Charlie Haden
1937-2014
Charlie Haden ficará entre nós, para sempre, como o músico de Jazz que ousou desafiar o regime fascista português. Talvez mais para lá do que a sua música, a sua importância foi, desde sempre, para nós, simbólica.
A história é conhecida e foi relatada vezes sem conta: no primeiro Festival de Jazz de Cascais, em 1971, o único músico branco do quarteto de Ornette Coleman dedicava uma composição aos movimentos de libertação de Angola, Moçambique e Guiné.
Para o superlotado pavilhão do dramático de Cascais, e em especial a sua maioria jovem (aproximadamente 10.000 pessoas para um pavilhão de lotação de 5.000), a própria existência do festival já era quase um desafio ao regime: significava a incapacidade do regime de suster a pressão da contestação ao regime, da modernidade e da «contra-cultura» - e era bastante assim que nós entendíamos. Viviam-se tempos de contestação por todo o mundo, a oposição à intervenção americana no Vietname, o rescaldo do Maio de 68 e da Primavera de Praga e também do Woodstock, do movimento hippie, dos moviemntos pela paz (e pelo amor, make love not war), do rock e da pop music, e do Jazz que começava a chegar, do Jazz eléctrico de Miles Davis, terrivelmente moderno, e do free-jazz de Ornette Coleman (o free-jazz/ black power). A coragem da contestação pública da guerra colonial só podia ter o nosso apoio e servia para isolar ainda mais o regime putrefacto do salazarismo/ marcelismo.
Enfim, eu próprio já contei a história: Charlie Haden foi preso e libertado depois da intervenção directa do embaixador norte-americano em Lisboa, com direito a táxi grátis para a Portela.
O percurso musical de Charlie Haden é prolífero e longo. Tendo-se iniciado no final dos anos 50 com o pianista Hampton Hawes, nos anos seguintes tocou com Paul Bley, Art Pepper e Ornette Coleman, com quem gravou em 1959 o seminal The Shape of Jazz to Come.
Depois os seus caminhos tanto contemplaram a Thad Jones - Mel Lewis Orchestra como Archie Shepp, e em 1967 integrou o trio, depois quarteto, de Keith Jarrett, com Paul Motian e Dewey Redman, e uns anos mais tarde co-fundou o colectivo Old and New Dreams com Don Cherry, Dewey Redman e Ed Blackwell.
Em 1970 cria a Liberation Music Orchestra (onde se reconhece o génio de Carla Bley nos arranjos), que acrescentava uma componente política à música, e onde o Jazz se inspirava nas músicas populares e revolucionárias. O primeiro disco era dedicado à Guerra Civil Espanhola, em 1985 The Ballad of the Fallen regressava a Espanha, à América Latina, e também a Portugal, com Grândola de José Afonso, em 1990 Dream Keeper contestava o apartheid e a reanimada Liberation de 2005 - Not In Our Name - opunha-se à intervenção americana no Iraque.
Em 1987 Haden funda o Quartet West, que haveria de passar também por Portugal, por pelo menos duas vezes, com Ernie Watts no saxofone, Alan Broadbent no piano e Billy Higgins, Larance Marable ou Rodney Green, na bateria. No último disco, Sophisticated Ladies, Haden convidou as vozes de Melody Gardot, Diana Krall, Norah Jones, Cassandra Wilson, Renée Fleming e Ruth Cameron, de que levou Melody «um anjo» Gardot ao palco do pavilhão do Seixal.
Do ponto de vista musical ainda, vale a pena referir dois aspectos: um primeiro, o walking preguiçoso e grave, diria dramático, do contrabaixo, e a empatia fácil que criava com qualquer músico. As Montreal Tapes, registo de vários dias consecutivos do festival de Montreal de 1989, onde tocou com Geri Allen, Paul Motian, Egberto Gismonti, Don Cherry, Ed Blackwell, Gonzalo Rubalcaba, Paul Bley, Joe Henderson e Al Foster, são exemplares da empatia que cria e dos seus duos e trios onde melhor expressa o dramatismo e a profundidade do contrabaixo.
