Sobre texto e entrevista publicados em All
Jazz n.º 2 |
SOB O SIGNO DA POESIA
Foi sob o signo da palavra (poesia) que se iniciou o Braga Jazz 2002.
A curiosidade era muita para a primeira noite, pelo programa que se anunciava:
o casamento da poesia de Fernando Pessoa com o Jazz, pelo filho de um português
há muito radicado em França.
Concerto estranho, desconcertante. Jean-Marie Machado, de quem conhecia apenas
um disco já com alguns anos, trouxe-nos um espectáculo onde
o Jazz foi apenas um dos materiais utilizados e onde a palavra foi senhora.
Ambicioso, o projecto de Jean Marie Machado trouxe-nos uma orquestra de catorze
instrumentos, dois cantores e um coro feminino “clássico” de
seis vozes.
A orquestra incluía ele mesmo, em piano, um regente, os notáveis
Ricardo Del Fra em contrabaixo, Jacques Mahieux na bateria e Andy Sheppard
no saxofone, entre metais (tuba, trombone, trompa), clarinetes, outro saxofone,
flauta, percussões e acordeão.
Mais do que a invulgaridade da formação em palco ou a pretensão
de fusão de géneros artísticos diferentes, creio que
o mais surpreendeu o público (e a crítica) foi a forma como
Machado apresentou a poesia, através das vozes – de franceses – cantando
ou declamando em português, com o inevitável sotaque carregado.
A forma surgiu algo risível, pelo menos estranha. Mas ainda assim,
e passado um primeiro momento, o público compreendeu a proposta de
Jean-Marie Machado e apreciou a beleza do espectáculo.
Mas mais que uma proposta arrojada e de grande beleza estética, a
ode a Fernando Pessoa, “La Main des Saisons”, é um trabalho
de grande valia do ponto de vista da composição. Jean-Marie
Machado revelou-se admirável na combinação da poesia
e da música e no entrosamento das palavras nas complexas estruturas,
mas também no casamento perfeito entre os diversos géneros
musicais – clássica, Jazz, música popular basca (pelas
vozes dos dois cantores “populares” e do acordeão), e
mesmo de elementos da música tradicional portuguesa -, personalizados
ocasionalmente em instrumentos – o acordeão, o coro feminino,
o saxofone, o piano, os cantores masculinos, os metais – ou combinando-os
de forma desconcertante, revelando um esforço de composição
notável com resultados que, na interpenetração das formas,
na coerência e na naturalidade com que surgem, se me afiguraram mais
conseguidos que outros realizados por exemplo por Michael Mantler ou Mike
Westbrook.
Será discutível a opção de J.M.M. de apresentar
as vocalizações naquele português pouco inteligível,
até porque o espectáculo existe integralmente em língua
francesa. Mas outras vozes se levantariam... Em meu entender ainda, a forma
escolhida esclarece a natureza ambígua da relação do
autor com a língua portuguesa e acentua por outro lado a universalidade
da poesia de Fernando Pessoa.
Devo dizer que, dada a grande originalidade, o conceptualismo e densidade
do projecto, o público se revelou bastante receptivo. Ademais num
concerto prejudicado por uma duração longa e agravado pela
hora tardia a que começou, como segundo concerto da noite.
Em conclusão: o que Machado apresentou em Braga foi, a meu ver, a
mais digna – elevada – homenagem a Fernando Pessoa jamais feita,
a merecer outra atenção por parte das instituições
nacionais responsáveis pela divulgação da cultura nacional
além-fronteiras e da obra do poeta.
Falámos com o compositor no fim do concerto.
All Jazz:
Onde é que
tomou conhecimento com a poesia de Fernando Pessoa?
Jean Marie Machado: Em minha casa. Na biblioteca dos meus pais. A minha
mãe
e o meu pai (que era português) gostavam muito de literatura em geral
e a literatura portuguesa, espanhola e italiana ocupavam um espaço
importante na sua biblioteca. Descobri Fernando Pessoa em minha casa.
AJ: Como surgiu a ideia
de realizar um espectáculo sobre Fernando
Pessoa?
JMM: Foi um dia ao ler Fernando Pessoa que decidi fazer um espectáculo
sob este tema. Ao longo do tempo decidi juntar-lhe as cartas à sua
noiva Ofélia porque eu as acho muito boas; são cartas de
amor.
AJ: E quanto tempo
durou a concretizar essa ideia?
JMM: Este espectáculo existe desde Novembro, escrevi-o e compu-lo
durante todo o ano passado; mas na cabeça, ele existe desde
há quase
dez anos. Ele vem de muito longe e está cheio de histórias
e cheio de música de que eu gosto.
AJ: Sente-se. Este projecto já está gravado?
JMM: Ainda não, mas vai ser gravado, espero.
AJ: A sua formação é clássica, creio...
JMM: Sim tenho formação clássica em piano e composição
do conservatório e estudei Jazz, como autodidacta. Sou um apaixonado
da música clássica, tanto como do Jazz, músicas
que procurei combinar.
AJ: Escreve as peças
integralmente?
JMM: Há imenso de escrita, mas há igualmente imensa liberdade
para os improvisadores. Os cantores, por exemplo, são cantores improvisadores
tradicionais, bascos e têm muita liberdade. Por outro lado existe um
coro clássico e um chefe de orquestra...
AJ: Que apoios teve
para a realização deste espectáculo?
Tivemos vários apoios, entre os quais de três teatros, mas também
de festivais que suportaram o projecto, que como pode compreender levou muito
tempo a realizar e é muito difícil de montar e oneroso. Mas
de tempos a tempos é necessário repô-lo. O espectáculo
tem sido realizado em França, em português e em francês.
AJ: Francês e português? Como é que
entende Fernando Pessoa?
JMM: Quando eu “canto” em português, eu reencontro as minhas
origens. É um pouco por isso que estou a preparar um trabalho sobre
fado. Ao longo dos anos, pouco a pouco, eu quis encontrar as minhas origens
remotas. A ideia foi crescendo na minha cabeça. Eu li Fernando Pessoa
em francês e em português. Trabalhei sobre textos traduzidos,
mas também sobre os originais em língua portuguesa,
que eu compreendo, para realizar este projecto.
Eu tenho trabalhado sobre outros poetas, mas Fernando Pessoa é mais
que a minha cultura original, representa também o meu amor pelo país
do meu pai. Mas ele é sobretudo um grande poeta. Pessoa é um
artista do mundo. A sua poesia pertence ao mundo inteiro.