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Free To Dream
Welcome To Life
Bastion Of Sanity

Três discos de David Binney

David Binney
Free To Dream
David Binney (sax alto)
Don McCaslin (sax tenor)
Edward Simon (piano)
Adam Rogers (guitarra clássica)
Scott Coley (contrabaixo)
Jeff Hirshfield (bateria)
Kenny Wollensen, Daniel Sadownick (percussões)
Alex Sipiagin (trompete)
Clark Gayton (trombone)
Jamie Baum (flautas)
Doug Yates (clarinete baixo)
(Mythology Records)
1998, rec. New York, 1996
Free to Dream, 9/10

David Binney
Welcome to Life
David Binney (sax alto)
Chris Potter (sax tenor)
Craig Taborn (piano)
Adam Rogers (guitarra)
Scott Colley (contrabaixo)
Brian Blade (bateria)
(Mythology Records)
2005, rec. New York, 2004
Welcome to Life, 8/10

David Binney
Bastion of Sanity
David Binney (sax alto)
Chris Potter (sax tenor)
Jacob Sacks (piano)
Thomas Morgan (contrabaixo)
Dan Weiss (bateria)
(Criss Cross)
2005, rec. New York, 2004
Bastion of Sanity, 9/10

Quando David Binney tocou em Portugal pela primeira vez, em Guimarães, no ano de 2000, trazido pela mão de Ivo Martins, ele era um quase desconhecido para toda a gente. E no entanto o seu nome era já reconhecido entre a comunidade dos músicos como uma referência: afinal por essa altura ele já tinha tocado com Uri Caine, Scott Colley, Brian Blade, John Medeski ou Alex Sipiagin e contava com três discos gravados sob o seu nome, sem contar com os projectos The Lost Tribe e Lan Xang, que alimentara de parceria com Adam Rogers, Ben Perowsky, Scott Colley, Jeff Hirshfield, Donny McCaslin...

Binney foi aluno de Dave Liebman, Phil Woods e George Coleman, e o seu ecléctico percurso académico esclarece um pouco as origens da forma particular de mainstream transgressor que pratica, mas não as esclarece globalmente. A personalidade forte do saxofonista conterá por decerto os elementos em falta.

O disco que David Binney apresentou em Guimarães, "Free To Dream", era um ambicioso projecto - um dodecateto com dois saxofones, clarinete baixo, flautas, trompete e trombone, dois percussionistas, piano, baixo e bateria, onde se notavam Alex Sipiagin, Scott Colley, Don McCaslin, Jeff Hirshfield e Adam Rogers entre outros – de que poucos disporão. O CD foi editado na editora própria de Binney, "Mythology" e nunca terá tido distribuição nacional. A sua aparição nas discotecas é portanto uma agradável surpresa.

A faceta mais evidente em "Free To Dream" começa por ser naturalmente a dimensão orquestral e contém já todos os elementos do seu "estilo": densidade, interpenetração perfeita da dualidade orquestração/ improvisação a servir engenhosas composições, direcção de actores irrepreensível. A extensão da formação que utilizou permitiu-lhe combinações (/oposições) tímbricas especialmente interessantes, que foram inequivocamente procuradas para servir aquelas composições e aqueles arranjos. Nada é deixado ao acaso e a invocação de mais um ou outro instrumento harmónico ou os ensambles dos sopros "clássicos" tendem por vezes a fugir aos arquétipos dos arranjos do Jazz (embora se possa evocar o universo de Gil Evans e, na medida como adapta as orquestrações à personalidade dos músicos, de Ellington), mas apesar disso eles inscrevem-se dentro dos parâmetros do Jazz. E em particular a intervenção dos solistas, entre os quais ele mesmo, não admite outro modelo.

Dinâmicas, contrastes lirismo-virulência, paisagens harmónicas versus tumulto e expressão, "Free To Dream".

O caminho desde a gravação deste disco (1996), até "Bastion Of Sanity" e "Welcome To Life" (2004), teve de permeio pelo menos quatro registos e várias apresentações em Portugal, a maior parte das quais tive a felicidade de poder seguir, e que me permitiram observar o equilíbrio e regularidade do elevado nível das suas produções.

Durante o ano de 2005, Binney apresentou em Portugal estes dois discos que referi, o primeiro dos quais no Hot Club no início do Verão e o último no Seixal Jazz. Entre o CD e o concerto, "Welcome..." apenas diferiu no baterista, Dan Weiss em vez de Brian Blade. Existem notórias afinidades entre este disco e "Free To Dream", na concepção orquestral, no cuidado nos arranjos que resultam em dinâmicas harmónicas-rítmicas luxuriantes, nem sempre de imediata percepção. A única debilidade do disco (se assim se pode observar) é a atribuição da responsabilidade da definição da estrutura (das composicões) em Adam Rogers e na sub-valoração do excelente Craig Taborn (o que haveria de ser confirmado e resolvido no segundo set do concerto do Seixal). A guitarra marca algo excessivamente todo o disco, como marcou o concerto que apenas a energia de Dan Weiss contribuiu para diluir. Mas a escolha da Adam Rogers neste papel não tem em definitivo nada de casual e corresponde exactamente ao arranjo escrito por Binney. Enfim, notável é no disco como se tornou óbvio no concerto, a estatura de Scott Colley (com Dan Weiss uma verdadeira âncora), mas para além disso um improvisador a crescer rapidamente para o nível de um Dave Holland.

Curiosa e inesperadamente o concerto do Seixal haveria de pôr de acordo, na crítica, "ortodoxos" e "radicais", ambos incapazes de se aperceber do cromatismo das tessituras e subtileza das estruturas, o que se poderá compreender pela sua proverbial desvalorização da escrita no Jazz (e pela espécie de surdez característica de quem não compreende a coerência de um discurso falado numa língua esotérica que ignora). A música de Binney não é de todo fácil, como não era já a de Ellington (e que levaria até alguns "puristas" a classificá-lo fora do Jazz!), mas a simples existência daquela formação regular (a tocar este mesmo projecto!), o conhecimento antigo dos músicos e o seu elevado nível deveria pelo menos fazer suspeitar ouvidos supostamente críticos da impossibilidade de se estar perante qualquer espécie de desnorte ou desorganização. Ao contrário do que procuraram dar a entender essas vozes distraídas, os músicos presentes na audiência e outros ouvidos mais tarimbados (ou até mesmo outros ouvidos sem ideias preconcebidas) foram completamente cilindrados pela avalanche de escrita e pelo rigor (e ao mesmo tempo liberdade), beleza e força daquela música. (Mas lá que este súbito coro de críticas tem algo de irónico, lá isso tem...).

Mais pacífico me parece ser "Bastion of Sanity", que foi quarteto no Hot com Taborn em vez de Jacob Sacks e no disco conta também com o exuberante e opulento saxofone de Chris Potter.

A formação reduzida permite a Binney apresentar uma música mais forte, mas nem por isso menos artificiosa na estruturação ou menos fecunda na composição. Trata-se apenas de outra faceta, outra forma de apresentar a mesma música, quiçá mais directa e de fácil entendimento, mas de forma alguma menos rica, e este é na sua simplicidade aparente outro dos grandes discos do ano de 2005.

 

Leonel Santos

 


David Binney está em http://www.davidbinney.com/