Charles Lloyd

Rabo de Nube, 2008, ECM
CD do ano 2008

Sem surpresas, Charles Lloyd fez o melhor disco do ano de 2008. Registo de um concerto gravado em Basileia a 24 de Abril de 2007, apenas alguns dias depois de ter tocado em Portugal (Casa da Música, 18 Abril e Culturgest, 20 de Abril). O concerto da Culturgest obteve o voto do melhor concerto desse ano (ex aequo com Jason Moran - CCB, Joe Lovano – Aula Magna e Kurt Elling – Estoril Jazz) da crítica nacional reunida em JazzLogical.
De regresso à formação quarteto depois da interrupção «oriental» Sangam com apenas bateria e percussão, Lloyd ressurge com um intenso e belíssimo registo em Rabo de Nube. Lloyd mudou o baixo e o piano do quarteto, e aqui reside a principal diferença na formação (da fase moderna, ECM): o piano mais intrusivo de Jason Moran - mais que Geri Allen e muito mais que Bobo Stenson.
Com 70 anos de idade Charles Lloyd é um veterano, mas permanece inequivocamente um dos grandes saxofonistas da actualidade. Um clássico, na linha de Coleman Hawkins ou John Coltrane, ele não procura a originalidade. A sua inovação maior ter-se-á dado nos anos 70 no seu célebre quarteto flower power com Keith Jarrett, DeJohnette e Cecil McBee, não tanto na sonoridade do saxofone mas na aproximação à pop music que lhe granjeou uma popularidade rara no Jazz.
Com os anos a música de Lloyd vem ganhando intensidade a par de melodia. Booker’s Garden na flauta e em especial Rabo de Nube – canção de que dá o nome ao CD, são momentos verdadeiramente pungentes. Por um momento, em Ramanujan, Lloyd regressa ao tarogato que marcava Sangan, apenas atalhado pelo piano de Jason Moran que em todo o disco demonstra porque é um verdadeiro príncipe do instrumento. Ora clássico ora moderno, ora mavioso ora anguloso, ele tem o dom de ser sempre pertinente.
Reuben Rogers no contrabaixo e o engenhoso Eric Harland na bateria asseguram o colorido pano de fundo rítmico que fazem de Rabo de Nube o CD do ano.

