Em Londres, à volta de Sassetti

 

António Curvelo

Durante quatro noites, Londres foi vivida ao ritmo do piano de Bernardo Sassetti. A ideia era só uma: acompanhar a sua estreia como nome de cartaz no Ronnie Scott’s, o clube inscrito em todas as geografias do jazz.

O pianista já não era um desconhecido do palco da Frith Street; mas era a primeira vez que um músico português representava o papel de líder de um agrupamento contratado pelo clube. Marcada para dia 26, a estreia foi antecedida de uma semana de rodagem, proporcionada pela passagem do quarteto de Jean Toussaint pelo Ronnie Scott’s, com Bernardo a assegurar o lugar de pianista. Uma colaboração já antiga, iniciada em Espanha, quando o saxofonista americano cumpriu uma série de “gigs” apoiado pelo trio de Zé Eduardo. Toussaint ficou impressionado com o que ouviu e pouco depois chamou-o para tocar com ele em Londres. A capital inglesa tornou-se, rapidamente, a segunda casa de Sassetti, ao ponto de aí fundar o seu próprio trio, com Wayne Batchelor (contrabaixo) e Ralph Salmins (bateria), dois músicos de qualidade com quem Bernardo já partilha uma evidente e gratificante empatia.

Apesar de uma crise anunciada (de que Peter King já nos falara, em termos bem negros, em fins de Maio, no Porto, mas que Jean Toussaint agora nos minimizou, dizendo que continua a haver bons palcos para tocar e que as dificuldades maiores se restringem à área da capital, bastando entrar no circuito dos clubes da província para encontrar uma realidade bem mais saudável), Londres continua a disponibilizar uma boa oferta, se não sempre em qualidade, pelo menos em quantidade. Entre 23 e 27 de Julho, todas as noites as hipóteses de escolha ultrapassavam as duas dezenas. Com uma paleta variada, dos blues ao jazz latino e ao dixieland (essa memória histórica que há setenta anos embala o berço do jazz britânico), passando pelo classicismo de um Joe Henderson (em espectáculo único, com o seu trio, no dia 26) ou pela modernidade de nomes como Andy Sheppard, Courtney Pine, Jazz Warriors, Don Byron ou esse velho símbolo do experimentalismo livre que se chama Derek Bailey, o jazz ao vivo (o verdadeiro oxigénio de uma música que vive e se deve viver momento a momento) continua bem ancorado nas salas de Londres.

Um palco a cheirar a história

De volta ao Ronnie Scott’s, basta atentar na programação mais recente para confirmar a mais-valia do seu palco. A Elvin Jones Jazz Machine, os quintetos de Delfeayo Marsalis e Roy Haynes, os blues e gospels de Linda Hopkins e a soul music da Pee Wee Ellis Assembly foram os cabeças de cartaz do mês de Julho; para Agosto estão agendados Hermeto Pascoal e Jon Hendricks; e já anunciados para os meses seguintes encontram-se Cedar Walton, Chico Freeman com Arthur Blythe, James Moody, Roy Ayers, Irakere e Maynard Ferguson. Por doze libras, todas as noites (com excepção do domingo) se conquista o direito a três horas de música, divididas por quatro “sets”, a cargo de dois grupos diferentes. Na semana de 19, o quarteto de Jean Toussaint alternava com a banda de Linda Hopkins; e entre 26 e 30, o quarteto de Bernardo Sassetti antecedia a congregação chefiada por Pee Wee Ellis. Duas semanas organizadas em torno do mesmo tipo de equilíbrio, com um jazz instrumental mais complexo (Toussaint, Sassetti) abrindo as portas a um maior imediatismo musical (cantado pela voz de Linda Hopkins ou pelo tenor de Pee Wee) fortemente encostado às raízes bluesy da música negra da América. E desde já se diga que se os aplausos da sala privilegiaram a maior carga física das notas e a dimensão do espectáculo encenado pelas vedetas, o maior sentido do risco e o prazer da aventura, esses moraram nos grupos de Toussaint e Sassetti.

Linda Hopkins raramente se afastou de um guião, cumprido a preceito, com espaço para momentos de “show bizz” desagradáveis, como o número (já visto no Coliseu de Lisboa em 92) da cerveja emborcada de um trago por uma mulher que traz dentro de si o melhor e o pior dos palcos do blues, ou a cena, humilhante, em que o saxofonista Robert Kyle (um tenor de excelente coloração) se ajoelha para a descalçar, por forma a que a dama se sinta “como se estivesse em casa”. E Pee Wee, sabedor de tudo o que há para saber lá para as bandas do rhythm & blues e da soul (ou não tivesse sido um actor importante do fenómeno James Brown), igualmente se acomodou a um cenário previamente delineado, de fronteiras mais rígidas do que menos, com os solistas a sucederem-se nos mesmos sítios e com as mesmas notas nos mesmos temas. Tarefa de que a mestria do saxofonista, a fogosidade da trompete de Guy Barker e a inventiva dos teclados do já famoso Jason Rebello se desempenharam com facilidade e bom gosto, para mais respaldados na ágil criatividade de um grande senhor da bateria chamado Mark Mondesir. A oportunidade que tive de assistir, no espaço de três meses, a três actuações de Mondesir em contextos bem diferenciados (com Courtney Pine, no Teatro Rivoli, e agora ao lado de Jean Toussaint e Pee Wee) confirmou-me o seu nome como um dos mais estimulantes bateristas da nova cena do jazz europeu.