As pequenas formações, os duetos e trios, são para Haden uma forma privilegiada, e ele tocou com Keith Jarrett, Pat Metheny, Alice Coltrane, Paul Motian, Ornette Coleman, Egberto Gismonti, Jan Garbarek, Lee Konitz, Brad Mehldau, Kenny Barron; enfim, literalmente toda a gente. Entre o bop e o free-jazz e não apenas no Jazz, mas também na pop, na folk (nos folclores), na canção, no blues, ele tocou também com Carlos Paredes, Ginger Baker, Beck, Rickie Lee Jones, Melody Gardot, Yoko Ono, Joni Mitchell, Elvis Costello…
«Um amigo de Portugal» (diríamos nós, aquele Portugal que tem portugueses) lhe chamaram muitas vezes. Charlie Haden ajudou à consciencialização da inevitabilidade da queda do regime, em 1971, e a sua amizade está registada em três discos:
- Closeness, de 1976, duetos com Ornette Coleman, Keith Jarrett, Alice Coltrane e Paul Motian, onde inclui o tema «For a Free Portugal», dueto com Paul Motian a partir da intervenção em Cascais de 1971.
- The Ballad of The Fallen, de 1982, da Liberation Music Orchestra, onde toca o «Grândola Vila Morena» de José Afonso.
- Dialogues, de 1990, duo com Carlos Paredes.
Escrevi sobre as duas últimas vezes que Charlie Haden tocou em Portugal, num inesquecível concerto da Liberation em Guimarães, em 2006, e no Seixal, em 2010 com o Quartet West.
- Acaba de ser editado um CD na ECM, com o amigo de sempre Keith Jarrett, Last Dance; gravação de 2007 .
Personalidade complexa, Charlie Haden marcou o Jazz dos últimos 50 anos, mas para nós portugueses, ele será sempre muito mais do que isso, também um amigo.
DISCOGRAFIA SELECCIONADA
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The Shape of Jazz to Come |
Atlantic, 1959 |
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Free Jazz |
Atlantic, 1961 |
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The Jazz Composer's Orchestra |
JCOA, 1968 |
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Liberation Music Orchestra |
Impulse!, 1969 |
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Escalator Over The Hill |
JCOA, 1971 |
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Conception Vassel |
ECM, 1972 |
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Death and The Flower |
Impulse!, 1974 |
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Closeness |
Horizon, 1976 |
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Old and New Dreams |
Black Saint, 1976 |
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Golden Number |
Horizon , 1977 |
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Musique Mecanique |
Watt, 1978 |
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Folk Songs |
ECM, 1979 |
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Magico |
ECM, 1979 |
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Old and New Dreams |
ECM , 1979 |
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80/ 81 |
ECM, 1980 |
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The Ballad of the Fallen |
ECM, 1982 |
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Song X |
Geffen, 1986 |
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Etudes |
Soul Note , 1987 |
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Quartet West |
Verve, 1987 |
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Silence |
Soul Note, 1987 |
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Art Deco |
A&M, 1988 |
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Dialogues |
Antilles, 1990 |
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First Song |
Soul Note, 1992 |
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Universal Language |
Blue Note, 1992 |
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A Turtle's Dream |
Verve, 1984 |
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The Montreal Tapes: with Paul Bley and Paul Motian |
Verve, 1994 |
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The Montreal Tapes: with Don Cherry and Ed Blackwell |
Verve, 1994 |
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Alone Together |
Blue Note, 1996 |
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Now is The Hour |
Verve, 1986 |
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Beyond the Missouri Sky (Short Stories) |
Verve, 1997 |
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Nocturne |
Verve, 2001 |
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American Dreams |
Verve, 2002 |
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Not in Our Name |
Verve, 2005 |
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Rambling Boy |
Decca, 2008 |
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Jasmine |
ECM, 2010 |
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Sophsticated Ladies |
EmArcy, 2010 |
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Last Dance |
ECM, 2014 |