17 de Janeiro de 2009


Nascido em 1938, no Tenesse, Charles Lloyd estreou-se nos anos 50 em clubes de blues, onde tocou ao lado de estrelas como Howlin' Wolf ou B.B. King. No início dos anos 60 toca na banda do baterista Chico Hamilton, um descobridor de génios (Eric Dolphy, Jim Hall...) e de seguida com Cannonball Adderley. Em 1965 gravou para a Atlantic e no ano seguinte formou o memorável "Charles Lloyd Quartet", onde ao lado do contrabaixista Cecil McBee, revelou ao mundo o talento do pianista Keith Jarret e do baterista Jack DeJohnette. No fim dos "sixties" aproximou-se perigosamente do "Flower Power", onde se perdeu em colaborações irregulares ao lado do fenomenal guitarrista Jimi Hendrix, de Jerry Garcia, Janis Joplin, etc, (que uma boa parte dos jazzófilos nunca perdoariam) não sem antes vender um milhão de cópias de Forest Flower, do seu quarteto, o que é, sem dúvida, um marco considerável para um disco de Jazz.
Nos anos 70, iniciou um período de reclusão voluntária no Big Sur (costa a sul de S. Francisco, repouso privilegiado de artistas - ‚ é aí que está o museu de Henry Miller - onde ainda persistam algumas comunidades hippies). Charles Lloyd aí permaneceu num puro ascetismo - ele professa o hinduísmo -, até que o talento do jovem (…à altura com 17 anos) Michel Petrucciani o fez renascer das cinzas, numa colaboração que durou quase quatro anos. Já no fim da década de 80 o saxofonista fez renascer o seu quarteto, com outro jovem prometedor que se tinha estreado ao lado de Jan Garbarek, o pianista Bobo Stenson. A completar o combo, precisamente os dois créditos desse mesmo quarteto de Garbarek, Palle Danielsson e Jon Christensen, em baixo e bateria.
Fish Out Of Water, a estreia e consagração do saxofonista na ECM, é a materialização do engenho destas quatro personalidades, num muito justamente celebrado registo, um disco de rara beleza, de linhas melódicas bem de acordo com o credo de Lloyd.
Notes From Big Sur, marco do novo perído do músico é, de certa forma, também o balanço da obra e da sua vida. Espantosamente este disco soa-me como uma evocação do mais místico de John Coltrane, depurada da tensão e da catástrofe do seu período terminal. Charles Lloyd sempre foi um discípulo confesso de Trane, e em Fish Out Of The Water era fácil apontar as referências; mas "Requiem" o tema de abertura de Notes… parece inspirado pelo próprio espírito do mestre, pela paz que ele sempre procurou.
Mas Notes From Big Sur não se esgota nas chaves de Coltrane. O saxofonista reencontra-se com a tradição entre o vocal de Lester Young e o lirismo de Stan Getz, explícitamente inspirado na agrura dos elementos, na beleza selvagem do parque natural que foi o seu refúgio. "Monk in Paris" e as duas partes de "Pilgrimage to the Mountain" revelam em Lloyd o compositor harmonioso e fecundo. Um grande disco, de uma beleza serena
Voice In The Night substitui o piano pela guitarra de John Abercrombie, com resultados desiguais. O veterano Abercrombie admite um maior protagonismo ao saxofone, sem deixar de ser interveniente, alternando a sua sonoridade “espacial” com o touch delicado de Joe Pass e um cromatismo vivo que não pode deixar de lembrar Bill Frisell. Dave Holland que, creio, se estreia ao lado de Charles Lloyd, é um sideman activo, âncora e mar onde o quarteto voga, o mesmo se podendo dizer do sólido Billy Higgins, amigo de longa data de Lloyd.
Hyperion with Higgins, registo de um dueto com Billy Higgins foi editado logo após o desaparecimento do baterista. Apesar de irregular, é um disco intenso e inspirado, como que premonitório. A prestação do saxofonista atinge níveis inauditos, estimulado pelo baterista e pela ausência de instrumentos harmónicos ou baixo. Um dos melhores discos de sempre de Lloyd.
A obra de Charles Lloyd sempre me impressionou pela intensidade e beleza cruel que transmite. Quando há alguns anos pude partilhar alguns momentos com o saxofonista, um pouco do mistério em torno da sua música desvanecxeu-se: Lloyd carrega consigo uma tristeza e uma raiva que a música apenas ajuda a exorcizar. Quando, no auge de uma carreira de sucesso, se refugiou no Big Sur, a sua opção foi incompreendida por quantos amavam a sua música. No fundo da noite Charles Lloyd fala dos outros músicos que desapareceram, “all those cats who left me alone”, de uma forma dorida e perturbante. Coltrane, Bird (Charlie Parker), Cannonball, Coleman Hawkins ou Billie Holiday (a quem por vezes parece confundir com a própria mãe) permanecem como fantasmas e ao mesmo tempo como actores da sua música que se confunde com a própria vida. Charles Lloyd tocou no Estoril pouco tempo após o desaparecimento de Higgins e a sua perturbação era notória. A dor transformou o concerto num momento de tristeza, beleza e emoção nunca vistas.
Em Hyperion with Higgins Lloyd parece querer retomar a música de Coltrane no ponto exacto onde este a deixou em 1967; no misticismo, na procura da paz interior e harmonia e na intensidade do saxofonismo, cuja paternidade nas formas não renega.
Lift Every Voice alarga o repertório aos espirituais e à soul music, ao mesmo tempo que faz regressar o piano ao seu grupo e Geri Allen, a pianista convocada, sempre inspirada e atenta, é perfeita. Para o contrabaixo vêm alternadamente Marc Johnson e Larry Grenadier, enquanto a sonoridade (aqui) bluesy de Abercrombie permanece. É um registo mais leve na discografia de Lloyd, interessante na abordagem a uma certa pop negra.
Sangam é o regresso à mística “oriental”. Sem deixar de ser um disco profundamente coltraneano, a própria formação instrumental remete para as sensibilidades mais “etno”: Lloyd em flautas, tarogato e percussões, além de voz e saxofones, Zakir Hussain em tablas, voz e percussões e Eric Harland em bateria, piano e percussões.
Curiosamente a formação que agora se apresenta em Portugal troca Hussain pelo baixo de Reuben Rogers e acrescenta o piano do jovem Jason Moran, sugerindo alguma novidade.
Grandes concertos – Casa da Música e Culturgest - em perspectiva.
17 Abril 2007

http://www.charleslloyd.com/