Sobre texto e entrevista publicados em All Jazz n.º 2
(Reportagem do Braga Jazz 2002)

Junho de 2002


 

 

SOB O SIGNO DA POESIA

Foi sob o signo da palavra (poesia) que se iniciou o Braga Jazz 2002.
A curiosidade era muita para a primeira noite, pelo programa que se anunciava: o casamento da poesia de Fernando Pessoa com o Jazz, pelo filho de um português há muito radicado em França.
Concerto estranho, desconcertante. Jean-Marie Machado, de quem conhecia apenas um disco já com alguns anos, trouxe-nos um espectáculo onde o Jazz foi apenas um dos materiais utilizados e onde a palavra foi senhora.
Ambicioso, o projecto de Jean Marie Machado trouxe-nos uma orquestra de catorze instrumentos, dois cantores e um coro feminino “clássico” de seis vozes.
A orquestra incluía ele mesmo, em piano, um regente, os notáveis Ricardo Del Fra em contrabaixo, Jacques Mahieux na bateria e Andy Sheppard no saxofone, entre metais (tuba, trombone, trompa), clarinetes, outro saxofone, flauta, percussões e acordeão.
Mais do que a invulgaridade da formação em palco ou a pretensão de fusão de géneros artísticos diferentes, creio que o mais surpreendeu o público (e a crítica) foi a forma como Machado apresentou a poesia, através das vozes – de franceses – cantando ou declamando em português, com o inevitável sotaque carregado. A forma surgiu algo risível, pelo menos estranha. Mas ainda assim, e passado um primeiro momento, o público compreendeu a proposta de Jean-Marie Machado e apreciou a beleza do espectáculo.
Mas mais que uma proposta arrojada e de grande beleza estética, a ode a Fernando Pessoa, “La Main des Saisons”, é um trabalho de grande valia do ponto de vista da composição. Jean-Marie Machado revelou-se admirável na combinação da poesia e da música e no entrosamento das palavras nas complexas estruturas, mas também no casamento perfeito entre os diversos géneros musicais – clássica, Jazz, música popular basca (pelas vozes dos dois cantores “populares” e do acordeão), e mesmo de elementos da música tradicional portuguesa -, personalizados ocasionalmente em instrumentos – o acordeão, o coro feminino, o saxofone, o piano, os cantores masculinos, os metais – ou combinando-os de forma desconcertante, revelando um esforço de composição notável com resultados que, na interpenetração das formas, na coerência e na naturalidade com que surgem, se me afiguraram mais conseguidos que outros realizados por exemplo por Michael Mantler ou Mike Westbrook.
Será discutível a opção de J.M.M. de apresentar as vocalizações naquele português pouco inteligível, até porque o espectáculo existe integralmente em língua francesa. Mas outras vozes se levantariam... Em meu entender ainda, a forma escolhida esclarece a natureza ambígua da relação do autor com a língua portuguesa e acentua por outro lado a universalidade da poesia de Fernando Pessoa.
Devo dizer que, dada a grande originalidade, o conceptualismo e densidade do projecto, o público se revelou bastante receptivo. Ademais num concerto prejudicado por uma duração longa e agravado pela hora tardia a que começou, como segundo concerto da noite.
Em conclusão: o que Machado apresentou em Braga foi, a meu ver, a mais digna – elevada – homenagem a Fernando Pessoa jamais feita, a merecer outra atenção por parte das instituições nacionais responsáveis pela divulgação da cultura nacional além-fronteiras e da obra do poeta.
Falámos com o compositor no fim do concerto.

All Jazz: Onde é que tomou conhecimento com a poesia de Fernando Pessoa?
Jean Marie Machado: Em minha casa. Na biblioteca dos meus pais. A minha mãe e o meu pai (que era português) gostavam muito de literatura em geral e a literatura portuguesa, espanhola e italiana ocupavam um espaço importante na sua biblioteca. Descobri Fernando Pessoa em minha casa.
AJ: Como surgiu a ideia de realizar um espectáculo sobre Fernando Pessoa?
JMM: Foi um dia ao ler Fernando Pessoa que decidi fazer um espectáculo sob este tema. Ao longo do tempo decidi juntar-lhe as cartas à sua noiva Ofélia porque eu as acho muito boas; são cartas de amor.
AJ: E quanto tempo durou a concretizar essa ideia?
JMM: Este espectáculo existe desde Novembro, escrevi-o e compu-lo durante todo o ano passado; mas na cabeça, ele existe desde há quase dez anos. Ele vem de muito longe e está cheio de histórias e cheio de música de que eu gosto.
AJ: Sente-se. Este projecto já está gravado?
JMM: Ainda não, mas vai ser gravado, espero.
AJ: A sua formação é clássica, creio...
JMM: Sim tenho formação clássica em piano e composição do conservatório e estudei Jazz, como autodidacta. Sou um apaixonado da música clássica, tanto como do Jazz, músicas que procurei combinar.
AJ: Escreve as peças integralmente?
JMM: Há imenso de escrita, mas há igualmente imensa liberdade para os improvisadores. Os cantores, por exemplo, são cantores improvisadores tradicionais, bascos e têm muita liberdade. Por outro lado existe um coro clássico e um chefe de orquestra...
AJ: Que apoios teve para a realização deste espectáculo?
Tivemos vários apoios, entre os quais de três teatros, mas também de festivais que suportaram o projecto, que como pode compreender levou muito tempo a realizar e é muito difícil de montar e oneroso. Mas de tempos a tempos é necessário repô-lo. O espectáculo tem sido realizado em França, em português e em francês.
AJ: Francês e português? Como é que entende Fernando Pessoa?
JMM: Quando eu “canto” em português, eu reencontro as minhas origens. É um pouco por isso que estou a preparar um trabalho sobre fado. Ao longo dos anos, pouco a pouco, eu quis encontrar as minhas origens remotas. A ideia foi crescendo na minha cabeça. Eu li Fernando Pessoa em francês e em português. Trabalhei sobre textos traduzidos, mas também sobre os originais em língua portuguesa, que eu compreendo, para realizar este projecto.
Eu tenho trabalhado sobre outros poetas, mas Fernando Pessoa é mais que a minha cultura original, representa também o meu amor pelo país do meu pai. Mas ele é sobretudo um grande poeta. Pessoa é um artista do mundo. A sua poesia pertence ao mundo inteiro.