de cada erro uma nota certa. Ou, como ensina a memória do jazz, nesta música não há notas erradas; o que há é notas certas mal tocadas. À medida que o novo rosto musical de Sassetti, de fortes colorações latino-americanas, se vai afirmando, o seu piano enterra mais na terra as raízes bluesy e apura o lirismo da alma. Esta sua semana na Ronnie Scott’s já entrou na história doméstica da nosso jazz. Mas pode ser uma data decisiva para o futuro da carreira internacional de um Bernardo Sassetti para quem as fronteiras portuguesas já pertencem ao passado. “É necessário sair lá de baixo para crescer”, dizia-nos, à mesa de um restaurante italiano no Soho, com a mesma naturalidade com que uma hora depois desafiava as notas ao piano.

Publico 28 de Julho de 1993