Confiança e gosto pelo risco

Quanto a Bernardo Sassetti, foi um gosto renovado reencontrá-lo de volta ao seu melhor. Depois de algumas passagens pelo palco que me soaram menos felizes, porque um pouco inseguras ou algo “desorientadas” com o limiar de um novo ciclo em que a sua música claramente entrou, ressurgiu com uma excelente articulação de ideias e notas e, acima de tudo, com uma rejuvenescida alegria de tocar que espanta para bem longe qualquer tentação de soluções mecanicistas.
Com Jean Toussaint, mesmo quando, na noite de 24, o quarteto regressou a alguns dos temas tocados na véspera, não houve no seu piano sinais de fotocópia musical, que é sempre a maior tentação das almas que se acomodam àquilo que antes lhes saiu bem. E a segurança exibida nas duas baladas em que o saxofonista lhe entregou o palco só é possível em quem respira confiança. Não menos interessante é a capacidade revelada no modo de apoiar e provocar o discurso solista dos companheiros. Jean Toussaint (um tenor de forte influência coltraneana e rollinsiana, com boa sonoridade e boa presença rítmica) não esconde o apreço que vota ao seu pianista, que, aliás, já garantiu um lugar, juntamente com Mark Mondesir, no seu novo disco, a gravar ainda este ano. A vinda a Portugal de Toussaint poderia ajudar à descoberta, no seu próprio país, de um pianista de mão cheia que, a crer numa história louca ouvida no Ronnie Scott’s, não passa de um ilustre desconhecido em sectores que deveriam saber de cor o seu nome. A história é curta e elucidativa: João Van Dunem, produtor da Secção de Língua Portuguesa da BBC, resolveu convidar Sassetti para uma entrevista. Desconhecendo os dados biográficos do pianista, telefonou para Lisboa, para uma editora discográfica de peso, à espera de recolher as informações necessárias. Mas a resposta foi desanimadora: “É um músico radicado nos Estados Unidos há muito tempo e que por cá ninguém conhece”...

A segunda noite da semana Sassetti no Ronnie Scott’s confirmou totalmente a anterior previsão (ver PÚBLICO de 28 de Julho): o regresso ao grupo de Ralph Salmins, o habitual baterista do trio de Sassetti, trouxe uma solidez estrutural e uma coloração rítmica que o seu substituto na noite de estreia, muito naturalmente, não conseguira pôr em cena. Salmins é um músico ecléctico, membro de uma orquestra sinfónica e presentemente participante do espectáculo “Crazy For You”, com música e letra dos irmãos Gershwin, em cena no Prince Edward, ali mesmo ao lado do Ronnie Scott’s; e só a sua preocupação em arranjar um substituto para as partituras de Gershwin lhe permitiu estar ao lado de Sassetti nesta sua semana de consagração. Peter King, o músico convidado, manteve a excelência do seu saxofonismo: emoção servida pela técnica (e nunca o inverso); sonoridade personalizada, moldada em Parker e pontualmente colorida por frases com sabor a Phil Woods; clareza rítmica e uma constante amizade pela melodia. Do contrabaixo de Wayne Batchelor também não vieram surpresas: a mesma segurança, o mesmo jeito depurado, por vezes quase ascético, de tratar as notas, a mesma confiança na força acústica do instrumento.

Sob a direcção de Sassetti, e à medida que o tempo foi passando, o entrosamento colectivo foi crescendo. Na estreia, o segundo “set” foi melhor do que o primeiro; e na noite de 27, a tendência manteve-se. Mais solto do que na véspera, o quarteto atacou com um standard (“It’s All or Nothing At All”); deliciou-se com o sabor latino de “Uma Simpática” (um original de Sassetti); voltou às geografias de “Narayama” e “Guataca City” e despediu-se com a assinatura final, um preguiçoso “Straighten Up and Fly Right” de Nat King Cole. Hora e meia mais tarde, cantou Kurt Weill (“This Is New”); surpreendeu com um arranjo escrito pelo líder para “It’s Only a Paper Moon”; revisitou, pelas mãos de Peter King, a ternura de “You Taught My Heart to Sing”; retomou os prazeres de “Passion Dance” e bisou “Straighten Up”.

Bernardo Sassetti está hoje mais maduro e atento aos sons do mundo. A sua opção pelas raízes latinas é cada vez mais evidente, arrastando consigo uma maior apetência pelos tempos rápidos e emprestando às notas uma acentuada dimensão percussiva. Mas esta “transfiguração” musical (a que está directamente associada a influência de Paquito d’Rivera) não estrangulou o lirismo que lhe ilumina as mãos sempre que se aproximam das baladas.
O piano de Sassetti vive de coração aberto. “Acabo de descobrir um pianista fabuloso: John Taylor.” “Jarrett é um génio.” “Sting é um músico extraordinário.” “Entre os pianistas vivos, há os grandes mestres e os outros; e os grandes mestres são Hank Jones, Tommy Flanagan, Cedar Walton, Kenny Barron. E Ahmad Jamal.” E quando se lhe pergunta pelos deuses da “clássica”, cita Bartok e Schonberg como dois dos autores que mais ouve. E para os que insistem na separação das músicas em mundos estanques manda, orgulhoso, um recado: “Pela primeira vez a Casa de Mateus vai abrir as suas portas ao jazz. Entre 16 e 21 de Agosto decorrerá um ‘workshop’ dedicado a cantores, com a participação de Norma Winstone e em que eu também colaborarei.”

No bar da cave do Ronnie Scott’s, onde os músicos se costumam juntar no intervalo dos seus “sets”, uma colecção de fotografias espera por compradores. Numa delas (excelente) Bernardo Sassetti conversa com o piano. Mas é cá em cima, no palco e ao vivo, que se joga o futuro. Um futuro com nome de filme: “Sassetti in Jazz Society”.

 

Publico 30 de Julho de 1993